Gigante chinesa recebe bilhões para garantir soja sustentável no Brasil, mas compra de desmatadores

Cofco assinou maior empréstimo do planeta vinculado a metas sustentáveis, mas investigação mostra caminho de grãos de áreas desmatadas até seus armazéns, em Mato Grosso
Por Poliana Dallabrida e Sasha Chavkin
 20/06/2023

Em julho de 2019, a multinacional chinesa Cofco, uma das principais compradoras da soja brasileira, anunciou a assinatura do maior contrato de empréstimo vinculado a critérios de sustentabilidade do mundo recebido por uma empresa de commodities: 2,3 bilhões de dólares. Desde então, a linha de crédito já foi renovada em duas oportunidades – a última delas em julho do ano passado.

O Brasil tem um papel central nessa conquista: os 19 bancos responsáveis pelo financiamento bilionário, entre eles o espanhol Banco Bilbao Vizcaya Argentaria (BBVA), que coordena o negócio, só aceitaram oferecer capital a juros baixos porque a Cofco se comprometeu a garantir a rastreabilidade da soja adquirida por fornecedores diretos no país, além de atingir outras metas de sustentabilidade em suas operações.

Mas uma investigação da Repórter Brasil, em parceria com a Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center, mostra que no mesmo período em que desfrutava do crédito verde a juros reduzidos, a trading estava recebendo em seus armazéns soja produzida em um complexo agrícola com áreas de desmate recente.

As compras foram realizadas com intermediação da Nutrade Comercial Exportadora, subsidiária da multinacional suíça Syngenta. Ou seja, a aquisição dos grãos pela companhia chinesa se deu de forma indireta – e por isso não descumpre a meta do empréstimo bilionário, de rastreamento de fornecedores diretos. Mas mostra que a Cofco ainda tem um longo caminho para alcançar a aquisição de soja livre de desmatamento.

Armazéns da Cofco em Mato Grosso receberam soja plantada em áreas desmatadas no estado através de contratos com intermediários (Foto: Sasha Chavkin)

“Talvez não seja diretamente uma violação aos termos do contrato, mas é preocupante porque os bancos emprestaram a uma empresa que promete melhorar o rastreamento e, no entanto, não o faz ou não faz eficientemente bem. Se eu fosse um banco, estaria preocupado”, avalia Merel Van der Mark, coordenadora da Coalizão Florestas & Finanças, plataforma que analisa os financiamentos recebidos por empresas do agronegócio que potencialmente podem causar danos socioambientais. 

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A reportagem utilizou bases de dados públicas, imagens de satélite e documentos obtidos com exclusividade e descobriu que parte dos grãos adquiridos pela Cofco no Mato Grosso em 2021, maior produtor nacional, foi cultivada em áreas desmatadas do Cerrado e da Amazônia.

Inicialmente, a Cofco negou qualquer relação comercial com as fazendas de soja mapeadas por esta investigação. Depois de ter acesso às notas fiscais e contratos obtidos pela reportagem, a trading mudou o discurso: “Atualmente, estamos trabalhando para aumentar a rastreabilidade das compras indiretas, o que nos levará a reforçar nossos controles e monitoramento de risco para esta parte da cadeia de fornecimento” e destacou que os compromissos assumidos nos empréstimos vinculados à critérios de sustentabilidade dizem respeito apenas aos seus fornecedores diretos.

Já a Nutrade afirmou que, no momento da compra, todos os fornecedores cumpriam as regulamentações ambientais e não se encontravam na lista de embargos do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Leia as respostas na íntegra aqui.

Violação da Moratória da Soja

Um desses casos é o do produtor João Luiz Lazarotto, dono das fazendas União e União II, em Tapurah, município localizado na Amazônia. As propriedades, coladas uma na outra, totalizam 9,5 mil hectares, e são destinadas aos cultivos de soja, algodão e milho.

