Um grupo de cerca de 90 trabalhadores rurais e indígenas ocuparam uma terra pública no Pará que, embora destinada à reforma agrária desde 1999, foi repassada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) à mineradora canadense Belo Sun, que planeja abrir ali a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil.
A retomada foi realizada por agricultores, ribeirinhos e indígenas na manhã de domingo (5) e tem como objetivo pressionar o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e o governo federal a abandonarem o projeto de mineração e usarem o local para a reforma agrária.
“Estamos reivindicando nossos direitos como agricultores. Queremos nossa terra para trabalhar e sustentar nossos filhos e famílias”, diz uma das lideranças da ocupação, em vídeo obtido pela reportagem. A Repórter Brasil não conseguiu identificar a autora da mensagem.
“O governo está invadindo nosso território, querendo trazer mineração. Nós viemos aqui por causa da luta para consultar nossos parentes ribeirinhos e da pesca. Queremos que o Estado tome providência, queremos respeito ao nosso território e consulta prévia”, diz um indígena munduruku que participou da ocupação, em outra gravação obtida pela reportagem.
A área em disputa fica dentro do Projeto de Assentamento (PA) Ressaca, criado há mais de 20 anos para abrigar 600 famílias de pequenos agricultores entre os municípios de Altamira e Senador José Porfírio, no norte do Pará. O local é próximo à Volta Grande do Rio Xingu, região já afetada pela usina hidrelétrica de Belo Monte.
Em dezembro do ano passado, parte desse assentamento foi desmembrado pelo Incra e cedido à Belo Sun, que recebeu ainda outra área pública na região para instalar a mina de ouro. No total foram repassados à mineradora 2.428 hectares em terras da União – o equivalente a 130 estádios do Maracanã –, dos quais 1.439 estão dentro do PA Ressaca e 989, sobrepostos à gleba federal Ituna.
Acampados há cinco dias no PA Ressaca, os camponeses e indígenas contestam o acordo firmado entre Incra e Belo Sun, que tornou o órgão governamental sócio da exploração de ouro. Em troca de ceder o uso da área à mineradora, o Incra terá participação nos lucros da jazida e receberá uma fazenda em Mato Grosso – a quase 1.600 km de distância das populações afetadas pelo empreendimento.
O acordo é considerado ilegal pelas defensorias públicas da União e do estado do Pará, que entraram na Justiça pedindo sua anulação e apontando uma série de problemas, como a compra irregular de lotes dentro do assentamento pela mineradora, revelada pelo jornal O Estado de S. Paulo. Na ação apresentada à Justiça, os defensores públicos afirmam que o Incra teve conhecimento dessas transações e fez o acordo justamente para regularizá-las, em vez de coibir as violações praticadas pela mineradora.
As defensorias também consideram “infundadas” as alegações apresentadas pelo Incra de que essas áreas do assentamento estariam desocupadas e, por isso, poderiam ser repassadas à Belo Sun. Em nota, a DPU diz que “identificou famílias com potencial de reforma agrária vivendo na área concedida ao empreendimento e nos lotes limítrofes” e que o Incra sequer visitou o local ao fazer sua análise da ocupação.
Questionado pela Repórter Brasil sobre as acusações da DPU, o Incra disse que vai apresentar à Justiça os “esclarecimentos necessários”, mas declarou que o uso da área pela mineradora “está vinculada a uma série de condicionantes”, como “o desenvolvimento de ações em benefício dos moradores do próprio assentamento e de outros na região – a exemplo de investimentos em infraestrutura e prestação de assistência técnica, social e ambiental às famílias”.
Já a Belo Sun não comentou as acusações de compra irregular de terras da reforma agrária nem respondeu sobre a ação que tenta anular o acordo com o Incra. A mineradora diz que recebeu denúncias de que a ocupação do último domingo foi feita por “invasores” trazidos de micro-ônibus do sul do Pará, que “adotará as medidas legais pertinentes para solucionar a situação e que já notificou a Polícia Civil local da invasão” (leia as respostas na íntegra).
Risco de conflito
Associações de defesa dos direitos humanos temem que a ocupação do PA Ressaca desencadeie uma resposta violenta contra os trabalhadores rurais. Em carta assinada por mais de 70 entidades, há relatos de que se estaria organizando uma possível reação armada contra a retomada.
“Em áudios de WhatsApp, pessoas que se dizem moradoras da Vila Mocotó, também no interior do PA Ressaca, acusam o grupo de estar ocupando propriedade da mineradora, afirmando que, por isso, podem querer outras terras também, e convocam uma reação armada”, diz o documento, ponderando que “o grupo da retomada não fez uso da violência em nenhum momento e demonstrou que não tem interesse em ocupar quaisquer terras senão aquelas que estão sendo impedidas de cumprir sua função social de destinação à reforma agrária por conta dos atos da mineradora Belo Sun”.
