Trabalheira #18: Como a Inteligência Artificial reforça preconceitos no RH?

A Inteligência Artificial já é uma realidade nos departamentos de RH das empresas. Mas, além de garantir eficiência no processo de seleção de candidatos, a tecnologia também pode reforçar preconceitos
 13/04/2023

Dentre as ferramentas de Inteligência Artificial usadas pelos departamentos de RH das empresas, uma das mais incensadas são as plataformas de ATS — sigla para Applicant Tracking System (em português, Sistema de Rastreamento de Candidatos).

Basicamente, elas operam como uma espécie de “marketplace de emprego”, reunindo empresas que oferecem e pessoas que procuram trabalho.

Só que o ATS vai muito além dessa mera intermediação, ao organizar todo o processo de recrutamento e seleção de candidatos.

Isso quer dizer que esses sistemas automatizados são capazes não só de fazer anúncios, mas principalmente de analisar currículos e, por fim, ranquear os perfis mais indicados para a vaga disponível.

Mas será que as fórmulas desses algoritmos são livres de vieses e preconceitos?

Esse é o tema do quarto episódio da nova temporada do Trabalheira.

Ouça o episódio na íntegra:

Ficha técnica

Apresentação: Ana Aranha e Carlos Juliano Barros

Roteiro: Carlos Juliano Barros

Tratamento de roteiro: Ana Aranha

Edição, montagem e finalização: Victor Oliveira

Trilha sonora: Mari Romano e João Jabace (Rádio Novelo)

Identidade visual: Débora de Maio

Redes Sociais: Tamyres Matos

Distribuição: UOL

Para falar com a equipe: [email protected]

O Trabalheira é uma realização da Repórter Brasil

Roteiro do episódio

E4_T3 – ATS

Roteiro original: Carlos Juliano Barros
Tratamento de roteiro: Ana Aranha

Caju
Oh… Ana! Hoje, o Trabalheira vai começar com um quiz, pode ser? Vai ser uma espécie de Show do Milhão, mas sem a ajuda dos universitários. Topa?

Ana
Opa, Caju! Começou animado, hein? Bora lá! Mas, cara, falar em Show do Milhão é passar recibo de tiozinho, hein? Você gosta né…

Caju
Pior que eu adoro mesmo, Ana. Quando a gente bate nos 40, a gente liga o turbo do “modo tiozinho”. Mas bora então para o nosso quiz?!

Ana
Bora!

Caju
É o seguinte: imagina três candidatos disputando uma vaga de emprego. A primeira etapa é preencher um formulário digital, tudo pela internet. O primeiro candidato é um jovem de uns 30 anos, super qualificado e com pós-graduação em universidade gringa e tudo, que resolveu tirar um ano sabático pra viajar.

Ana
Ok… tô anotando aqui!

Caju
A segunda é uma mulher, também de 30 e poucos anos, com uma vasta experiência na área — só que tem um detalhe importante: ela sempre foi PJ, ok? Quer dizer, há muitos anos ela vinha trabalhando sem carteira assinada. Até que um dia ela decidiu engravidar. E aí essa nossa personagem ficou uns 7, 8 meses cuidando do filho. Depois desse tempo, ela entendeu que estava na hora de buscar um trabalho em empresa, com mais garantias e benefícios…

Ana
Caramba, Caju, eu nem sei direito ainda sobre o que é esse quiz, mas já estou me compadecendo com essa mãe aí, viu?

Caju
Pois é… Mas eu ainda não apresentei o terceiro e último candidato.

Ana
Verdade. Termina logo esse quiz aí, Caju!

Caju
O terceiro é um homem já na casa dos 50, também muito competente e com passagem por grandes empresas, mas que precisou tirar um ano para cuidar da mãe doente que, no final das contas, acabou falecendo. Aí, depois que a mãe morreu, ele voltou a procurar emprego… Agora, finalmente, vem o quiz: qual dos três conseguiu a vaga?