Notas fiscais emitidas pela Nutrade e obtidas pela Repórter Brasil mostram diversos envios de soja da Fazenda União, em fevereiro de 2021, para o armazém da Cofco International em Lucas do Rio Verde, também em Mato Grosso. Outro documento acessado pela investigação reforça a parceria comercial entre a trading e o produtor: um contrato de compra e venda assinado em janeiro de 2021 entre a Nutrade e a Cofco prevê a retirada de 1,8 milhão de toneladas de soja do armazém de João Lazarotto pela multinacional chinesa.

Imagens de satélite acessadas pela Repórter Brasil revelam que 650 hectares de vegetação nativa foram desmatados dentro da Fazenda União II em 2017. O desmatamento não ocorreu ilegalmente. No mesmo ano, Lazarotto recebeu autorização da Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Mato Grosso (Sema-MT) para desmatar 689 hectares na propriedade.

Imagens de satélite revelam desmate de centenas de hectares em propriedade de Lazarotto no ano de 2017, área depois cultivada com lavouras (Foto: Reprodução Google Earth)

Segundo análise feita com imagens da plataforma MapBiomas, corroborada por outros sistemas de satélite, a área desmatada na Fazenda União II foi destinada ao cultivo de soja já em 2018 – o que estaria em desacordo com  a Moratória da Soja, acordo que prevê o boicote à aquisição do grão plantado em áreas desmatadas da Amazônia após julho de 2008. A Cofco é uma das signatárias.

Mas segundo a Abiove (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais) – que representa as indústrias signatárias da moratória e integra o Grupo de Trabalho da Soja (GTS), responsável pelo monitoramento do pacto – a área desmatada se destinava ao plantio de arroz. Por isso, o produtor João Luiz Lazarotto não integra a lista atual de propriedades bloqueadas, segundo a associação. “Entretanto, há indícios que o produtor produziu soja não conforme na safra 2022 e 2023. Caso confirmado, ele passará a constar na Moratória da Soja a partir deste ano”, complementou a entidade. Leia as respostas na íntegra aqui.

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Já a Cofco afirmou que conseguiu detectar, por meio de imagens de satélite, que a soja adquirida de Lazarotto foi cultivada na Fazenda União, área sem registro de desmatamento, “já que a outra área (Fazenda União II) só começou a colheita em 21 de abril e nosso contrato com a Lazarotto via Nutrade foi 100% recebido em 21 de fevereiro”.

No entanto, durante a entrevista concedida para esta reportagem, realizada 8 meses depois do fim do contrato com a Nutrade, Lazarotto afirmou que é também era fornecedor direto da Cofco, seu segundo maior cliente, segundo o próprio produtor. Confrontada com este fato, a Cofco não se manifestou.

João Luiz Lazarotto confirma que é fornecedor da Cofco e vende, também, sem intermediários para a companhia (Foto: Giovanny Vera)

Mesmo com o possível impacto comercial, o produtor, que também forneceu para a brasileira Amaggi, afirma que seguirá com o desmatamento na Fazenda União II. “Eu tenho direito de abrir mais 350 hectares. Está na lei, e eu vou abrir esses 350 hectares”, garante, referindo-se ao percentual de 20% da propriedade que pode ser desmatado legalmente na Amazônia, sempre que autorizado pelo órgão ambiental. “Essa Moratória da Soja tem que ser revista”, defende Lazarotto.

Dois cadastros, mesma propriedade

Em seus esclarecimentos, a Cofco também informa que adquire soja originada apenas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) da fazenda União. Apesar da divisão da propriedade em duas áreas – União e União II –, Lazarotto possui inscrição estadual apenas na primeira. Este documento é obrigatório para a emissão de notas fiscais. Ou seja, qualquer produção agrícola da União II necessariamente será repassada ao mercado com outro documento fiscal – talvez o da União, evidenciando o risco de “contaminação” dos grãos cultivados na fazenda União com a soja plantada na área desmatada.


