Bunge promete desmate zero em 2025, mas seus fornecedores derrubaram 11 mil hectares de Cerrado em 2 anos

Três fazendas que venderam soja diretamente para a multinacional tiveram área equivalente a 11 mil campos de futebol desmatadas recentemente. Uma das propriedades queimou áreas de preservação obrigatória por lei para abrir área de lavoura, segundo organização que monitora cadeias produtivas
Por André Campos e Poliana Dallabrida
 19/05/2023

Uma área equivalente a 11 mil campos de futebol antes ocupados pela savana mais biodiversa do mundo desapareceu ao longo das últimas safras de soja em três propriedades rurais brasileiras fornecedoras da Bunge localizadas na fronteira entre os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. A multinacional americana foi a primeira grande trading a anunciar a meta de se tornar “livre de desmatamento e de conversão de vegetação nativa” em suas operações, objetivo a ser alcançado até 2025. Faltando menos de dois anos para isso, a empresa segue adquirindo grãos dessas fazendas, como ocorreu em 2022 e 2023.

As propriedades estão localizadas no Cerrado, em uma região conhecida pela sigla Matopiba na qual o desmatamento no primeiro trimestre de 2023 foi mais alto do que o registrado ao longo dos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro. O bioma não está incluído na  Moratória da Soja e nem é totalmente protegido pela recém-aprovada legislação europeia “anti-desmatamento” importado. Ainda assim, o Cerrado reúne 52% das lavouras de soja cultivadas no país.

Segundo documentos apresentados pelas fazendas fornecedoras da Bunge, houve autorização dos órgãos ambientais estaduais para os desmatamentos. Mas, em um dos casos, um relatório da organização holandesa AidEnvironment, especializada no monitoramento de cadeias produtivas, apontou que parte do desmate ocorreu em áreas de preservação obrigatórias segundo a lei.

Produção de soja avança na região do Cerrado conhecida como Matopiba; bioma não está incluído na Moratória da Soja e nem é totalmente protegido pela recém-aprovada legislação europeia ‘anti-desmatamento’ (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

À reportagem, a Bunge afirmou, sem comentar casos específicos, que “mantém rígido controle sobre critérios socioambientais em suas operações” e que monitora, com tecnologia de satélite, mais de 12 mil fazendas em áreas prioritárias para a empresa na América do Sul. Leia o posicionamento completo aqui.

Queimada para abrir lavoura

Um dos casos de desmatamento identificados pela reportagem envolveu a derrubada de grande parte da vegetação nativa remanescente em um conjunto de propriedades rurais do Grupo Franciosi Agro, dono de 70 mil hectares de lavouras na Bahia e no Piauí. O desmate inclui áreas no complexo Fazenda Santa Isabel, adquirido em 2020 pelo grupo nos municípios baianos de Luís Eduardo Magalhães e Barreiras. 

Segundo especialistas consultados pela Repórter Brasil, imagens de satélite do Prodes Cerrado, programa do governo federal que monitora o desmatamento no bioma, indicam que 1,9 mil hectares foram desmatados entre junho e agosto de 2021 na Fazenda Santa Isabel e em outras propriedades contíguas do grupo. O método utilizado para a limpeza da área teria sido o fogo e o plantio de grãos se iniciado após a queimada.

Comparação entre duas imagens de satélite (veja abaixo) mostra a área da Fazenda Santa Isabel e propriedades contíguas (polígonos em cinza) em dezembro de 2020 (primeira imagem) e em novembro de 2021 (imagem abaixo), após desmatamento detectado pelo Prodes (áreas em vermelho). O mapas abaixo foi elaborados com dados do SICAR 2022/2023 e ©2022 Planet Labs Inc.

Na safra de  de 2023, segundo apurou a Repórter Brasil, parte da soja produzida no complexo Fazenda Santa Isabel teve como destino a unidade da Bunge em Luís Eduardo Magalhães, também no oeste baiano. Tanto a Bunge quanto o grupo Franciosi Agro não comentaram o relacionamento comercial.

Se a fazenda estivesse localizada na Amazônia, compras de soja de áreas com desmate recente estariam barradas por força da Moratória da Soja, que bloqueia propriedades desmatadas após agosto de 2008, ainda que a derrubada tenha sido feita legalmente, com autorização dos órgãos ambientais.

O oeste baiano é um importante pólo de expansão do agronegócio brasileiro: estimativas apontam que o volume de soja a ser colhido nesta safra na área ultrapasse 7 milhões de toneladas. Toda essa pujança econômica também é acompanhada da escalada de conflitos fundiários e casos de violações de direitos de comunidades tradicionais.

