Carvoaria parceira da francesa Vallourec é flagrada com trabalho escravo em MG

Auditores fiscais do Ministério do Trabalho resgataram 14 trabalhadores em condições análogas à escravidão no norte de Minas Gerais; carvoaria tem contrato para compra de madeira da unidade florestal da siderúrgica Vallourec
Por Daniel Camargos
 09/11/2022

Um cano de água fria é usado como chuveiro no alojamento dos trabalhadores de uma carvoaria no norte de Minas Gerais. No banheiro, distante meio quilômetro, a descarga da privada não funciona, nem há armários ou lixeiras. Apesar da precariedade, a madeira para ser carbonizada é comprada diretamente da gigante francesa Vallourec, que adquiriu as operações da antiga Mannesmann e é a sétima maior siderúrgica em operação no Brasil. 

Após receberem denúncias de exploração do trabalho, auditores fiscais do Ministério do Trabalho resgataram, no final de outubro, 14 trabalhadores de condições análogas à escravidão em duas carvoarias de Minas Gerais. Uma fazenda da Vallourec também foi inspecionada, já que parte do trabalho era feito na propriedade da empresa.  

Além de produzir tubos de aço, a holding Vallourec Tubos do Brasil controla outras companhias, como uma mineradora de ferro e uma unidade florestal, que destina parte da madeira para sua siderúrgica e comercializa o excedente. Foi de suas plantações de eucalipto que a Vallourec vendeu madeira de baixa qualidade para as duas carvoarias flagradas com mão de obra escrava, comandadas por Adilson Fernandes Santos.

Carvoaria flagrada com trabalho escravo fornece para pequenas siderúrgicas em MG. Trabalhadores eram contratados da empresa Alterosa Transporte e Terraplanagem (Foto: Ministério do Trabalho/Divulgação)

Os auditores constataram nas carvoarias que os trabalhadores atuavam sem qualquer proteção respiratória, item essencial para prevenir câncer por exposição contínua a materiais nocivos. “Consideramos muito grave a exposição de trabalhadores a gases tóxicos e substâncias cancerígenas sem proteção”, destacaram os auditores no auto de infração a que a reportagem teve acesso.

A primeira carvoaria inspecionada fica na fazenda Vargem Grande, em Olhos D’água, com 74 fornos para a queima de carvão, e a segunda, na fazenda Pé do Morro, em Guaraciama, com 50 fornos em funcionamento. Além das duas carvoarias, os auditores-fiscais inspecionaram a frente de trabalho de corte e carregamento de eucalipto, na fazenda Corredor, em Bocaiúva, que pertence a Vallourec.  

Pelo contrato firmado entre a siderúrgica francesa e o proprietário das carvoarias, a madeira era derrubada pelos funcionários da Vallourec, mas o corte em toras e o carregamento dos caminhões era realizado pelos funcionários de Santos. Segundo a fiscalização, o carregamento de tratores e do caminhão era feito manualmente. “No enchimento de um forno, o forneiro encarregado da tarefa movimenta até 7.000 kg em toras de madeira, muitas vezes assumindo posturas prejudiciais ao sistema osteomuscular para arrumação da carga no interior dos fornos”, destacam os auditores fiscais.

Na fazenda da Vallourec usada pelos trabalhadores das carvoarias, a fiscalização destacou que não havia sanitários móveis disponíveis para os trabalhadores. Em uma das carvoarias também não havia banheiro. Em outra, o sanitário era distante meio quilômetro (a legislação prevê distância máxima de 150 m), mas a descarga não funcionava. 

Para os auditores fiscais do trabalho, Santos não tomou os mínimos cuidados com os trabalhadores, suprimiu garantias constitucionais básicas e atingiu a dignidade deles. “Frentes de trabalho precárias, não controle do uso de equipamentos de proteção individual, alojamentos degradantes, áreas de vivências inadequadas ou inexistentes, fornecimento de água potável precário, tudo contribuindo para imposição das condições degradantes”, listam os servidores no auto de infração. 

Chamados para prestar esclarecimentos, representantes da Vallourec se comprometeram a aumentar a fiscalização da cadeia produtiva.  

Procurada, a Vallourec afirmou que, na época que celebrou contrato com a Transportes e Terraplanagem Alterosa Ltda (empresa de Santos), não havia qualquer informação que apontasse desrespeito aos direitos humanos e aos princípios éticos fundamentais que protegem a dignidade, o respeito e a liberdade dos colaboradores. “A Vallourec condena firmemente toda e qualquer forma de trabalho forçado/escravo ou análogo”, disse a empresa, em nota (leia a íntegra). 

Em janeiro, a companhia se envolveu em outra infração em Minas. Uma barragem da mina Pau Branco transbordou e a lama invadiu as pistas da BR-040, próximo a Belo Horizonte. Multada em R$ 288 milhões pelo governo de MG, a siderúrgica francesa entrou com um recurso para não pagar a multa. Como o trânsito estava impedido pela lama na rodovia, uma família buscou um caminho alternativo, sofreu um acidente e os cinco passageiros do veículo morreram.  

Já o proprietário das carvoarias, Adilson Fernandes Santos, negou a precariedade das condições de trabalho e confirmou que comprava a madeira da Vallourec. “Eu faço retirada da madeira, tudo certinho e organizadinho”, diz. 

Para Santos, a ação da fiscalização foi injusta, pois, segundo ele, os trabalhadores tinham carteira assinada e estavam trabalhando de forma correta. Sobre os 13 trabalhadores resgatados que não estavam registrados, Santos afirma que eles não trabalhavam na carvoaria, mas em um serviço temporário de construção de uma cerca na fazenda. 

Alojamento de trabalhadores apresentava condições degradantes, sem cozinha nem banheiro adequados (Foto: Ministério do Trabalho/Divulgação)

“Por ser uma atividade rural, o anteparo previdenciário é essencial nas ocorrências de sinistros e contagem de tempo para aposentadoria”, destacou a fiscalização. A falta de registro dos trabalhadores caracteriza crime previsto no artigo 297 do Código Penal, que prevê multa e até seis anos de prisão. 

“Sabe um empreendedor que está desmotivado? Sou eu, Adilson Fernandes Santos. Eu achei que, pelo tanto que trabalhei, eu teria mais valor, pois sou uma pessoa que dava emprego e trabalhava. Mas a gente não pode falar nada, pois a lei é deles e eles fazem a lei”, afirma. Segundo Santos, o carvão que produz é vendido para pequenas siderúrgicas que produzem ferro-gusa próximo a Sete Lagoas, na região central de Minas Gerais. 

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea no Brasil: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de se desligar do patrão); servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas); condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida); ou jornada exaustiva (levar o trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).


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