“Ela tem graves problemas psicológicos, de depressão (…) e um problema grave com religião, mora com um pai de santo em um terreiro de macumba”. Esta mensagem foi enviada em um grupo de WhatsApp formado por moradoras de um condomínio de luxo de São Paulo. Começava com a frase “NÃO CONTRATEM”, escrita em letras garrafais, e era acompanhada pelo nome, contato e foto de uma babá. Nas redes sociais e aplicativos de mensagens, este conteúdo é conhecido como “lista suja” de trabalhadoras domésticas, alimentada e divulgada por patroas.
Na semana passada, o Ministério do Trabalho e Emprego confirmou a existência da ‘lista-suja’ em uma ação de fiscalização em quatro condomínios de luxo na cidade de São Paulo, onde viviam patroas identificadas repassando conteúdo difamatório contra suas ex-empregadas. “Isso mostra a abrangência dessa prática na cidade”, lamenta Livia Ferreira dos Santos, auditora do MTE que participou da operação. Durante a fiscalização foram feitas seis autuações trabalhistas, por falta de registro em carteira de trabalho, ausência de controle de jornada e de recolhimento de FGTS e INSS.
A Repórter Brasil teve acesso a dezenas de textos e áudios postados em grupos do WhastApp. Além das babás, nomes de cuidadoras de idosos também aparecem nessas trocas de mensagens. “Problemas com ronco”, “comilona”, “gordinha”, “dupla personalidade” e “mentirosa” são alguns dos fatores apontados pelas empregadoras para sugerir que não contratem determinada trabalhadora. Acusações de roubo, supostas passagens pela polícia – sem apresentação de prova alguma – também fazem parte dos motivos alegados pelas patroas na tentativa de colocar estas mulheres no ostracismo.
O impacto na vida de babás e cuidadoras de idosos que entram nessa lista é devastador. “Eu sai do meu último trabalho em dezembro, e imediatamente comecei a procurar outro. Todas as entrevistas que eu fazia, três, quatro por semana, eram bem produtivas, as patroas davam confiança, se comprometiam [com a contratação] e diziam que gostavam do meu trabalho”, recorda Joana*. Mas depois, silêncio, nenhuma resposta. “E foi assim em dezembro, janeiro, fevereiro… Eu nunca fiquei tanto tempo sem trabalho”, revela.
Meses depois ela descobriu o que havia acontecido. “Uma colega me falou: ‘Olha, Joana, eu falei com minha patroa pra te ajudar, e ela disse que você não vai arrumar emprego mais porque está em uma lista de babás pra não contratar'”. Desempregada e sem perspectivas, Joana se viu encurralada. “Entrei em pânico, fiquei com depressão, não queria nem ver a luz do dia. Tenho 61 anos, estou para me aposentar. Na reta final ter que passar por isso… É muito humilhante”.
Foi o conteúdo difamatório que chamou a atenção do MTE. “É importante coibir estas listas que são completamente ilegais e discriminatórias. Muitas vezes trazem comentários sobre a vida pessoal das trabalhadoras, e há risco de fake news, porque as informações não são checadas, são apenas passadas para frente”, observa a inspetora Santos.
Em vários casos, a cobrança por direitos trabalhistas serve de justificativa para a entrada na lista suja: “Jamais contratar! Mentiu que a mãe teve AVC e morreu, ficou semanas sem trabalhar e entrou na Justiça pedindo R$ 50.000”, diz uma mensagem. “Trabalhou 12 dias na casa de uma amiga e entrou na Justiça pedindo R$ 16.000 em verbas rescisórias sem motivo algum”, aponta outra.
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Na visão do Sindicato das Empregadas Domésticas do Município de São Paulo, além da difamação, a lista impõe uma perseguição política às trabalhadoras domésticas. “Os principais alvos são aquelas trabalhadoras mais informadas, que conhecem seus direitos. Aquelas que informam às colegas: ‘olha, você tem direito a hora extra, adicional de viagem, adicional noturno'”, avalia Zenilda Ruiz da Silva Silveiro, coordenadora jurídica da entidade.
Sindicato que levar caso à justiça
Não é possível estimar quantas babás são atualmente vítimas das listas sujas. O Sindicato das Empregadas Domésticas do Município de São Paulo está coletando casos e provas, para acionar as empregadoras na Justiça. “O que estas patroas estão fazendo é crime. É calúnia, injúria, racismo, danos morais, falsa imputação de crime…”, acredita Silveira. Ela orienta que as profissionais afetadas procurem o Sindicato para obter auxílio jurídico. “É preciso lembrar que essas mulheres não podem ficar desempregadas. Muitas vezes são elas que sustentam suas casas, que pagam o aluguel. São as chefes de família”.
A origem da lista é desconhecida. Mas os primeiros indícios de sua existência vieram à tona em anos recentes, quando também houve aumento de denúncias por racismo, assédio moral e assédio sexual feitas à entidade. “Eu trabalho no sindicato há 40 anos. Nunca vi nada do tipo. O número cresceu algo em torno de 400% durante o governo de Jair Bolsonaro”, ilustra a dirigente.