Viagens caras com logística complicada, dinheiro insuficiente, eleitores-alvo com pouco acesso à informação e às urnas e influência das igrejas evangélicas nas aldeias. Se o número de candidatos indígenas bateu recorde nas eleições deste ano, com aumento de 119% desde 2014, os desafios enfrentados por eles na Amazônia indicam que o caminho para sua maior representatividade no Legislativo ainda é árduo.
Um dos principais problemas apontados por candidatos indígenas da Amazônia ouvidos pela Repórter Brasil diz respeito à insuficiência de recursos para fazer campanha, sobretudo considerando os altos custos envolvidos nos deslocamentos na maior floresta tropical do mundo.
Vanda Witoto (Rede-AM), representante do povo Witoto que tenta uma vaga de deputada federal pelo Amazonas, declarou ao TSE ter R$ 1,16 milhão à disposição de sua campanha. Aparentemente alta, a cifra representa apenas a metade do valor médio de R$ 2,23 milhões dos deputados do estado que tentam a reeleição neste ano, segundo cálculos da Repórter Brasil.
“Teríamos o básico para fazer uma candidatura se não fosse a extensão geográfica do Amazonas. É cansativo, mas estamos na luta”, afirmou a candidata ao chegar em Manaus após campanha no Alto Rio Solimões, na fronteira do Brasil com Colômbia e Peru. Para percorrer seis municípios nessa região, foi de avião até Tabatinga e terminou o trajeto em barcos, lanchas e motocicletas. A epopeia se repete a cada viagem pelo interior do estado, que possui quase 1,6 milhão km². “É uma estrutura gigante. Estamos indo, mas a dificuldade financeira é o grande gargalo. Ser candidata na Amazônia é muito difícil.”
Considerada prioritária por seu partido e beneficiada por doações de grandes empresários, Witoto tem posição de relativo privilégio na comparação com candidatos indígenas de menor projeção nacional – a campanha para deputado federal de Lucio Xavante (PDT-MT), por exemplo, até esta semana havia declarado apenas R$ 18.600 em recursos ao TSE.
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Uma análise das contas apresentadas por candidatos a deputados do Amazonas mostra que a principal razão para a disparidade de recursos entre candidaturas indígenas e não indígenas não está nas doações de pessoas físicas, mas sim na partilha do fundo eleitoral, que neste ano bateu recorde e vai distribuir quase R$ 5 bilhões por todo o país.
A atribuição de verbas para os partidos, porém, é baseada no número de representantes que cada legenda tem no Congresso e nos votos que esses políticos receberam em eleições passadas. Partidos menores de oposição, que abrigam boa parte de candidaturas apoiadas pelo movimento indígena, acabam recebendo menos dinheiro do fundo do que grandes legendas do chamado “centrão”. Enquanto a Rede, de Witoto, ficou com R$ 68,8 milhões, o União Brasil conta com R$ 776,5 milhões para bancar seus candidatos.
A partir deste ano, mulheres e negros eleitos terão peso dois no cálculo da divisão desse fundo partidário para eleições futuras. A medida visa incentivar as legendas a aumentarem o investimento na campanha de candidatos de grupos subrepresentados no Legislativo. Aprovada pelo Congresso em 2021, porém, essa política afirmativa não inclui candidatos indígenas.
Com menos verba, as siglas menores apostam mais fichas em nomes com mais chance de se eleger. Em 2018, a verba partidária destinada à campanha de Joenia Wapichana (Rede-RR) foi superior à soma dos outros dez candidatos a deputado federal autodeclarados indígenas que concorreram por estados da Amazônia Legal. Não por acaso, a liderança de Roraima foi a única que se elegeu naquele ano.
Primeira mulher indígena a ocupar uma vaga na Câmara de Deputados, Wapichana quebrou um jejum de mais de três décadas. Desde que Mário Juruna, de origem Xavante, terminou sua legislatura, em 1987, nenhum representante dos povos originários havia sido eleito deputado federal.
