Uma máquina de cabo longo e hastes de metal que simulam duas mãos se tornou um item indispensável na colheita de café no Brasil nos últimos anos. Com um motor movido a gasolina, a derriçadeira derruba com rapidez os frutos presos junto aos galhos, enquanto o trabalhador move o equipamento com movimentos de cima para baixo nas árvores do cafezal. Na última safra, trabalhadores temporários da Fazenda Piedade, em Campestre, Minas Gerais, tiveram que pagar do próprio bolso R$ 2,7 mil pelo equipamento por determinação dos patrões, segundo depoimentos de trabalhadores e entidades ouvidos pela Repórter Brasil. A prática é proibida pela legislação brasileira.
A propriedade é detentora de um selo da Starbucks de “fornecimento ético de café” que tem entre seus objetivos a garantia dos direitos trabalhistas e “o bem-estar dos cafeicultores e trabalhadores, suas famílias e comunidades”. Os R$ 2,7 mil equivalem a mais de 30% do rendimento médio mensal de um safrista, considerando o volume de café médio colhido ao longo de 6 dias de trabalho por semana.
“A gente ganha muito pouco para pagar isso numa máquina”, resume João*, 52 anos, um dos 30 trabalhadores que atravessaram o estado em maio do ano passado, percorrendo mais de 700 quilômetros desde o Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais, onde vivem, para trabalhar por quatro meses na Fazenda Piedade, que fica no sudoeste.
Na época, a propriedade pagava R$ 15 pela lata de café colhida, o equivalente a 60 litros do grão – o que rendia uma diária média de R$ 180 para João, que enchia entre 10 e 15 latas por dia. “Você já tem a despesa do que você come e ainda mais esse gasto com a máquina? O cara vai chegar de volta em casa depois da safra sem dinheiro”, completa.
A reportagem apurou, entretanto, que houve casos de trabalhadores que não conseguiram tirar mais do que R$ 2,8 mil por mês nessa colheita, o que significaria que dos quatro meses de trabalho, um foi inteiramente dedicado à compra da máquina que deveria ser oferecida gratuitamente pelo empregador.
“São quase dois salários mínimos de um trabalhador temporário, que no resto do ano não tem recurso para o seu próprio sustento e de sua família. É uma prática que alimenta esse ciclo vicioso de pobreza no meio rural”, condena Jorge Ferreira dos Santos Filho, coordenador da Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (Adere/MG), que esteve na propriedade no começo de junho.
A Fazenda Piedade tem o selo C.A.F.E. Practices, programa de certificação da rede de cafeterias Starbucks. O Brasil, maior exportador mundial do grão, é um dos principais fornecedores da multinacional. A dona da propriedade, a cafeicultora Olga Maria Ferreira Tavares, possui outras lavouras em municípios vizinhos do Sul de Minas. As propriedades, administradas por suas filhas, fornecem café para grandes cooperativas e têm clientes no exterior.
“Não estamos falando de uma fazenda pequena. Estamos falando de uma fazenda grande, certificada, e que fornece café para uma grande empresa, como a Starbucks”, lembra Filho.
À reportagem, a Starbucks afirmou que ficou “profundamente preocupada ao tomar conhecimento das alegações de violações trabalhistas ou más condições de trabalho” na Fazenda Piedade e que planeja investigar as situações mencionadas pela reportagem. Leia o posicionamento completo da empresa aqui. A Repórter Brasil também tentou contato com a produtora por telefone e email, mas não obteve retorno até o fechamento deste texto. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
Triangulação no pagamento
Os R$ 2,7 mil que cada trabalhador que não possuía uma derriçadeira precisou desembolsar pela máquina tiveram um destino obscuro. Segundo fontes ouvidas pela Repórter Brasil, os gerentes da Fazenda Piedade haviam dito inicialmente que o valor da derriçadeira seria descontado do salário dos trabalhadores, para reembolsar os donos da propriedade.
No entanto, depois de uma fiscalização de auditores fiscais do Ministério do Trabalho na propriedade, na qual os servidores públicos alertaram que a prática era ilegal, o discurso mudou. Os administradores da fazenda sugeriram então aos safristas que pagassem pelo maquinário ao empreiteiro, pessoa responsável por arregimentar o grupo no norte do estado, o que gerou suspeitas no grupo. “Os trabalhadores pagaram para o empreiteiro, mas [o dinheiro] foi para a fazenda mesmo”, acredita Antônio*, que trabalhou na safra, mas levou a própria derriçadeira para a colheita.
“Quem não tinha a máquina, chegou lá, comprou, e eles iam descontar no pagamento. Só que como o Ministério [do Trabalho] passou lá e pôs uma pressão, eles não descontaram e nos mandaram pagar a máquina para o empreiteiro”, explica João*, que também acha que o valor pago pelo equipamento acabou repassado para os fazendeiros. A fiscalização trabalhista na Fazenda Piedade ocorreu no dia 24 de maio, no início da colheita na propriedade, por isso os auditores-fiscais não identificaram descontos nos salários dos trabalhadores temporários. Apenas dois autos de infração estão registrados em nome da cafeicultora Olga Tavares: o primeiro por admitir empregado sem registro em livro ou sistema eletrônico da propriedade e o segundo por admitir funcionário sem comunicar ao Ministério do Trabalho.