Em resposta à Repórter Brasil, a Franciosi Agro alegou que toda a supressão vegetal e mudanças de uso de solo nas propriedades da companhia estão “estritamente de acordo com a legislação vigente e com as devidas autorizações necessárias” e que tem se preparado para atender a demanda do mercado em eliminar o desmatamento, legal ou ilegal, num futuro próximo. Leia as respostas na íntegra aqui

Seis mil hectares abaixo em área de preservação

Outro caso de desmatamento recente no Cerrado é o da Fazenda Ipê, propriedade do grupo Insolo em Baixa Grande do Ribeiro, no Piauí. Um relatório da AidEnvironment apontou que, entre março e junho de 2022, a propriedade teve cerca de 8 mil hectares desmatados, dos quais 6,8 mil estavam sobrepostos a áreas de preservação obrigatória por lei. Analistas consultados pela Repórter Brasil confirmaram que houve plantio de grãos na área aberta. E, entre abril de maio daquele ano, a propriedade enviou diversas cargas de soja para a unidade da Bunge em Uruçuí (PI).

Em resposta à Repórter Brasil, a Ipê Agroindustrial Ltda, empresa do grupo Insolo, negou qualquer irregularidade no desmatamento e afirmou que tinha autorização, emitida em março de 2022, para a supressão vegetal de 8,3 mil hectares no perímetro da Fazenda Ipê. A companhia afirmou ainda que quer zerar qualquer desmatamento a partir de 2023. Leia as respostas, na íntegra, aqui.

Os administradores da Fazenda Ipê disseram no comunicado que as imagens utilizadas como parâmetro pela AidEnvironment para identificar as áreas de preservação ambiental estavam desatualizadas, “o que gera a informação inverídica de desmate em área de Reserva Legal ou Preservação Permanente”.

De fato, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) atual da fazenda – documento no qual estão descritas estas áreas de preservação obrigatórias por lei – não identifica nenhuma área desmatada como Reserva Legal ou APP. Mas esse registro é diferente do que constava no sistema de consulta pública do CAR em 2022, quando a organização holandesa elaborou o relatório. Na época, o CAR confirmava a sobreposição do desmatamento com a RL e APP da área (6.850 hectares). “Ou seja, o CAR da propriedade foi modificado para retificar a antiga Reserva Legal e ampliar a área agricultável da propriedade”, aponta a AidEnvironment.

Segundo os pesquisadores, essa estratégia de modificar os limites do CAR tem se tornado comum principalmente nas áreas de expansão do agronegócio no Matopiba. “Como as empresas produtoras têm conglomerados de propriedades, geralmente ‘compensam’ essas áreas de Reserva Legal retificadas em outras propriedades”, complementa a organização.

A administradora da Fazenda Ipê não confirmou quando essa mudança ocorreu, mas seguidas alterações no CAR da propriedade foram identificadas pela reportagem. Uma dessas alterações foi registrada no sistema federal em 13 de abril de 2023, três dias após a Repórter Brasil enviar um e-mail para o grupo solicitando esclarecimentos sobre o caso. Já a mais recente mudança no cadastro ocorreu no dia 18 de maio, dia do último contato da reportagem com a empresa.

“É provável (e esperamos que sim!) que a alteração tenha sido feita antes da solicitação da licença [para desmatamento], mas mesmo assim é uma estratégia que deveria ser questionada. No caso da alteração ter sido feita depois da solicitação da licença o caso é mais grave e fica explícito que a licença não considerou a reserva legal e/ou que a alteração foi feita para ‘legalizar’ o desmatamento”, conclui a AidEnvironment.

Comparação entre duas imagens de satélite (veja abaixo) mostram que área da Fazenda Ipê (polígonos em azul na primeira imagem) à época do desmatamento (áreas vermelhas) indicava sobreposição com áreas de Reserva Legal (em verde). No novo CAR (imagem abaixo), áreas desmatadas (em verde escuro) deixaram de fazer parte da Reserva Legal da propriedade. Os mapas abaixo foram elaborados pela AidEnvironment com dados do SICAR 2022/2023 e ©2022 Planet Labs Inc.

Também em 2022, outro grande desmatamento ocorreu em Baixa Grande do Ribeiro (PI). Dessa vez na Fazenda Cajueiro, propriedade do Condomínio Milla, empresa controlada pelos irmãos Karl, Egon e Robert Milla. Entre julho e setembro, 332 hectares foram desmatados na Fazenda Cajueiro. Um ano antes, outros 670 hectares haviam sido desmatados na mesma propriedade. Ambos os desmatamentos estão descritos em relatórios publicados pela organização AidEnvironment. A Repórter Brasil apurou que a Fazenda Cajueiro forneceu soja para a unidade da Bunge em Uruçuí (PI) nas últimas duas safras.

Em resposta à reportagem, o Condomínio Milla enviou a cópia da autorização para supressão vegetal de 1,1 mil hectares na propriedade, expedida em julho de 2022. A empresa reforçou a “vocação” brasileira para o agronegócio e a necessidade de permitir, dentro da legalidade, que as propriedades atinjam o seu pleno potencial produtivo. “Se não conseguimos, infelizmente, acompanhar os países desenvolvidos em indústria, tecnologia e educação, em matéria de agricultura somos líderes mundiais”. Acesse as respostas na íntegra aqui.

A Bunge explicou que em 2025, quando alcançar o prazo para se ver “livre de desmatamento”, tanto os casos de supressão vegetal legais quanto os ilegais serão bloqueados da cadeia de fornecimento da companhia, caso seja constatado que a área desmatada tenha sido cultivada com grãos ou oleaginosas. 