Ana
Olha, assim de bate-pronto, é difícil… Mas eu acho que a mulher com certeza não foi por causa do filho pequeno… A gente sabe como isso impacta na hora da contratação, né? E eu também arriscaria dizer que o homem de 50 e tantos anos não conseguiu a vaga porque muita gente poderia dizer que ele é caro e “velho”, com muitas aspas aí nesse “velho”. Então, eu chutaria que o escolhido foi o pós-graduado no exterior que estava curtindo a vida adoidado. Acertei?

Caju
Ana, foi um belíssimo palpite. Mas eu vou deixar o Silvio Santos responder pra você.

Ana
Como assim, Caju? Quem conseguiu a vaga, afinal?

Caju
Então, Ana… Nenhum dos três conseguiu a vaga. Aliás, os três nem chegaram a ser entrevistados. Pra ser mais preciso ainda, os currículos deles foram sumariamente descartados pelo sistema de recrutamento e seleção da empresa, por mais qualificados que eles fossem. E sabe por quê?

Ana
Tô tentando entender aqui…

Caju
Isso aconteceu porque todos eles estavam há mais de seis meses sem trabalhar. E o sistema de recrutamento que a empresa usa tem um algoritmo, uma inteligência artificial que elimina automaticamente do processo de seleção qualquer pessoa que esteja “parada”, também com muitas aspas aí, há mais de um semestre.

Ana
Na cabeça do algoritmo, a pessoa que fica seis meses desempregada não é boa o suficiente. Porque, se ela fosse realmente boa, ela não estaria há seis meses sem trabalho. É isso?

Caju
Essa pode ser uma explicação, Ana. Mas, pra ter certeza, a gente precisaria perguntar pra quem programou o algoritmo, né? E só pra ficar claro: esse quiz não veio da minha cabeça, não… Eu pesquei esse exemplo de um estudo bem interessante publicado em conjunto pela Universidade de Harvard e pela consultoria Accenture, uma das mais conhecidas do mundo. O nome do estudo é “Hidden workers: untapped talent”. Numa tradução livre, seria algo como “Trabalhadores invisibilizados: talentos não aproveitados”.

Ana
Mas do que esse estudo trata exatamente, Caju?

Caju
Então, Ana. Essa pesquisa fala dos sistemas de seleção e recrutamento de mão de obra chamados de ATS. ATS é uma sigla em inglês que quer dizer Applicant Tracking System – traduzindo, seria algo como Sistema de Rastreamento de Candidatos. A cada dia que passa, esses programas de ATS têm sido mais e mais utilizados pelos departamentos de RH das empresas.

Ana
Saquei… isso está me lembrando a Catho — aquele site de busca de emprego em que você entrava, cadastrava o seu currículo e esperava ser chamado pra uma entrevista… Eu mesmo cheguei a colocar meu currículo lá na Catho, mas nunca fui chamada.

Caju
Então, Ana, na verdade, esses sistemas de ATS vão bem além do que a Catho fazia nessa época em que você estava procurando emprego. Mas lembra quando você me perguntou sobre o motivo que levou o sistema a excluir o pessoal que estava há seis meses sem trabalhar?

Ana
Sim, lembro. Até porque foi um minuto atrás, né?

Caju
Sinal de que você estava atenta! E o que eu te respondi?

Ana
Que precisaria perguntar pra quem programou o algoritmo…

Caju
Pois é… eu dei essa rodeada toda pra introduzir uma palavra que vai ser muito importante no nosso papo de hoje: VIÉS. O grande lance é que a gente tende a achar que os algoritmos são fórmulas matemáticas objetivas, imparciais e infalíveis. Mas a real é que elas são cheias de vieses, quer dizer, de vícios de interpretação que podem levar a resultados bastante problemáticos. Inclusive, esses filtros podem acabar excluindo candidatos muito qualificados por detalhes bem questionáveis, como mostrou esse estudo aí da Universidade de Harvard que eu citei.

Ana
Saquei. Essa história do viés do algoritmo é um papo sempre rola aqui, né? Então, bora chamar a vinheta e mergulhar de cabeça no assunto. Seja bem-vinda, seja bem-vindo ao Trabalheira, um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil. A nossa pegada aqui é discutir o futuro do trabalho!

