‘Vai ter guerra’: após morte suspeita de liderança, guardiões Ka’apor se unem contra garimpo ilegal

Conhecidos por seu eficaz sistema de autodefesa, os Ka'apor agora resistem ao garimpo e à cobiça de mineradoras estrangeiras sobre seu território enquanto tentam superar morte de liderança, que indígenas acreditam ter sido envenenada
Por Ruy Sposati
 16/09/2022

Itahu Ka’apor olha pela janela da caminhonete, estranhando a paisagem. Há pouco tempo, o entorno da Terra Indígena (TI) Alto Turiaçu, no Maranhão, tinha pequenas plantações e rebanhos bovinos dos assentamentos de agricultores familiares. Agora, o que se observa são grandes rasgos na floresta, abertos pelo garimpo ilegal de ouro. “Nosso território está muito perto. Estamos preocupados.”

A exploração mineral ainda não entrou na TI, mas a devastação se aproxima em ritmo acelerado – estando a apenas 2 km da fronteira. Andando pelos ramais que circundam o território, é possível observar o trânsito de caminhonetes levando combustível, bombas e dragas para os garimpos, além de tratores e escavadeiras. Pesquisas já identificaram contaminação de mercúrio oriundo do garimpo ilegal no rio Maracaçumé, um dos maiores da região, que já começa a afetar animais e plantas, segundo o biólogo Antônio Marcos Pereira.

“Bolsonaro facilitou para os garimpeiros, e agora aqui está cheio deles”, lamenta Itahu.

A proximidade da ameaça era a maior preocupação de Sarapó Ka’apor em seus últimos meses de vida. Morto em maio deste ano em circunstâncias ainda não esclarecidas, aos 45 anos, a liderança indígena já havia denunciado a aproximação de garimpeiros ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Sarapó também havia comandado, em 2019 e 2021, duas operações para expulsar grupos que tentavam iniciar a exploração de ouro na TI. Era alvo de constantes ameaças desde 2013, quando ajudou a criar a estratégia de proteção do território, e integrava o Programa de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos do Maranhão desde 2015. Em janeiro deste ano, ele estava em um grupo de indígenas que sofreu perseguição no perímetro urbano de Santa Luzia do Paruá, município vizinho à TI.

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Sob sua liderança, os Ka’apor foram um dos pioneiros na implantação de um sistema de vigilância e autodefesa contra invasores, semelhante ao utilizado por seus vizinhos Guajajara e que tem inspirado outros povos Brasil afora – como os indígenas do Vale do Javari, onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados em junho. Antes de morrer, Pereira estava organizando um encontro entre indígenas do Javari e os Ka’apor, que ocorreria após o intercâmbio com os Guardiões da Floresta do Povo Guajajara, acompanhado pela Repórter Brasil.

Devido ao histórico de ameaças, os Ka’apor suspeitam que Sarapó tenha sido envenenado e agora lutam para que sua morte seja esclarecida – a investigação está hoje nas mãos da Polícia Federal que, após quatro meses, não divulgou  nenhuma conclusão e diz que “não se manifesta sobre investigações em andamento”. Ao mesmo tempo, seus sucessores prometem fazer valer o seu legado de luta pela floresta em pé. “A gente não pode ficar triste, a gente não pode se entregar. A gente tem que se defender e defender o território”, afirma Itahu.

‘Converso com ele todas as noites’, diz Janay Ka’apor, filho mais velho de Sarapó, que acredita que seu pai tenha sido envenenado (Foto: Joana Moncau/Repórter Brasil).

O avanço do inimigo

Além da proximidade do garimpo ilegal, os Ka’apor também enfrentam a cobiça de grandes mineradoras. Cerca de 50 pedidos de pesquisa de ouro batem à porta da TI no chamado Cinturão Gurupi, depósito aurífero com cerca de 12 mil km² de extensão, na divisa dos estados do Pará e do Maranhão, com recursos estimados em mais de 158 toneladas de ouro.

Segundo dados da Agência Nacional de Mineração (ANM), três requerimentos visando a pesquisa e exploração deste minério fazem fronteira com a TI. Dois deles estão registrados em nome da MCT Mineração, empresa ligada à australiana OZ Minerals, e o terceiro está em nome da  Mineração Serras do Oeste, subsidiária da canadense Jaguar Mining. A ANM já deu autorizações para o início de pesquisas na região.

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Procurada pela Repórter Brasil, a Jaguar Mining afirmou que os direitos minerários próximos à TI foram vendidos em 2017 para a MCT, mas que a titularidade ainda não foi alterada porque a transação aguarda análise da ANM. A OZ Minerals confirmou sua atuação na região, afirmando compromisso com a preservação ambiental e a “aplicação de modelos de menor impacto, tanto quanto for razoavelmente possível”, além de respeito à legislação local e às diretrizes das Nações Unidas “relacionadas aos direitos humanos, incluindo os direitos dos povos indígenas e aqueles especificamente direcionados às indústrias extrativas”. A empresa sublinhou ainda que a área está atualmente ocupada “por atividades de mineração ilegal de grupos não relacionados à OZ Minerals”. 

