“Eu saio de casa às 4h da manhã, porque pego o transporte da empresa. Um dia, quando eram 6h20, comecei a sentir uma cólica meio chatinha”, relembra Ivone, nome fictício de uma funcionária da JBS no sul de Santa Catarina que pede para não ser identificada.
Grávida de 5 meses, ela trabalhava na esteira de corte de coxas de frango quando teve início o mal-estar. “Fui para o vestiário e tomei um remédio para dor. Foi quando comecei a ter uma perda de líquido diferente”, detalha. Levada às pressas para um hospital, ela diz que a equipe médica diagnosticou uma infecção que a licenciou do serviço.
Ivone está em sua terceira gestação e conta que vinha perdendo peso por não se alimentar direito ao longo do expediente. Por razões sanitárias, ela é proibida de comer nas dependências do frigorífico, mesmo dentro do vestiário. “Se tu for contar, tu tem dez minutos de pausa. Tu não vai conseguir tirar toda a roupa que tu usa para poder ir lá fora comer e depois voltar. Não tem nem como”, explica.
Ainda que não seja possível afirmar que o problema de Ivone tenha sido causado pelo ambiente de trabalho, a história é exemplo de uma série de preocupações de especialistas sobre os potenciais riscos proporcionados por frigoríficos a empregadas gestantes.
Excesso de risco
A análise de dados sobre benefícios previdenciários lança luz sobre uma possível conexão entre os chamados “transtornos maternos” e o ambiente de trabalho em abatedouros.
Segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS), esses transtornos compreendem infecções, hemorragias, vômitos excessivos, dentre outras complicações para a gravidez – abortos espontâneos não estão incluídos.
De 2016 a 2019, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) aprovou uma média de 668 auxílios por ano a grávidas afastadas de frigoríficos – mais de dois para cada dia útil do ano. No mesmo período, o abate de aves e suínos ocupou o primeiro lugar no ranking de prevalência de transtornos maternos entre os setores econômicos com mais de 100 mil funcionários.
O elevado número de benefícios reflete, em parte, o alto contingente de mulheres na indústria de proteína animal. Dos 562 mil trabalhadores de empresas do setor, cerca de 40% são mulheres. Mas esse dado, isoladamente, não explica as estatísticas.
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As pistas mais contundentes para investigar se o trabalho em frigoríficos pode expor gestantes a riscos vêm do Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP).
Transformado na lei federal 11.430 em 2006, o NTEP cruza dados sobre tipos de doenças, atividades econômicas e auxílios do INSS. Na prática, trata-se de uma ferramenta para ajudar peritos médicos do órgão federal a avaliarem a possibilidade de um determinado problema de saúde ter ligação com a atividade profissional.
O decreto que regulamenta a lei do NTEP aponta, por exemplo, que trabalhadores de frigoríficos estão sujeitos a um excesso de risco para lesões por esforço repetitivo e distúrbios osteomusculares – as chamadas LER/DORT.
Já o grupo dos transtornos maternos não aparece, por enquanto, na lista dos casos passíveis de serem avaliados pelo INSS como problemas de saúde ligados a qualquer atividade.
Porém, dados baseados na metodologia do NTEP mostram que o excesso de risco para transtornos maternos em frigoríficos de aves e suínos foi de 220%, quando levados em conta todos os outros segmentos econômicos.
Já para os abatedouros de bovinos, a proporção é menor, mas ainda superior à média: 34%. Organizadas em um procedimento do Ministério Público do Trabalho (MPT), as informações se referem ao período de 2000 a 2016.
Pós-doutor em saúde pública, o criador do NTEP – Paulo Rogério de Oliveira – alerta para o fato de que “saúde é sempre multifatorial e, por isso, não é possível afirmar que frigoríficos causam determinado tipo de doença”. Para tanto, ele faz uma comparação com o cigarro.
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“Fumar faz mal à saúde. Isso não quer dizer que todos aqueles que fumam vão ter câncer”, ilustra Oliveira, explicando que, apesar disso, há uma “fortíssima associação” entre a doença e o ato de fumar.
O pesquisador também destaca que o fato de o setor frigorífico empregar um grande número de mulheres não distorce as estatísticas sobre o excesso de risco para transtornos maternos. Se fosse assim, “todos os segmentos econômicos que têm muitas mulheres teriam esse mesmo problema”, afirma.
Sensibilidade maior
Para Roberto Ruiz, médico e consultor de saúde da Contac (confederação de sindicatos de trabalhadores na alimentação), ainda faltam estudos para compreender como o trabalho em frigoríficos pode expor gestantes a riscos.