“Em 2018 não tínhamos estrutura, mas tínhamos um sonho. Fizemos uma caminhada coletiva. As lideranças indígenas, os jovens e as mulheres que se voluntariaram por essa causa fizeram grande diferença”, disse Wapichana à Repórter Brasil.
Entre a bíblia e a gasolina
Se fazer campanha nas aldeias já é um desafio para os candidatos indígenas da Amazônia, sair de lá com a garantia de votos dos parentes tampouco é tarefa fácil.
Entre os problemas encontrados estão as dificuldades de locomoção dos eleitores para chegarem às urnas no dia do pleito. Dário Casimiro Baniwa, liderança do povo Baniwa e Kuripako do município de São Gabriel da Cachoeira (AM), conta que muitos indígenas têm de viajar até dois dias de barco para acessarem seus locais de votação.
Essa situação faz com que muitos desses eleitores desistam de votar por falta de suporte logístico, enquanto outros acabam cooptados por políticos que oferecem benefícios, como cestas básicas, em troca de votos. “Esses meus parentes acabam votando no candidato que dá a gasolina”, conta Baniwa.
Candidato indígena mais jovem do Brasil, com apenas 21 anos, Junior Manchineri (PT-AC) também cita a dificuldade de acesso à informação e as fake news como empecilhos com que se deparou em sua campanha para deputado estadual no Acre.
“Muitas aldeias ainda não têm internet e há muita desinformação. Isso influencia no voto final”, afirma o representante do povo Manchineri. O candidato diz que, ao andar pelos territórios indígenas, é comum encontrar eleitores que não sabem que deputados que ajudaram a eleger se posicionaram contra seus interesses nas votações de leis anti-indigenas.
Manchineri ressalta ainda o papel de missionários religiosos na disseminação de notícias falsas, que também acabam afetando as candidaturas de indígenas. “Isso foi muito bem revelado durante a pandemia, quando eles espalharam que a vacina vinha com um chip”, diz. A divulgação de fake news por igrejas evangélicas foi uma das razões para o atraso na vacinação de indígenas contra a Covid-19, conforme revelou a Repórter Brasil.
O Censo 2010 aponta que 28,5% da população da região Norte se declara evangélica – maior percentual do país. Os povos indígenas, inclusive isolados ou de contato recente – são alvo preferencial de algumas correntes de missionários que atuam na Amazônia.
“Essa Amazônia é extremamente colonizada pelas igrejas, algumas radicais. É preciso falar em nome de Deus nos nossos discursos, pois a maioria dos eleitores são religiosos”, relata Witoto, que já viu uma liderança local perguntar quais eram suas propostas para as igrejas caso fosse eleita.
Para enfrentar essa realidade, os candidatos indígenas da Amazônia buscam ressaltar a luta por melhores condições na educação e na saúde como suas prioridades, relatando que muitas aldeias não recebem materiais escolares, enquanto doentes morrem à espera de transporte para os hospitais. Também têm em comum a defesa do meio ambiente, mas sem considerar que ela só é possível mantendo a natureza intocada. “Os povos que vivem na Amazônia, como os ribeirinhos e os indígenas, entendem que é possível ter desenvolvimento e ter a floresta em pé”, analisa a socioambientalista Muriel Saragoussi.
Contra-ataque na política
Em oito anos, os candidatos indígenas mais que dobraram nos registros do TSE. São 186 no pleito de 2022, contra apenas 85 em 2014. Nas eleições de 2018, foram 133. Nem todos são considerados aliados pelas lideranças indígenas, como é o caso do vice-presidente da República e candidato a senador pelo Rio Grande do Sul, Hamilton Mourão (Republicanos-RS).
“Diversos candidatos que se autodeclararam indígenas estão saindo por partidos de extrema direita e não estão alinhados com o movimento”, afirma Kleber Karipuna, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Para se contrapor a isso, a entidade lançou campanha de apoio às candidaturas de lideranças indicadas por suas bases, para garantir que os representantes eleitos da etnia atuem de fato em defesa de seus povos.
