Era madrugada quando Janay Ka’apor ouviu um grito alto vindo da casa de seus pais. “Eu fui correndo e mamãe disse: ‘seu pai está mal’. Ele não conseguia falar, sangrava pela boca”, conta o filho do líder indígena Sarapó Ka’apor, falecido no dia 14 de maio, aos 45 anos. As autoridades inicialmente classificaram a morte como “natural”, mas os indígenas suspeitam de envenenamento.
Um dos principais responsáveis pela criação de sistemas de autodefesa indígena do país, Sarapó era alvo de ameaças e integrava o Programa de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos do Maranhão desde 2015, junto a outras três lideranças Ka’apor.
Após a morte, os indígenas e o programa exerceram pressão sobre as autoridades maranhenses para que o caso fosse investigado. A Polícia Civil do estado e a Polícia Federal acabaram por instaurar inquéritos. Passados quatro meses, porém, o caso segue sem respostas.
Às vésperas de Sarapó passar mal, um morador dos arredores da Terra Índigena (TI) Alto Turiaçu (MA) mandou entregar um tambaqui para sua família. “Mamãe experimentou, mas sentiu um gosto forte, cheiro diferente no peixe. Aí não comeu. Mas papai comeu com limão, com pimenta”, relata o primogênito. Sarapó passou a tarde sem nenhum sintoma após a refeição e foi apenas de noite, já deitado para dormir, que gritou por ajuda. Seu filho Janay o levou de moto para o hospital.
À Repórter Brasil, os indígenas afirmaram que vizinhos têm interesse em explorar madeira e ouro no território – um dos últimos redutos de floresta Amazônica preservada no Maranhão, com 531 mil hectares. A Polícia Civil do Maranhão chegou a interrogar o homem acusado pelos Ka’apor – morador de um assentamento na região e piscicultor –, que confirmou ter dado o peixe a Sarapó, mas “de presente, em condições normais”, afirma o delegado de Santa Luzia do Paruá, José Raimundo Batalha.
Ainda segundo Batalha, o hospital do município de Centro do Guilherme se recusou a receber Sarapó, alegando que ele já havia chegado sem vida. Por esse motivo, o líder Ka’apor foi enterrado sem que tivesse sido feito exame de corpo de delito e ainda não foi feito atestado de óbito.
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A pedido do Conselho de Gestão Ka’apor, o corpo de Sarapó foi exumado no dia 11 de junho, quase um mês depois da morte, e o material coletado foi enviado para análise em laboratórios do Maranhão e de Sergipe. Os resultados dos exames, porém, foram inconclusivos.
“Tendo em vista o lapso temporal [entre a morte e o exame], não foi possível afirmar se foi envenenamento ou não”, explica Batalha. Por isso, segundo o delegado, a possibilidade de homicídio “não está excluída, mas também não podemos confirmar”. Após a perícia, o caso ficou sob responsabilidade apenas da PF, que informou que não comenta investigações em andamento.
Uma vida de luta
Sarapó passou boa parte de sua vida em uma área remota da TI Alto Turiaçu, às margens do rio Gurupiuna e com pouco contato com não indígenas. Decidiu deixar seu isolamento voluntário quando seu povo passou a se organizar para reagir contra invasores do território, juntando-se ao ao grupo que, no futuro, daria origem à guarda e ao Conselho de Gestão Ka’Apor.
“Quando o Sarapó chegou, eu quase não o reconheci. Fazia muito tempo que não nos víamos!”, relembra Niashi Ka’apor, membro da guarda. Segundo narra o amigo de infância de Sarapó, quando ocorreu o reencontro na aldeia Ximborendá, ambos estavam indignados com a invasão do território, a destruição da floresta e a introdução de bebidas alcoólicas e da religião evangélica nas aldeias.
O conselho é a estrutura política da etnia, que substituiu o sistema de poder concentrado nos caciques, enquanto a guarda é o mecanismo de vigilância e autodefesa dos Ka’apor contra invasores, semelhante ao utilizado por seus vizinhos Guajajara e que tem inspirado outros povos Brasil afora – como os indígenas do Vale do Javari, onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados em junho.
O pai de Sarapó, Koroi Ka’apor, comandou a primeira incursão dos indígenas contra madeireiros, em 2013. Com a morte do patriarca, coube ao filho assumir a liderança do movimento.
Niashi recorda-se da primeira ação contra os invasores. “Sarapó me pediu para juntar um grupo para irmos para o mato. Nós fomos em vinte pessoas, teve briga. Sarapó apanhou dos madeireiros”, conta.
“Sarapó era o mais velho da turma, por isso respeitamos ele muito”, explica Itahu Ka’apor. Morador da mesma aldeia e, à época, funcionário da Funai, Itahu também foi um dos jovens que participaram da grande ação de 2013 contra a extração ilegal de madeira da TI.
“Sarapó acreditava muito na floresta. Não era uma pessoa de dois lados. Ele estava de um lado só: o da cultura do povo Ka’apor. Tinha ideias de organização, sobre autonomia e acordo de convivência. Eu não, eu tenho influência dos evangélicos que ensinam na minha aldeia. Sarapó não: morou isolado, não teve muito contato”, resume Itahu, hoje também uma liderança da etnia.
Nos últimos anos de vida, Sarapó estava especialmente preocupado com o aumento do garimpo ilegal ao redor do território. Atento aos acontecimentos do país, havia começado uma mobilização contra a aprovação do projeto de lei 191/2020, que quer liberar a mineração em terras indígenas, e chegou a participar de um encontro com outras comunidades afetadas pelo problema dias antes de sua morte.
“Papai ajudou a expulsar madeireiros, caçadores, fazendeiros e agora garimpeiros. Não pensava em dinheiro, pensava na natureza. Pensava no futuro”, relembra Janay, o filho mais velho de Sarapó, agora obrigado prematuramente a assumir o papel que foi de seu pai.
Edição: Gisele Lobato