Caju
Essa já é a terceira temporada do Trabalheira! Estamos nas principais plataformas de áudio. Mas também rola de ouvir outros episódios pelo nosso site: reporterbrasil.org.br/radiobatente. Lá também dá pra ler a íntegra do roteiro e conferir algumas referências citadas na nossa conversa.

(VINHETA)

Ana Navarro
Quando a gente olha para o ATS em si, o que que ele vai fazer? Ele tem uma série de inteligências por trás dele, tá? E aí eu vou falar da perspectiva do recrutador que é: ele vai olhar se você é o melhor candidato para os pontos que eu coloquei, ou que eu parametrizei dentro da da plataforma, ele já vai me ranquear você perante esses pontos. Então, por exemplo, se você mora… se um dos fatores for você morar longe ou não de onde você vai trabalhar, se você tem o nível de inglês ou não que eu estou precisando para essa vaga, se você tem um nível de conhecimento para essa vaga… sei lá, Qualquer coisa que eu coloque ali dentro, e que eu parametrize na plataforma, ela já vai me ranquear sem que eu tenha que fazer filtros ali por de trás: seja tempo de experiência, o que quer que seja que eu tenha ali nessa plataforma, ela já vai me trazer um ranking de acordo com o que eu coloquei.

Ana
Essa é a Ana Navarro, gerente de Talentos & Organização e especialista em Recursos Humanos da Accenture, aquela consultoria famosa que a gente citou no começo do programa.

Ana Navarro
E aí… eu tenho uma… quando eu olho para o processo de recrutamento, você imagina: sei lá, se eu tiver cuidando de 1.500 vagas, antes do ATS, ou até mesmo quem trabalha sem o ATS, ele tem que ficar fazendo filtros e combinações diversas. Então, você imagina o trabalho que eu tenho para um recrutador para conseguir chegar no melhor ranking dos cinco melhores candidatos para mandar para um gerente entrevistar. Então, eu tenho todas essas… Eu tenho uma… não vou dizer robotização, mas uma automação muito grande para a área de recrutamento, que me deixa ficar mais focada ali, nas entrevistas que eu preciso fazer inicialmente.

Ana
Caju, essa explicação inicial da minha xará Ana dá uma boa pincelada sobre o que faz um sistema de recrutamento de ATS. Pra quem trabalha no RH de uma empresa e está à procura de alguém para uma vaga, o grande diferencial é capacidade da inteligência artificial de organizar as informações e, principalmente, ranquear os candidatos. Resumindo, é a facilidade de trazer os perfis dos candidatos com informações mais mastigadas…

Caju
Esse lance do ranqueamento parece ser o coração dessa história toda, Ana.

Ana
Totalmente, Caju. E é um diferencial grande das plataformas de ATS em relação ao que faziam até pouco tempo atrás aqueles sites de anúncios de vagas de trabalho. Eu estava aqui pensando: o que aqueles sites faziam, na verdade, era transportar para o mundo digital uma lógica do mundo material. Em vez de ler um anúncio de vaga num classificado de jornal e deixar no departamento de RH da empresa o currículo em papel, as pessoas passaram a fazer isso através da internet. Só que o ATS vai muito além disso..

Caju
Com certeza, Ana. O Fabrício Barili, um pesquisador que faz parte do Digilabour, um grupo que estuda o trabalho na era digital lá na Unisinos, no Rio Grande do Sul, escreveu um artigo científico sobre esses sistemas de recrutamento e seleção de trabalhadores. E ele faz uma análise bem interessante sobre como funciona, na prática, uma plataforma de ATS.