“É uma fazenda certificada, que garante moradia digna para os trabalhadores fixos, por isso nos causou espanto a prática de comprar as máquinas através do gato [empreiteiro] e essa máquina ser vendida para os trabalhadores”, aponta Jorge Ferreira dos Santos Filho, coordenador da Adere/MG.
O Ministério do Trabalho já registrou outros casos de descontos ilegais em salários de trabalhadores que atuam de forma temporária na colheita do café para pagamento da derriçadeira. Foi o que aconteceu na fazenda da família do presidente da maior cooperativa de café do país, a Cooxupé. Em 2021, familiares de Carlos Augusto Rodrigues de Melo foram autuados por descontar, de forma irregular, 30% do salário de 19 trabalhadores na Fazenda Pedreira, em Cabo Verde, no Sul de Minas Gerais. A propriedade é administrada pela filha de Rodrigues de Melo, mas documentos mostram que todo o núcleo familiar se beneficia com os lucros obtidos na propriedade.
Nesse caso, a fazenda descontava R$ 500 por mês do salário dos trabalhadores para a aquisição da máquina, além de outros cerca de R$ 500 para o combustível usado na ferramenta. Após a autuação, os fazendeiros assinaram um acordo com o Ministério Público do Trabalho e com a Defensoria Pública da União para devolver o dinheiro descontado indevidamente e indenizar cada trabalhador em R$ 2 mil por danos morais.
Saída proposta pela fazenda também é irregular
Como orientou os trabalhadores a adquirirem uma máquina, segundo relatos dos safristas ouvidos pela Repórter Brasil, a gerência da Fazenda Piedade ofereceu um valor de R$ 50 por mês a título de aluguel do equipamento. Esse acordo, no entanto, também é ilegal. A legislação trabalhista brasileira assegura que o fornecimento de ferramentas deve ser gratuito e que os equipamentos devem ser seguros, adequados e substituídos sempre que houver necessidade. “Na legislação trabalhista, não há previsão legal de uma locação de ferramenta feita junto ao empregado”, explica Leandro Marinho, auditor-fiscal em Varginha (MG).
Como é um equipamento que demanda combustível, isso também precisa ser fornecido pelo empregador, que deve se responsabilizar, inclusive, pela sua manutenção. Mas, nesse cenário de “aluguel” da derriçadeira, todos os custos de manutenção e eventual conserto do equipamento são arcados pelos trabalhadores. “Isso é um risco do negócio, e que está sendo passado para o empregado”, critica Marinho.
Além de ilegal, o valor de R$ 50 pagos pela propriedade parece pouco para Antônio*, frente aos gastos que um trabalhador pode ter com o equipamento. “A colheita dura quatro meses. Se a máquina quebra, quem tem que pagar pela manutenção é a gente. Esses R$ 200 [soma do aluguel dos quatro meses] não dá nem para o conserto quando a máquina quebra”.
“Esse tipo de ‘aluguel’ forçará o empregado a adquirir uma derriçadeira para poder ser contratado, o que entra até na lei de discriminação, pois seria uma prática discriminatória e limitativa para o acesso à relação de trabalho”, conclui o auditor-fiscal em Varginha.
“A fazenda fez lá um contrato de aluguel de R$ 50 mensal. Foi uma forma de tirar a responsabilidade dela a obrigação de fornecer a máquina. Ela diz que paga pelo aluguel da máquina, mas não fala que exigiu que os trabalhadores comprassem o equipamento”, complementa Jorge Ferreira dos Santos Filho, da Adere/MG.
Mas no caso dos trabalhadores da Fazenda Piedade, não há certeza sequer sobre o recebimento dos R$ 50 mensais pelo “aluguel” do equipamento. “Isso aí foi pago no dia do acerto. Eles fizeram o acerto do jeito que quiseram, então não tem nem como saber se alguém recebeu ou não”, aponta João*.
Banho frio
As condições do alojamento dos trabalhadores temporários também chamou a atenção da equipe da Adere-MG. Os trabalhadores precisavam guardar seus pertences nas próprias camas, pois havia apenas um guarda-roupa, mas sem gavetas, prateleiras ou teto. “O alojamento tinha uma geladeira velha e um armário para guardar comida. O colchão era velho, não tinha travesseiro. Se quisesse travesseiro, cobertas, a gente tinha que levar”, explica João. Um fogão a lenha e um a gás eram usados também para esquentar a água do banho, pois não havia chuveiro elétrico. “Você chega cansado e ainda precisa esquentar a água. O tempo que você tem pra esquentar a água já era para você ter tomado um banho”, explica João.
“O alojamento era bagunçado e o banheiro estava todo desmantelado, sem piso, nem azulejo na parede”, descreve Antônio, que ainda conclui, resignado: “mas lá dentro o sol não queima e nem a chuva pinga na gente”.
*Nomes alterados para preservar a identidade dos trabalhadores