Fornecedor indireto

Ainda no Cerrado, mas fora da região do Matopiba, a Repórter Brasil descobriu que uma empresa que tem a Bunge como sócia possui entre seus fornecedores um fazendeiro que desmatou ilegalmente mais de 200 hectares no Mato Grosso. Em 2017, a multinacional se tornou acionista minoritária da Agrícola Alvorada, um negócio pensado para “expandir sua estratégia de originação de grãos”, alcançando pequenos e médios produtores do estado.

Em fevereiro de 2022, a Agrícola Alvorada recebeu em seu armazém em Primavera do Leste (MT) cargas de soja da Fazenda Graúna, localizada em Santo Antônio do Leste (MT), e de propriedade de Sergio Luiz Ferrari. Naquele mesmo mês, Ferrari havia sido notificado pelo Ministério Público do Mato Grosso pelo desmatamento ilegal de 203,6 hectares dentro da propriedade. Apesar do inquérito civil ter sido aberto pelo órgão ano passado, o desmatamento ocorreu entre 2009 e 2010. Em setembro de 2022, Ferrari assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com as autoridades reconhecendo o desmatamento ilegal e se comprometendo a restaurar as áreas degradadas.

Em resposta à Repórter Brasil, a Agrícola Alvorada afirmou que, na ocasião do recebimento do volume de soja apontado pela reportagem, o nome do produtor “não constava nas listas públicas de embargo”. Leia a resposta completa aqui. O produtor Sérgio Ferrari foi procurado, mas não respondeu aos questionamentos enviados até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras.

A Bunge afirmou que não compra grãos de áreas desmatadas ilegalmente e explicou que “realiza um processo de engajamento com o produtor”, que inclui a análise das autorizações e confirmação da área de vegetal nativa remanescente, e que “pode culminar no bloqueio da comercialização com a propriedade caso o resultado do processo não seja positivo”.

Falta de transparência em monitoramentos privados

A Agrícola Alvorada é uma das maiores fornecedoras de soja da Bunge e parceira da multinacional em um projeto piloto, lançado em março de 2021, para monitorar fornecedores indiretos da trading – ou seja, os  produtores que enviam seus grãos para um intermediário que, por sua vez, repassam a matéria-prima para a empresa. O monitoramento dos fornecedores indiretos  é um dos maiores gargalos do setor, e pode ser um entrave nas estratégias de desmatamento zero anunciadas pelas companhias.

Anunciado pela Bunge como uma “iniciativa sem precedentes”, o rastreamento incluía a análise dos Cadastros Ambientais Rurais (CARs) das fazendas e a observação de imagens de satélite para acompanhar mudanças no uso da terra nas propriedades monitoradas. 

A Bunge afirma que não compra soja de áreas desmatadas ilegalmente. Questionada sobre  o caso de Ferrari, a Bunge não comentou o caso específico, mas defendeu o projeto-piloto: “contribui de forma definitiva para elevar os padrões de sustentabilidade e transparência da cadeia indireta de soja no Brasil” e salientou ser a única empresa do setor a “promover uma ação em grande escala no Cerrado para rastrear compras indiretas por meio do compartilhamento de conhecimento, metodologias e ferramentas com revendas de grãos”. Leia a resposta completa aqui.

Mas há críticas. Tiago Reis, líder de engajamento na América do Sul da Trase, iniciativa criada com o objetivo de aumentar a transparência de cadeias produtivas da agropecuária, aponta falta de transparência dos sistemas privados criados pelas multinacionais que atuam no mercado de grãos, o que impede observadores de atestarem a qualidade e eficiência de tais mecanismos. “As tradings, se quiserem, têm capacidade para estarem preparadas. Se de fato estão, não temos como saber, porque elas não mostram abertamente os seus sistemas”. Uma dúvida é saber se o monitoramento vai além, por exemplo, da mera consulta de dados públicos em relação à legalidade de desmatamentos, como as listas de áreas embargadas pelo Ibama. 

“As empresas têm seus sistemas de controle de fornecedores para seus próprios objetivos, que nem sempre atendem aos objetivos da sociedade como um todo”, explica Reis. Para tentar resolver esse dilema, organizações da sociedade civil defendem que o monitoramento do setor de grãos – assim como de outras cadeias produtivas do agronegócio brasileiro – seja público, integrando vários bancos de dados já disponíveis, além de obrigatório. 

Um caminho para atingir esse objetivo pode estar no novo Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado, iniciativa coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e que propõe ações para controlar o desmatamento entre 2023 e 2027 no país, cuja atualização deve começar em julho.

No plano de controle de desmatamento da Amazônia, que é pioneiro, está prevista a integração de dados públicos para criar um sistema nacional de rastreabilidade de commodities. “Aí sim acredito que teremos algo mais robusto, que independe do voluntarismo das empresas”, pontua Reis. “Independente de a empresa A, B ou C estar preparada ou não, nós como sociedade não podemos confiar em sistemas privados, fechados e voluntários. Precisamos de um sistema nacional, universal e mandatório”, defende. 


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