Fabricio Barili
Então, ela vira… e eu digo nesse artigo que ela vira tipo um marketplace de empresas, empregos e pessoas. Por quê? Porque, com uma submissão de currículo meu, eu posso me aplicar em várias vagas ao mesmo tempo. O grande diferencial dela é nesse modelo: de encontrar o melhor perfil. Basicamente isso. Não simplesmente “vou possibilitar que tu se candidate”. Não… eu vou deixar que tu se candidate, mas, para o RH, primeiro: eu não vou entregar todo o mundo. Eu vou entregar a galera já ranqueada. E daí eu vou reduzir o trabalho ali do RH. Então, o fato de ela ordenar, ela já direciona as pessoas, reduz tanto a parte da contratação e eu reforço que um dos gastos do RH é tu dar o treinamento para pessoa habilitada, selecionada, recrutada, e ela sair da empresa logo depois. Tu tem uma perda muito maior ali. Então, a preocupação dela é encontrar esse fit cultural para que tu fique dentro da empresa, além de ser uma pessoa capacitada, que se adeque à cultura da empresa.

Ana
Caju, essa fala do Fabrício complementou a entrevista da Ana Navarro, da Accenture, e trouxe vários insights bem interessantes. O primeiro é esse lance de entender que as plataformas de ATS também se organizam com uma lógica de “marketplace”.

Caju
Pode crer, Ana. Fiquei pensando nisso também. Não é coincidência essas plataformas de ATS terem surgido na mesma geração de outras startups e empresas de tecnologia conhecidas. Todas elas bebem da mesma fonte. É aquela velha historinha da plataforma que, apenas e tão somente, faz o meio de campo entre duas pontas. No caso da Amazon, entre o vendedor e o cliente. No caso da Uber, entre o motorista e o passageiro. No caso das plataformas de ATS, entre as empresas que oferecem o emprego e as pessoas que procuram um emprego.

Ana
Exato. Por enquanto, Caju, os nossos entrevistados enfatizaram apenas os pontos positivos, digamos assim, dessas plataformas. E, de fato, para quem trabalha com RH, não dá pra negar que elas aceleram o processo de seleção, ajudam a peneirar os candidatos e a encontrar pessoas que tenham o tal “fit cultural”, como disse o Fabrício, com a empresa. Mas, se você reparar, Caju, a gente está o tempo todo falando de EFICÁCIA — e não necessariamente de JUSTIÇA, né?

Caju
Pois é, Ana. Agora você tocou no ponto central dessa discussão. Boa parte dessas plataformas de tecnologia — e isso não vale só para as de recrutamento e seleção de trabalhadores — são ótimas em dar mais eficiência aos mercados em que elas operam. Mas elas não deixam esses mercados necessariamente mais justos. E aí a gente retoma aquele papo de antes da vinheta sobre os impactos dos VIESES dos algoritmos — e de como eles ajudam a reproduzir e a perpetuar alguns preconceitos.

Ana
E não dá para falar desse assunto sem citar um caso bem conhecido que aconteceu com a Amazon, em 2018. Acho que foi a primeira vez que veio à tona um escândalo de grandes proporções envolvendo esses algoritmos de recrutamento e seleção. E, nesse caso, o que aconteceu é que a inteligência artificial acabou prejudicando as mulheres que se candidataram às vagas.

Caju
Como era mesmo, Ana? Era algo do tipo: “é mulher? Tá fora”.

Ana
Caju, já que a gente está falando aqui do conceito de justiça, vamos ser justos e precisos: não é que o algoritmo eliminava automaticamente as mulheres da competição pela vaga. Era mais complexo do que isso, mas eu vou tentar explicar! Essa história tinha a ver com a própria capacidade do algoritmo de aprender e processar as informações — aquilo que a gente chama de “machine learning”. Então, mesmo que o gênero da pessoa não fosse um critério automático de eliminação, o algoritmo identificava algumas palavras utilizadas nos currículos que formavam um viés a favor dos homens. O Jeffrey Dastin, que é um jornalista da Reuters que só cobre a Amazon, deu uma boa definição numa matéria. Ele escreveu que “o sistema da Amazon ensinou a si mesmo que os candidatos masculinos eram preferíveis”. A Ana Navarro, da Accenture, também lembrou dessa história.