“As hipóteses passam por microvazamentos de amônia [gás usado no sistema de refrigeração], posições inadequadas nos postos de trabalho, e exposição ao frio e agentes biológicos presentes nas carnes de animais”, resume Ruiz.
“Grávidas têm uma sensibilidade maior a quase tudo”, define Karina Calife, doutora em saúde da mulher e professora da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo. Segundo ela, além do desconforto causado pelo frio intenso em um frigorífico, o ruído constante pode agravar náuseas e tonturas. E a necessidade de passar muito tempo em pé tem potencial para desencadear tromboses e embolias.
Karina cita outro exemplo: por terem a bexiga pressionada pelo útero em expansão, gestantes têm vontade de urinar com mais frequência. Como o ambiente exige o uso de uma série de equipamentos de proteção e os sanitários nem sempre ficam próximos aos postos de trabalho, as funcionárias podem se sentir desestimuladas a usar o banheiro – o que pode acarretar infecções urinárias.
“Uma das maiores causas de parto prematuro e necessidade de UTI neonatal são justamente as infecções urinárias”, complementa Karina.
Retorno ao trabalho
Até semanas antes de passar pela experiência que definiu como “susto”, Ivone – a personagem do início desta reportagem – e outras gestantes estavam liberadas do trabalho das linhas de produção de duas unidades da JBS localizadas em Forquilhinha e Nova Veneza, no sul de Santa Catarina.
Uma decisão liminar da Justiça, obtida pelo sindicato da categoria no fim de março, determinou que grávidas sem o esquema vacinal completo contra a Covid-19 ou alocadas em postos sujeitos a agentes nocivos fossem afastadas.
A JBS recorreu e, devido a uma mudança de protocolos do Ministério da Saúde, as funcionárias voltaram ao serviço já em abril. “Mas foi mantida a parte de que as gestantes não podem trabalhar em local com agente nocivo, perigoso e penoso”, explica Samuel Remor, advogado do sindicato. O problema é que a definição desses locais é controversa.
Na opinião de Remor, grávidas não deveriam atuar, por exemplo, na esteira de corte de coxas – atividade com intensa carga de movimentos repetitivos a que Ivone se dedicava quando passou mal em pleno expediente.
“É um local frio, com ruído acima do limite de tolerância”, argumenta. A professora Karina Calife concorda: “o ideal é que essas mulheres pudessem passar o período de gestação em ambientes administrativos”
A JBS afirmou que não comenta processos judiciais em andamento, “mas reforça que todas as colaboradoras gestantes que retornaram ao trabalho nas unidades de Forquilhinha e Nova Veneza e que antes atuavam em ambientes com variações térmicas, por exemplo, foram remanejadas para outras atividades”.
Além disso, a companhia também afirma ter investido mais de R$ 320 milhões “em medidas, sistemas e processos de saúde e segurança em todas as suas instalações” (leia a íntegra da resposta).
Historicamente, as empresas de proteína animal atuam, inclusive na Justiça, para que suas atividades não sejam qualificadas como “insalubres”. Segundo o procurador do MPT, Lincoln Cordeiro, “em geral, essa é a grande busca do setor, até porque há custos a mais [como o pagamento de adicionais, dentre outros]”.
Coordenador de um grupo especializado em frigoríficos, Cordeiro defende inclusive a redução de jornada oficial – atualmente de 44 horas – para todos os trabalhadores, a fim de conter “os alarmantes índices de adoecimento por movimentos repetitivos”.
Para o procurador, essa medida seria ainda mais importante para proteger funcionárias grávidas, “uma vez que a diminuição da jornada reduziria drasticamente a exposição a qualquer risco inerente ao trabalho, trazendo maior segurança a si, ao nascituro, mas também ao empregador”, finaliza.
Frigoríficos contestam
A Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), que representa a indústria de aves e suínos, contesta a possível correlação entre transtornos maternos e o ambiente de frigoríficos.
“A apuração desconsidera levantar quais foram as enfermidades com maiores índices de ocorrências, o que pauta o tema sem bases científicas corretas, seguindo os critérios de Bradford Hill (modelo mundialmente aceito) que poderia, de fato, verificar a relação de enfermidade com o ambiente”, afirma nota emitida pela entidade.
Além disso, a entidade sustenta que o fato de transtornos maternos não estarem previstos no decreto que regulamenta a aplicação do NTEP “é prova da ausência de nexo com o trabalho” (leia a íntegra da resposta).
Já a Abiec, associação dos frigoríficos de carne bovina, afirmou que não comentaria por se tratar de “procedimentos internos das empresas”.