Se a produtividade da lavoura de soja da família Lucion tiver seguido a média da safra 2022/23 no Mato Grosso (60 sacas por hectare), apenas o que foi plantado em uma parcela de 235 hectares das fazendas Santa Ana, em Cláudia, no Mato Grosso, pode lhes render um valor próximo de R$ 2 milhões, considerando a cotação do grão em março, no estado.
Mesmo descontados os investimentos em fertilizantes, agrotóxicos e maquinário, o negócio parece estar valendo a pena, porque a família vem aumentando a área plantada dentro desta parcela de 235 hectares. Na safra 2018/2019, apenas parte da área foi cultivada, segundo dados do SojaMaps – um programa de monitoramento via satélite mantido pela Universidade Estadual do Mato Grosso. Mas a lavoura foi crescendo até cobrir, segundo o programa, toda a extensão da parcela na safra colhida no ano passado. Analistas consultados pela Repórter Brasil confirmaram que na safra atual, 2022/23, a área foi inteiramente coberta pela soja outra vez.
Seria apenas um bom negócio se a produção nesta faixa da propriedade não fosse ilegal. Toda a soja que cobre os 235 hectares da parcela está em área embargada, onde os órgãos ambientais flagraram desmatamento feito sem autorização. Pela infração, a família Lucion está sendo investigada pelo Ministério Público Federal e pelo MP do Mato Grosso. A multa imposta pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente pela derrubada da porção de floresta amazônica que antes ocupava o terreno, é de mais de R$ 1 milhão; já a penalidade por descumprimento do embargo, constatado em 2021, passa de R$ 1,7 milhão. Se os processos prosperarem, o valor pode ser multiplicado.
O plantio da família Lucion em área embargada coloca sob suspeita a venda de soja para Cargill (de 2019 a 2022), Amaggi e Cofco (2019), destinada a armazéns das empresas nos municípios de Sinop e Cláudia. A Bunge, por sua vez, comprou milho dos Lucion em 2019 – a empresa afirma que “não mantém relação comercial com as áreas citadas” (veja a íntegra), mas a Repórter Brasil obteve dados de documentos fiscais que atestam os negócios com a Fazenda Santa Ana.
Em seus esclarecimentos, as tradings dizem que no momento de suas compras o produtor não estava incluído em nenhuma lista restritiva e que suas políticas de verificação de fornecedores impedem compras de áreas embargadas – no caso dos Lucion, a área da fazenda é maior que os 235 hectares em que é proibido plantar, e, portanto, a fazenda comportaria também produção regularizada.
As empresas são signatárias da Moratória da Soja, que impõe o compromisso de não adquirir nem financiar soja cultivada em áreas desmatadas na Amazônia. Segundo a Abiove, a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais, que integra o Comitê de Auditoria da iniciativa, desde o início de 2021 há áreas da fazenda bloqueadas para venda – o que foi insuficiente para impedir os negócios feitos até o ano passado. A íntegra das notas enviadas à Repórter Brasil pode ser lida aqui.
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A família Lucion foi procurada para comentar o caso. Vinícius Lucion, um dos herdeiros de Clóvis Lucion, o patriarca responsabilizado pela Sema-MT pelo desmate e descumprimento do embargo, disse, informalmente, desconhecer que a área embargada ao norte da propriedade esteja plantada com soja, embora essa parcela da propriedade tenha sido registrada em nome de uma empresa na qual é sócio de uma irmã.
Lucion indicou um advogado para responder formalmente em nome da família, mas o representante não retornou as tentativas de contato da reportagem. O espaço permanece aberto para suas manifestações.
Suspeita de lavagem de soja
O caso da família Lucion revela que apesar dos procedimentos utilizados pelas empresas para reduzir o risco de compra de grãos em desacordo com o que prevê a Moratória da Soja, nem as maiores tradings conseguem eliminar por completo essa possibilidade. Isso porque a lavagem de grãos – quando um produtor repassa soja irregular misturada ou fazendo-se passar por lotes produzidos em áreas com autorização – é uma realidade no Brasil e não há como garantir que não ocorreu no caso dos Lucion.
A fazenda da família está registrada de forma fragmentada no Cadastro Ambiental Rural (CAR) – que é o documento público utilizado por empresas para monitorar a legalidade ambiental dos fornecedores. No papel, são sete propriedades diferentes, embora estejam todas coladas umas às outras.
Desde o início de 2021, a Moratória da Soja impôs bloqueio sobre parte dos sete lotes, indicando que as empresas não deveriam comprar soja plantada nessas parcelas do terreno. A outra parte, entretanto, estava liberada para negociações. Para complicar, alguns desses lotes bloqueados estavam identificados no sistema de controle da iniciativa pelos nomes dos antigos proprietários.