Ana Navarro
Eu acho que o principal desafio aqui é… e, principalmente, quando a gente tá falando de plataformas de ATS, que a gente acaba diretamente interligando isso com inteligência artificial, machine learning e tudo isso… E eu acho que tem um case aí super famoso da Amazon, de biases, de preconceitos, que o algoritmo acabou replicando dentro da plataforma e excluindo os currículos de mulheres, se eu não me engano, no caso. Eu não sei se você já viram, recomendo que quem não viu veja, tem uma série no Netflix chamada Cold Biases, que é muito bacana e ele explica isso de como é que esse negócio funciona. Porque o algoritmo nada mais é do que replicar o nosso passado. Ele é feito pelos humanos. Então, se a gente vive numa sociedade que a gente hoje já tem consciência de tudo o que vem acontecendo e ele foi ensinado tudo o que está para trás… É, ele não tem como prever o futuro, ele vai continuar replicando o que a gente tem no passado. Então acho que esse é o principal desafio hoje do RH: entender e saber fazer a pergunta correta para o algoritmo ou até mesmo a gente começar a ter alguns outros tipos de papéis dentro do RH novos, como um professor de inteligência artificial. Então, o que eu ensino essa inteligência artificial, a não usar, ou não entender, ou não flegar, ou não fazer o filtro que a gente está acostumado a fazer.

Caju
Bem interessante isso que a Ana comentou. O Fabrício Barilli também falou algo nessa linha também. Ele até citou uma frase famosa daquele pensador canadense conhecido, o Marshall Mcluhan, que diz que a tecnologia às vezes faz “a gente andar para frente, mas com os olhos no retrovisor”.

Ana
Caramba, Caju! Quer dizer que essa frase sobre o retrovisor, que convenhamos até virou um certo clichê, é do Mcluhan?

Caju
Pois é… eu também não sabia, não. Trabalheira é cultura também, Ana! Eu falei do Fabrício porque eu perguntei para ele quais eram as principais reclamações das pessoas que usam essas plataformas de ATS para buscar uma vaga de emprego. Até agora, a gente falou muito sobre a perspectiva dos recrutadores, ou seja, das pessoas que trabalham com RH e usam os sistemas de ATS para contratar funcionários. Mas o Fabrício também está olhando para quem procura emprego usando essas plataformas. Escuta só o que ele respondeu sobre as queixas mais comuns da galera, Ana:

Fabricio Barili
Longos processos de perguntas e respostas… o cara preenchendo aqui um formulário, apesar de ler o currículo, essa parte facilita… Agora, o fit cultural, os testes de lógica… São dois pontos: primeiro que são longos, exaustivos e repetitivos. Segundo: eles, alguns candidatos, candidatas, acham que ele não tem uma lógica para ser aplicado, né? Perguntas muito abertas ou perguntas que não tenham a ver com o que que tu vai trabalhar… E tem um caso, eu vou até mandar o link depois, que a própria pergunta e resposta, baseado no teu perfil anterior, ela vai te dar… mesmo que tu responda as mesmas coisas, ela vai te dar resultado diferente. Então, a pergunta e resposta não necessariamente seja para te conhecer com maior profundidade, mas às vezes é um step vazio que até pôs em xeque a inteligência artificial da Gupy. Eu vou te passar o caso de uma engenheira que ela botou um “Lorem Ipsum” para a irmã dela. E a irmã dela passou… enquanto que ela preencheu, escreveu, destinou tempo para isso.

Ana
Nossa, essa parte final da fala do Fabrício é surreal, né? A gente está aqui num papo super cabeça sobre vieses de algoritmos e tudo mais, e eis que também podem rolar umas falhas técnicas bem primárias que acabam determinando quem vai ou não ser selecionado para a vaga, né? Essa história do “Lorem Ipsum” é inacreditável!

Caju
Pois é, Ana. E aqui vale só mais um momento cultural rápido e uma explicação sobre o que é o tal “Lorem Ipsum”. O “Lorem Ipsum” é um poema em latim, com letras embaralhadas, do pensador romano Cícero. Esse poema é do ano 45 antes de Cristo. Os versos do “Lorem Ipsum” são muito usados por designers, por exemplo, pra fazer pilotos de projetos gráficos de propagandas. Então, em vez de colocar o texto certinho do anúncio — sei lá, “Compre Batom”, por exemplo — o designer simula como vai ficar o anúncio escrevendo “Lorem Ipsum”.

