Enquanto Ana* e o marido esperam pela indenização de seus direitos, as quatro filhas se alimentam de doações. Há dias em que a comida só é suficiente para as crianças. “Eu perdi as esperanças de receber algo. Nós pensávamos que aqui a Justiça seria mais rápida do que na Bolívia, mas não há justiça para nós”.
A fome e as contas não esperam. Dois anos após serem resgatados de uma oficina de costura em trabalho escravo, o casal boliviano continua trabalhando em turnos exaustivos, das 7h até 1h da madrugada, com serviços informais que pagam no máximo R$ 3 por peça de roupa. Sobrevivem com a ajuda de doações, serviços que prestam para uma ONG e auxílio social.
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Entre junho e setembro de 2020, os dois costuraram para a Program, que se autointitula “a maior marca plus size do Brasil”, em situações desumanas no centro de São Paulo. A Anfa, empresa que responde pela marca, foi condenada em primeira e segunda instâncias por manter a família, e uma outra funcionária boliviana, em situação análoga à de escravo.
O Tribunal Regional do Trabalho determinou em fevereiro deste ano que a empresa pague indenização às vítimas em caráter imediato. A empresa, no entanto, recorreu e agora o processo tramita no Tribunal Superior do Trabalho (TST).
A Defensoria Pública da União (DPU) instaurou a “execução provisória” e cobrou, em março, o pagamento de R$ 364,3 mil, em valores atualizados. Até a publicação desta reportagem, a 10ª Vara do Trabalho de São Paulo, responsável pela execução, ainda não havia tomado medidas para penhorar os bens da empresa. A vara informou à Repórter Brasil que a execução está na fase de “verificação de cálculos”. O prazo é de 120 dias, apesar de ser um caso de violação de direitos humanos, o que exigiria uma resolução mais rápida.
“Quando o sistema de Justiça falha em dar uma resposta célere para esse problema, essas famílias ficam na rota da revitimização. No Brasil, eles conseguem trabalho apenas dentro desse ciclo de exploração”, alerta João Paulo Dorini, defensor público federal. “Essa família deveria ter uma verba alimentar garantida até o final da tramitação do processo. Os casos de trabalho escravo não podem entrar na fila de outros processos”, ressalta a auditora fiscal do trabalho Lívia dos Santos Ferreira. Ambos atuaram no resgate da família boliviana.
O pagamento de indenizações costuma sair de forma rápida a resgatados do trabalho escravo, logo após as fiscalizações, pela via administrativa. No ramo têxtil, porém, as autuações geralmente ocorrem em oficinas terceirizadas, o que dificulta o pagamento. No resgate de Ana e João, os auditores tentaram um acordo com a Program, mas a empresa não aceitou. Por isso, a DPU teve que entrar na Justiça para cobrar os direitos trabalhistas devidos – e a empresa recorre, gerando morosidade e deixando os resgatados vulneráveis.
Atualmente, Ana e João chegam a entregar 300 peças de roupas por semana para agenciadores que recrutam mão de obra barata pela internet. Também costuram tapetes para uma ONG que os auxilia e recebem Auxílio Brasil. Ainda assim, com quatro crianças pequenas, as contas não fecham.
Por serem imigrantes, ela conta que pagam valores de aluguel maiores do que os praticados no mercado: R$ 1.500 por um sobrado na periferia de São Paulo. O que recebem é suficiente para o aluguel e as demais despesas, como água e luz. A comida vem de doações.
‘Não trabalha, não come’
Ana estava grávida de sete meses quando foi resgatada de uma casa precária, no bairro Casa Verde Alta. Ali, costuravam e moravam, sem qualquer estrutura ou segurança. Enquanto ela e o marido trabalhavam, em jornadas que passavam de 16 horas por dia, as filhas ficavam sozinhas, trancadas no quarto.
Enquanto um vestido da marca custa entre R$ 280 e R$ 300 na loja online, Ana e João recebiam, cada um, em torno de R$ 800 por mês de trabalho exaustivo, sem registro em carteira.