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Por outro lado, as notas fiscais de venda da soja e do milho dos Lucion trazem todas o mesmo endereço, que é também o da sede da propriedade, em um dos sete lotes registrados no CAR. Ou seja: a terra é fragmentada, mas a comercialização da produção é centralizada, dificultando a checagem real de sua origem.
Essa estratégia é comum entre fazendeiros, que assim podem declarar que plantam em um CAR livre de embargos, ainda que na prática, utilizem a área toda para a lavoura, inclusive a área onde é proibido produzir.
A Abiove admite dificuldade para controlar a triangulação de soja e defende que as fazendas de um mesmo titular que sejam limítrofes estejam registradas em um mesmo CAR, como requer a legislação. “Por outro lado, não temos gerência sobre esta situação, pois trata-se de uma decisão dos proprietários de imóveis rurais”, afirma.
Segundo a entidade, em caso de suspeita de lavagem, as tradings de grãos devem tomar medidas como analisar as distâncias e as rotas entre o imóvel rural embargado e o local de entrega da carga, averiguar se há grau de parentesco entre donos de propriedades vizinhas, calcular produtividade máxima da área e mesmo contratar uma empresa especializada para garantir a origem livre de desmatamento da soja. Não há informações sobre se essas precauções foram ou não tomadas no caso dos Lucion.
Mas a Abiove defende a eficácia do monitoramento: “em 13 anos [de vigência da Moratória da Soja], a área plantada mais do que triplicou no bioma Amazônia, mas a conversão de floresta foi de apenas 3,5%”, conclui.
Floresta que não queima, seca
Além dos negócios feitos com as grandes tradings após os satélites revelarem o aparecimento da lavoura na área embargada, a família Lucion pode estar trabalhando para abrir uma nova área na propriedade, conforme constatou a reportagem quando esteve no município de Cláudia, em setembro de 2022. Flagramos um grande incêndio na borda sul da fazenda Santa Ana, na extremidade oposta onde está o embargo, onde mais de 400 hectares de floresta amazônica arderam em poucos dias. Conforme revelam imagens de satélite, o incêndio ocorreu no período em que a prática é proibida.
Segundo Vinícius Lucion, o fogo foi originado em um assentamento rural vizinho – uma justificativa que bombeiros do Mato Grosso dizem ser comum, mas normalmente inverídica.
Dados do Instituto Centro de Vida (ICV), revelam que em 2019, enquanto o monitoramento da Moratória da Soja apontava 85 mil hectares plantados fora das regras estabelecidas pelo acordo, foram cultivados quase 1 milhão de hectares de soja em propriedades com desmatamento ilegal – ou 10% da área cultivada naquele ano, no estado. “O desmatamento que ocorre dentro dos imóveis com soja, mas fora da área de cultivo, mesmo sendo desmatamento ilegal, está fora do escopo do acordo”, ressalta o ICV.
O aumento do desmatamento e das queimadas na Amazônia produz efeitos diversos. Um estudo conduzido por 30 cientistas brasileiros e divulgado no início de setembro mostra que os recordes das infrações ambientais nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro causaram um aumento de 89% nas emissões de gás carbônico em 2019 e de 122% em 2020, na comparação com a média anual registrada entre 2010 e 2018.
No Brasil, o desmatamento é o maior fator de emissão de gases de efeito estufa.
A biodiversidade também paga o preço. Nos grupos de WhatsApp das comunidades locais, não faltam registros de animais queimados e sufocados pela fumaça dos incêndios criminosos. “A gente até consegue controlar o fogo, mas só tiramos ele de perto das nossas casas. Dentro da floresta ele se alastra”, explica Messias Braz, pequeno produtor de guaraná de Vila Atlântica, um povoado no caminho entre Marcelândia e Cláudia, que se esforçava para controlar as chamas que se aproximavam perigosamente de sua pequena produção. “Depois você acha macaco morto, cobra, tamanduá com a mão queimada. Eu mesmo já salvei foi muito por aí”, complementa.
Mesmo espécies recém descobertas, como o macaco Zogue-zogue (Plectorucebus Grovesi) estão ameaçadas. Animal endêmico do norte do Mato Grosso descrito em 2018, ele já integra a lista dos 25 primatas com maior risco de extinção no planeta. “É um animal que ocorre naturalmente apenas nessa região, que não vai se expandir para outro local. Isso gera muita preocupação em função dos impactos decorrentes da expansão agropecuária, como desmatamento e queimadas, que levam a perda de habitat e à desconexão dos fragmentos das florestas”, alerta a doutora em Ecologia e Conservação, Angele Tatiane Martins Oliveira.
Até os ambientes aquáticos sofrem com as queimadas. “O calor aquece a água e mata os peixes”, revela Solange Arrolho, que coordena o Centro de Biodiversidade da Amazônia Meridional. A cada novo incêndio, a mata que não queima, resseca, o que por sua vez a torna mais suscetível à queimadas. “É uma lógica perversa”, conclui a cientista.