Ana
Eu mesmo já vi muito lorem ipsum nos designs de reportagens. Mas nunca vi sendo publicado, seria um erro bem sério

Caju
Exato! E, nesse caso que o Fabrício contou, serviu para cometer uma injustiça numa seleção de emprego! Agora, justiça seja feita, mais uma vez, isso não é um problema da plataforma em si. É mais uma falta de cuidado e de atenção de quem faz a programação e a supervisão da plataforma.

Ana
Verdade. Mas também ilustra bem aquilo que a gente vinha discutindo sobre andar para frente com os olhos no retrovisor, né, Caju? Se uma candidata que escreve “Lorem Ipsum” é aprovada num processo seletivo, de que adianta usar uma plataforma toda moderna que supostamente vai ranquear os candidatos com mais “fit cultural”? De todo modo, Caju, é impressionante como essas coisas evoluem rapidamente, né? E é interessante perceber como a própria tecnologia também pode ser formatada para tentar remediar os impactos dos vieses — que, muitas vezes, podem ser até inconscientes. Quem nunca se pegou reproduzindo um comportamento preconceituoso, mesmo não querendo ser deliberadamente preconceituoso?

Caju
Pode crer, Ana. Até porque o que mais existe é preconceito introjetado na cabeça das pessoas. E, sobre esse assunto específico, dos “vieses inconscientes”, tem mais uma pessoa para a gente ouvir. O nome dela é Cammila Yochabel. A Cammila é a fundadora da Job Cam.

Cammila Yochabell
A Job Cam é uma plataforma de recursos humanos, focada na seleção de talentos por vídeo, com entrevistas anônimas. Porque toda a minha trajetória aí, quase 9 anos de recursos humanos, ela foi pautada em processos seletivos ineficientes, um alto custo, né? Quando eu era lá recrutadora… gestão da agenda dos gestores, enfim, até mesmo respeito com o próprio candidato. Aliado com o viés inconsciente que eu mesma sofri, eu perguntei: cara, alguém mais sofre com isso? E aí, veio uma enxurrada de gente, pessoas negras, pessoas com deficiência, gays e lésbicas, trans, falando: “Olha, eu passo por isso”. Então, hoje a Job Cam ajuda as empresas a entenderem o real potencial da pessoa candidata, as habilidades e competências da pessoa candidata, ao invés de focar no estereótipo físico, ao invés de focar numa orientação sexual dessa pessoa. A gente sabe que o viés inconsciente ele existe, muitas vezes muita, muitas das vezes eles são prejudiciais. Então, a gente hoje atua com uma tecnologia que ajuda essas organizações a otimizarem os processos seletivos e também a trazer mais diversidade para dentro da organização.

Ana
Caju, antes de a gente entrar nos detalhes da Job Cam, e só para não passar batido: a Cammila falou sobre os “vieses inconscientes” que ela mesmo sofreu. Tem a ver com o sotaque dela?

Caju
Você é uma ótima observadora, hein, Ana? Ou melhor, uma ótima ouvinte. Então, a Cammila tem uma história curiosa. Ela não tem formação em psicologia ou em outra área típica de RH. Ela fez um curso especializado em petróleo e gás e o sonho dela era trabalhar naquelas plataformas que ficam no meio do oceano arrancando o petróleo do fundo mar.