Ela permanecia por horas sentada na máquina. “Se eu levantasse, a dor era muito forte e eu não conseguia voltar”. O gerente da oficina, que enviava as peças costuradas à Program, não permitia que a família tivesse acesso a serviços de saúde. Quando as dores foram muitas, ela deixou de costurar por um dia e foi ao hospital. Então, ficaram sem comida. “Ele dizia: ‘Se não trabalha, não come.’ Deixou minhas filhas sem comer”. Hoje, ainda sente fortes dores nas costas, além das marcas que não são físicas. As meninas choram quando relembram o que viveram. O medo e as humilhações, a falta de alimento e de estrutura.
No dia 23 de setembro de 2020, a família foi resgatada. “A gente ficou sem um real no bolso porque naquela semana ainda não havíamos recebido”, explica Ana.
A fragilidade dos locais de acolhimento os expôs novamente ao ciclo de violações – e traz urgência para repensar as políticas públicas voltadas ao pós-resgate.
Como não havia abrigos públicos que aceitassem a família toda, o pai foi separado da esposa grávida e das filhas. “Parecia que eu estava em uma prisão”, ela diz. Ficaram por cerca de dois meses nessa situação. Uma semana antes do nascimento da bebê, foram transferidos para um abrigo misto, porém destinado a moradores em situação de rua. “Nós não conseguimos ficar tranquilos ali com as crianças”, Ana relata.
Após três meses do resgate, quando começaram a receber o seguro desemprego, conseguiram alugar uma casa pequena, receberam doações de móveis e eletrodomésticos e foram morar sozinhos.
A auditora Lívia Ferreira explica que, em todo o resgate, houve uma intensa mobilização dos órgãos públicos em acolher a família. “O atendimento prestado pelos atores envolvidos foi célere e com o intuito de dar o melhor acolhimento à família. O que não respondeu à altura foram os equipamentos disponíveis”.
A expansão dessas políticas se faz necessária, ela ressalta. “O combate ao trabalho escravo funciona muito bem na repressão, mas o pós precisa de fortalecimento. Precisamos que o fluxo de atendimento à vítima seja expandido para todas as esferas do poder público que atuam no caso, não só entre a fiscalização, a Defensoria Pública, a assistência social”.
Dorini ressalta que, diante desse contexto, a revitimização de imigrantes resgatados é uma realidade que persiste. “É mais comum do que a situação dos resgatados brasileiros no trabalho rural, por exemplo. Eles conseguem a indenização e voltam para suas cidades. Os imigrantes ficam com o intuito de buscar uma situação melhor. Eles vieram em busca de um sonho”.
Sonho ainda distante para a família boliviana. A indenização, eles dizem, seria o primeiro passo para a conquista. Não pensam em voltar para a Bolívia por enquanto. Querem comprar uma casa e se estabilizar financeiramente para, então, conseguirem retornar. “Nós viemos com um sonho. Ainda não o concluímos.”
Marca em expansão
Em suas redes sociais, a Program comemora a expansão, com novas lojas e coleções. Em 2020, em uma reportagem sobre empresas de sucesso, Alexandre Iossephides, que cuida da empresa ao lado do pai, Jean Iossephides, contou que já contabilizava mais de 60 lojas pelo Brasil, além do espaço de compras online.
À Justiça, a empresa alegou que não tinha conhecimento da situação dos trabalhadores, já que seu vínculo de contrato era o gerente da oficina. No relatório de fiscalização, entretanto, o relato da funcionária da Anfa responsável pelas oficinas de costura apontou falhas na fiscalização da empresa. Ela relatou que a Program contava apenas com quatro ou cinco oficinas grandes e que as demais eram pequenas. Informou que não visitava todas as oficinas e que, inclusive, não havia visitado a oficina onde trabalhavam os bolivianos, contratada havia três anos.
A Repórter Brasil tentou contato por meio de telefone, e-mail e advogados da Program, mas não obteve retorno.
Enquanto aguardam, Ana, João e as quatro filhas vivem nova história de exploração. O barulho das máquinas de costura atravessa a madrugada. “Eu já perdi a esperança…”.