Um áudio obtido pela reportagem pede “providências” para expulsar o grupo. “Bora tomar providências, vamos lá expulsar eles, porque são pessoas enviadas pelas ONGs, pelo Ministério Público, querendo abalar a região. Não vamos deixar isso acontecer, vamos mostrar pra eles que quem manda aqui na região é nós”, diz a mensagem, cujo autor não foi identificado.
As defensorias públicas da União (DPU) e do estado do Pará (DPE) enviaram ofício na manhã de segunda-feira (6) para a Delegacia Especializada em Conflitos Agrários e Ambientais (Deca) de Altamira, pedindo “todas as medidas cabíveis e urgentes para prevenir conflitos agrários na região”. Diante de novas ameaças realizadas ao longo da semana, a DPE recebeu a liderança do movimento e reforçou o pedido de providências à Deca. Procuradas, a Polícia Civil e a Secretária de Segurança Pública do Pará não retornaram os contatos da reportagem.
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Em nota publicada em dezembro, o Incra declarou que o Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) prevê a coexistência da atividade mineral com o assentamento e afirmou que não haverá remoção de famílias do local.
Licenças irregulares
Além das suspeitas de irregularidades nas compras de terrenos do assentamento e no repasse de terras públicas pelo Incra, o empreendimento da Belo Sun está travado na Justiça por problemas no licenciamento ambiental.
O megaprojeto chegou a obter do governo do Pará duas das três licenças necessárias para entrar em operação, mas as autorizações foram suspensas pela Justiça Federal. Ao menos sete ações questionam o processo de licenciamento, inclusive uma que defende que o órgão responsável pela análise deveria ser o Ibama, e não a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas).
Em 2017, a licença de instalação obtida pela empresa foi suspensa pelo TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região, corte de segunda instância) por falta de estudos de impacto sobre os indígenas e por ausência da consulta prévia a esses povos.
Segundo o Instituto Socioambiental, a futura mina afetará três terras indígenas: Ituna/Itata, onde há povos isolados, Paquiçamba e Arara da Volta Grande do Xingu. A Belo Sun, porém, diz que seu projeto “não se encontra dentro ou no raio de 10 Km de terras indígenas e que a empresa não possui concessões ou alvarás de pesquisa mineral em terras indígenas”.
Após a suspensão de 2017, a Belo Sun apresentou nova documentação ao tribunal, que foi aceita em decisão de abril passado. No entanto, o TRF1 manteve o licenciamento suspenso até que ela seja analisada pelo órgão ambiental do Pará.
As licenças ambientais também estão suspensas por outra decisão judicial, do último dia 23 de maio. A Vara Agrária de Altamira entendeu que faltam os estudos de impacto e a consulta prévia às comunidades ribeirinhas próximas ao empreendimento.
Se não forem sanados os impactos apontados pelas comunidades tradicionais, o empreendimento poderá “gerar risco à existência e aos modos de vida dos povos tradicionais da Volta Grande do Xingu e ao ecossistema”, diz Bia Albuquerque, defensora pública do estado do Pará. A Belo Sun diz que vai recorrer da decisão, pois “considera que foram realizadas todas as consultas necessárias ao licenciamento do projeto”.
A região onde fica o projeto de mineração da Belo Sun já sofre os impactos da usina hidrelétrica de Belo Monte, que causou a redução da vazão do rio, afetou a reprodução dos peixes e obrigou a remoção de ribeirinhos.
Com a possibilidade de liberação da obra de mineração, as populações locais temem que a situação se agrave, pois o megaprojeto prevê a construção de uma barragem de rejeitos tóxicos ainda maior do que a rompida em 2015 em Mariana (MG). O empreendimento ameaça também cerca de 200 famílias que vivem da pesca e da agricultura ao lado do assentamento, nas vilas da Ressaca e do Galo, que ainda não sabem se poderão continuar no local e em quais condições.
Um parecer técnico independente feito a pedido da Rede Xingu + aponta para os riscos de derramamento de águas tóxicas no rio Xingu e falhas nas simulações de ruptura da barragem, dentre outros problemas no projeto. Segundo a mineradora, um relatório com especialistas em cada tema deu respostas ao parecer e foi “protocolado na Semas do Pará e na Funai ainda em 2020.”
Há ainda o risco de as detonações previstas para abertura da mina afetarem a estrutura da hidrelétrica de Belo Monte. A própria Norte Energia, controladora da usina, fez um pedido em março à Funai, Ibama e Semas para que o licenciamento da mina seja reavaliado. Segundo a Belo Sun, eventuais impactos foram discutidos com a usinas desde 2013 e solucionados em 2021. A mineradora diz que “o pleito da Norte Energia é inoportuno, descabido, demonstrando a total desatualização sobre o projeto, provavelmente atendendo a outros interesses.”
*Este texto foi alterado às 15h do dia 10 de junho de 2022 para incluir o posicionamento do Incra.