Ana
Caramba! Que viagem…

Caju
Pois é… só que a Cammila disse que esse é MAIS um mercado dominado pelos homens. Então, esse foi o primeiro viés que ela enfrentou. Com o tempo, ela foi enveredando pela área de gestão de pessoas e crescendo na carreira…

Cammila Yochabell
Até que eu fui para São Paulo, né? Como vocês estão percebendo aí, o meu sotaque, eu sou potiguar, natural de Mossoró. E, quando eu fui para São Paulo, eu enfrentei novamente outros vieses, que foi o viés da nordestina. Eu nunca sofri preconceito, assim… Acho que é muito estrutural, né? Acaba sendo velado do: “olha, será que vai conseguir dar conta, né?” Como é o trabalho, como é o ritmo de trabalho lá no Nordeste versus o trabalho em São Paulo, na grande São Paulo. Assim… é um estereótipo que criam muitas vezes do nordestino que é totalmente errado, né?

Ana
Bom, Caju, se alguém ainda tiver a cara de pau de falar que viés contra nordestino não existe, é só a gente lembrar do que rolou nas últimas eleições de outubro, né? Mas vamos deixar esse assunto de lado que esse não é o nosso foco. Mas eu queria entender o que a Job Cam faz exatamente…

Caju
Então, Ana. A Job Cam fornece ferramentas para entrevistas em vídeo para os departamentos de RH. Pra ficar mais claro: a plataforma tem uns recursos que permitem que, durante a entrevista, a voz da pessoa seja modulada e o rosto da pessoa seja coberto por uma espécie de uma máscara digital, para evitar aquele julgamento à primeira vista.

Ana
Entendi. Lembra o The Masked Singer, né? Aquele programa de TV em que os artistas fazem uma performance musical e cantam usando uma fantasia maluca, pra ninguém reconhecer a identidade deles…

Caju
Acho que lembra um pouco mesmo, Ana. Mas no The Masked Singer só escondem o corpo e a cara da pessoa, né? Porque a voz continua a mesma… Mas a Job Cam não oferece só entrevistas anônimas. Dá também para fazer entrevistas convencionais. E a plataforma também oferece outras funcionalidades que ajudam a entender como a inteligência artificial vem sendo largamente utilizada no processo de recrutamento e seleção. A Cammila explicou um pouco mais para a gente.

Cammila Yochabell
Nosso foco é na vídeo-entrevista. Uma vídeo entrevista gravada. Ou seja, o recrutador customiza perguntas, coloca palavras chaves que estejam alinhadas com essa pergunta. Por exemplo: como se faz um brigadeiro? E aí ele coloca as palavras-chave: chocolate, la la la la… Estou fazendo um exemplo bem chulo aqui, só pra ficar mais ilustrativo. Então, esse recrutador ele consegue compartilhar esse link, tanto se ele quiser compartilhar uma mensagem em massa no ATS, ou nas redes sociais, onde ele quiser, ele consegue convidar as pessoas candidatas para se aplicarem. E, ao invés de passarem por um processo longo, ela já vai direto, essa pessoa já vai direto para a entrevista pré-gravada. Então, ela vai ler, vai responder as perguntas e o nosso sistema vai ranquear os perfis mais aderentes para que esse gestor ele ou recrutador assista aos vídeos.

Então a gente está falando de eficiência. Imagina só: um recrutador hoje faz em média 20 ligações por dia, para pré-screening, por telefone, analisa currículo. Então, ele perde muito tempo nessa fase de seleção. Imagina só: ele recebendo esses vídeos, tudo ranqueado, só assiste e convida para uma fase presencial ou até mesmo online, somente quem fizer sentido. Então, economiza muito tempo dele, dá para compartilhar esses vídeos com os gestores e, principalmente, o respeito com o candidato, porque o candidato ele vai conseguir fazer análise desses vídeos… vai fazer conseguir participar desses vídeos sem gastar o dinheiro para ir até a empresa, percebe?

Ana
Ouvindo a Cammila, a gente percebe que a Job Cam também opera pela lógica de ranqueamento.

Caju
Exato, Ana. Como a gente já falou no início, o ranqueamento é o coração de todo o processo de recrutamento e seleção que usa ferramentas de inteligência artificial. Porque a premissa é organizar uma massa muito grande de dados de um número muito, muito grande de candidatos. Mas a pergunta que fica é: será que daria para ser diferente?