Além desses requerimentos ativos, constam como inativos três pedidos de pesquisa para exploração de ouro dentro do território indígena em nome da Mineração Silvana, empresa que pertence ao grupo Santa Elina – que até março era o conglomerado empresarial campeão de pedidos de pesquisa mineral em terras indígenas, conforme revelou a Repórter Brasil. Os pedidos foram feitos em 1996 e indeferidos pela agência em 2019, mas a mineradora solicitou a reconsideração da análise, que segue em andamento na ANM.

Após ser questionado, o Grupo Santa Elina afirmou que pretende desistir dos requerimentos. Já a ANM respondeu que “obedece o princípio da legalidade”, que a legislação “permite a emissão de alvará de pesquisa” no entorno de TIs e que a autorização “não requer licenciamento ambiental”, mas não retornou após questionamentos sobre pedidos que incidem dentro da terra indígena.

Garimpo ilegal avança no limite do território, também cobiçado por mineradoras estrangeiras (Foto: Ruy Sposati/Repórter Brasil)

A Vale também já esteve de olho no subsolo dos Ka’apor. Protocolou um pedido de pesquisa mineral em 2003 que se sobrepunha a uma parte do território indígena. A empresa diz que abriu mão desse requerimento em 2009 e reiterou que atualmente “não possui direito mineral em terras indígenas no Brasil” (leia aqui a íntegra de todos os posicionamentos).

A legislação brasileira não permite a exploração mineral em territórios indígenas – situação que o governo Bolsonaro tenta alterar por meio do projeto de lei 191/2020, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados e que visa regulamentar a atividade.

Apesar de não invadirem o território dos Ka’apor, os três requerimentos ativos na ANM se situam em sua “zona de amortecimento” – uma região protegida no entorno das terras indígenas que tem como objetivo evitar que impactos ambientais de atividades econômicas cheguem às áreas demarcadas.

No entanto, os Ka’apor denunciam que nem os limites da TI vêm sendo respeitados pelas mineradoras, relatando já terem se deparado com atividades de pesquisa dentro de suas terras:  em 2019 em Ximborendá, a aldeia Ka’apor mais populosa e de intensa presença missionária evangélica, e em 2020 na aldeia Waxiguirendá, próxima à área pleiteada pelas mineradoras.

“Entraram de moto, com uma antena para fazer pesquisa e aparelhos de prospecção”, denuncia Itahu, garantindo que os indígenas não autorizaram a visita. Essa realidade contraria o direito à consulta prévia garantido aos povos tradicionais pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2004.

“Servidores públicos municipais e federais têm facilitado informações para as empresas de mineração”, acusa o professor José Mendes, assessor dos Ka’apor. Segundo ele, “ex-funcionários da Funai, com acesso a dados, mapas e coordenadas, já foram identificados por lideranças indígenas em caminhonetes de empresas”.

À Repórter Brasil, a OZ Minerals negou que técnicos da MCT tenham estado na TI, afirmando que sua licença de exploração incide em uma área próxima, mas não dentro do território (leia a íntegra). Procurada, a Funai não respondeu à reportagem. 

Dentro da terra indígena, floresta protegida; do lado de fora, destruição (Foto: Ruy Sposati/Repórter Brasil)

Séculos de luta

A cobiça do ouro sob o território Ka’apor é tão antiga quanto a resistência da etnia. A região do Gurupi, onde fica a TI Alto Turiaçu, é reconhecida como uma histórica  área de exploração do metal no Brasil.

No século 19, o Barão de Mauá tentou explorar ouro no Gurupi maranhense, onde desde o século 17 garimpeiros já extraíam o metal. Conseguiu articular uma aliança entre o Estado brasileiro e capital inglês, criando a “Montes Áureos Brazilian Mining Company”. No entanto, os  indígenas expulsaram a empresa da região, como já haviam expulsado garimpeiros anteriormente. Máquinas de última geração foram abandonadas na floresta, e o empreendimento foi deixado para trás em 1865. 

Cinquenta anos depois, em 1905, Guilherme Linde  – poderoso homem de negócios gaúcho, que se tornaria o “barão do ouro” do Gurupi  – também fracassou ao tentar expandir sua produção, após três violentos ataques dos Ka’apor.

O mesmo recado os indígenas vêm dando nos últimos anos aos madeireiros, que até 2013 ocupavam parte da TI Alto Turiaçu. Desenvolvendo táticas de ação direta e ocupação territorial, os Ka’apor conseguiram expulsar a maioria dos invasores, recuperando áreas degradadas e restituindo a tradicionalidade à vida dos indígenas.

Sarapó participou ativamente dessas ações nos últimos anos. Agora, seu legado serve de inspiração para aqueles que herdaram o desafio de continuar barrando o avanço do garimpo no território , um dos últimos redutos preservados da Amazônia no Maranhão. “Se minerar, vai ter guerra”, lia-se na bandeira empunhada por um jovem Ka’apor em frente ao túmulo do líder, no último mês de junho.

*Colaborou Marina Rossi

Edição: Gisele Lobato



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