Sob o lema “Aldear a Política”, a campanha tem como meta criar uma “bancada do cocar”, para combater o empoderamento de grileiros, madeireiros, garimpeiros e outros invasores que ameaçam seus territórios. A Apib está apoiando oficialmente 30 candidaturas de indígenas, das quais 16 estão em estados da Amazônia Legal.
Na Amazônia vive quase metade da população indígena do Brasil, que no Censo 2010 totalizava 820 mil pessoas. Mesmo com a eleição de Joenia Wapichana em 2018, os povos originários seguem subrepresentados em Brasília. Seria necessário empossar entre 2 e 3 deputados indígenas a cada legislatura para que sua participação na Câmara alcance proporção similar à da população brasileira. A bancada justa, porém, pode ser ainda maior, já que as lideranças consideram que os dados do Censo 2010 subestimam o número de indígenas no país, pois muitos não entram na conta por se declararem “pardos” aos recenseadores.
Aumentar a participação na política tradicional é a aposta do movimento indígena para enfrentar a onda de ataques a seus direitos, que se agravou durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), com o respaldo do Congresso. A cada 3 deputados federais, 2 votaram majoritariamente contra o meio ambiente e os povos do campo na atual legislatura, segundo o Ruralômetro 2022 – ferramenta desenvolvida pela Repórter Brasil que avalia a atuação dos parlamentares nas questões socioambientais.
O banco de dados mostra que, nos últimos quatro anos, os indígenas perderam direitos como a prioridade no fornecimento de alimentos para a merenda escolar, além de verem com apreensão a aprovação do regime de urgência do PL 191/2020, que tenta regulamentar a mineração e outras atividades econômicas em seus territórios. Ao mesmo tempo, testemunharam sair dos gabinetes de deputados projetos que tentam anular a demarcação de terras indígenas, garantir acesso de igrejas às aldeias e beneficiar grileiros, garimpeiros e invasores.
A atuação de Joenia Wapichana na Casa ajudou a evitar retrocessos ainda maiores. Nos últimos quatro anos, a parlamentar usou sua voz e influência para paralisar projetos anti-indígenas. Foi o que ocorreu em junho de 2021, quando seu pedido de vista impediu a votação do PL 490/2007, que cria um marco temporal e dificulta a demarcação de territórios indígenas.
A deputada também tem se destacado na convocação de audiências públicas para apurar denúncias de violência, como as relacionadas com o aumento do garimpo ilegal nos territórios, que cresceu 500% nos últimos dez anos. Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), foram registrados 176 assassinatos de indígenas no país em 2021, situação que tem se agravado com a proximidade das eleições – entre os dias 3 e 13 de setembro, foram 7 mortes. Wapichana conseguiu ainda aprovar e derrubar o veto de Bolsonaro à mudança do 19 de Abril de “Dia do Índio” para “Dia dos Povos Indígenas”.
Wapichana segue, assim, o legado de Mário Juruna, que três décadas antes demonstrou a importância da participação indígena na política. O cacique foi responsável pela criação da Comissão Permanente do Índio no Congresso Nacional, embrião da atual Comissão dos Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Quando presidiu o órgão, em plena ditadura militar, conseguiu aprovar um projeto que modificava a composição da diretoria da Funai e aumentava sua fiscalização. Também atuou como assessor técnico nos trabalhos da Constituinte, que garantiu uma série de direitos aos povos indígenas na Carta de 1988. Ficou famoso por andar por Brasília sempre com um gravador, já que não confiava nas promessas dos políticos brancos.
“As comunidades indígenas entenderam que é importante ter uma voz no Congresso Nacional”, avalia a deputada Joênia Wapichana. “Fico muito feliz de ter feito parte desse caminho e de ter sido a primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal, mas não quero ser a única. Precisamos de mais.”
*Colaborou Gisele Lobato
Essa reportagem foi produzida com o apoio do Pulitzer Center em parceria com o Amazon Rainforest Journalism Fund.