Ana
Eu fiquei me perguntando sobre isso também, Caju. E acho que tem mais dúvida do que certeza nessa história. A Ana Navarro, por exemplo, tem algumas pulgas atrás da orelha sobre o papel das plataformas de ATS no futuro.

Ana Navarro
Se você fosse perguntar para a Ana qual é o futuro, se eu acho que ATS e coisas nesse sentido vão continuar, ou qual que seria a evolução disso, de verdade eu acho que o recrutamento como ele é feito hoje, como a gente conhece, ele não vai mais existir. É porque se você for pensar, o ATS basicamente automatizou o que os humanos faziam e ele já traz para mim a melhor solução dos 5 melhores candidatos. Putz, isso é uma… não vou falar palavrão, mas isso é uma mega… pô, me reduz o meu trabalho de maneira gigante. Mas, se você for parar pra pensar, estou replicando o trabalho e automatizando o que eu já replicava lá na. É uma evolução da Catho, vamos pensar assim. Agora é a forma de recrutamento do futuro? Pode ser que, daqui a dez anos continue sendo, mas de verdade, eu não acho que vai ser nesse sentido.

Ana Navarro
Quando a gente fala de recrutamentos de tecnologia, esses grandes eventos, esses bootcamps, essas coisas, eles já servem como um… vou falar “um processo de recrutamento desestruturado”, mas ele já serve como isso. As empresas já vão lá, elas jogam um desafio onde os caras tentam já decifrar e, desses que decifram e trazem a melhor solução, as empresas já vão nessas pessoas. Então, já é uma forma diferente de recrutar.

Caju
Só um comentário rápido, Ana, sobre essa fala da sua xará: é sempre bom tomar cuidado com previsões muito ambiciosas sobre o futuro, principalmente quando a gente fala de tecnologia…

Ana
Pode crer, Caju. A gente está em 2022 e tinha gente que achava que ia ter carro voador pelas ruas… Ou, melhor, pelos céus…

Caju
Verdade, Ana. O seu exemplo, claro, é um exagero em forma de brincadeira. Mas eu acho que esse cenário que a Ana pintou, de eventos organizados por empresas de tecnologia em que são propostos desafios para as pessoas resolverem, faz sentido para uma pequena minoria de trabalhadores altamente qualificados e muito cobiçados pelo mercado de trabalho. Mas, para ser sincero, eu não consigo imaginar — pelo menos, num curto espaço de tempo — que isso seja estendido à imensa maioria de pessoas que estão em busca de emprego num país como o Brasil, por exemplo.

Ana
Verdade, Caju. Vira e mexe a gente toca nesse assunto aqui, né? É a polarização do mercado de trabalho: numa ponta, uma pequena minoria de pessoas com empregos bacanas e bem remunerados. E na outra ponta uma esmagadora maioria se virando nos 30 para pagar as contas. Se a gente pensar, sei lá, nos cerca de 40% de trabalhadores brasileiros que ganham na faixa de um salário mínimo por mês, fica claro que não vai rolar bootcamp. O que vai ter é ATS para peneirar as pessoas preenchendo formulário digital na internet…

Caju
Perfeito, Ana. E é aí que a gente percebe a relevância de toda essa discussão sobre os vieses. É importante ficar atento para que essas ferramentas não virem uma espécie de “arma de destruição em massa”, com algoritmos eliminando sumariamente, sem chance de contestação, uma porrada de gente que teria, sim, qualificação para um emprego.

Ana
Boa, Caju. Acho que é por aí mesmo! A gente volta na próxima semana com um papo sobre o trabalho dos influencers!

Caju
Legal! Esse promete!

Ana
O Trabalheira é um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil.

O roteiro original é do Carlos Juliano Barros, o Caju.

Caju
E o tratamento de roteiro é da minha amiga e companheira de apresentação, Ana Aranha.

Ana
A montagem e a edição ficam por conta do Victor Oliveira. E as trilhas da vinheta foram compostas pelo João Jabace e pela Mari Romanno, quando este programa era feito em parceria com a Rádio Novelo. A eles, nosso muito obrigado.

Caju
Valeu, Ana!

Ana
Até!

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