A Repórter Brasil visitou a propriedade de Lazarotto em setembro de 2022 e constatou que as duas áreas de lavoura das propriedades contíguas ficam distantes pouco mais de um quilômetro uma da outra e são unidas por uma estreita faixa de terra cultivada – este corredor permite o manejo integrado das duas fazendas, bem como o transporte dos grãos da União II até os silos de armazenamento, que estão localizados na União.

Fazendas União e União II produzem grãos, mas apenas uma possui inscrição estadual e silos de armazenamento (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

“O fato de a declaração comercial ser proveniente de um CAR não significa que a produção não seja proveniente de outro. É uma interpretação errada das empresas considerar o CAR como uma declaração de propriedade”, explica Joana Faggin, consultora da organização holandesa Aidenvironment. Ela ressalta que não é incomum que proprietários dividam uma mesma área em vários CARs com outro propósito, como excluir áreas irregulares da propriedade nomeada no registro comercial da fazenda. “O comprador da commodity precisa considerar o que está acontecendo em toda a área e verificar se existe algum desmatamento ou outra irregularidade”.

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Desmatamento para plantio ameaça Cerrado

Outro caso mapeado pela reportagem é de um fornecedor da Cofco International no Cerrado, segundo bioma mais desmatado do país, atrás da Amazônia. A região é central para o setor da soja: 52% do grão cultivado no país está concentrado em municípios do bioma.

Em março de 2021, a Uggeri Agropecuária, localizada em Nova Mutum, fez diversas entregas de soja ao armazém da trading chinesa em Lucas do Rio Verde, também em Mato Grosso. Assim como no primeiro caso, um contrato de compra e venda de novembro de 2020 firmado entre a Cofco e a Nutrade mostra a promessa de entrega de 1,3 toneladas de soja com origem na Uggeri Agropecuária.

A empresa é dona da Fazenda Ranchão, onde cultiva grãos e cereais. Na propriedade contígua Fazenda Ranchão II, três áreas foram embargadas pela Sema-MT em agosto de 2015. Imagens de satélite mostram que a Uggeri Agropecuaria continuou a plantar na área embargada, inclusive durante o período de suas vendas para a Cofco, o que constitui uma violação aos compromissos que assumiu publicamente, segundo especialistas que analisaram o caso a pedido da reportagem.

Em 2015 a Fazenda Ranchão, da Uggeri, foi multada por desmates além do limite autorizado e por isso sua área foi embargada (Foto: Sasha Chavkin)

Segundo o Código Florestal, é proibido realizar qualquer atividade econômica em áreas embargadas, que devem ser preservadas para a recuperação da vegetação nativa. Por sua vez, a Política de Fornecimento Sustentável de Soja da Cofco, diz que a empresa adquire soja apenas de produtores que estejam de acordo com legislações ambientais federais, estaduais e municipais, e que respeitem áreas embargadas e acordos setoriais. Tais políticas são aplicáveis “a todos os fornecedores, diretos e indiretos”. 

Mas isso nem sempre é aplicado. No caso da Uggeri, a empresa tinha autorização do órgão estadual para desmatar 992 hectares na propriedade em junho de 2012. A área desmatada, no entanto, ultrapassou o limite permitido, e em agosto de 2015 a Uggeri Agropecuária recebeu três multas: uma por destruir 3,15 hectares de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente, outra por desmatar 22,2 ha em área de reserva legal e a terceira por não atender solicitação do órgão ambiental. Pelas três infrações, a empresa foi multada em R$ 157 mil, além de ter as áreas embargadas.

Em janeiro deste ano, as áreas bloqueadas na Fazenda Ranchão II foram desembargadas pela Sema-MT – portanto, durante a vigência do contrato com a Nutrade, a soja produzida nessa área era irregular. A Repórter Brasil entrou em contato com a empresa e com a secretaria estadual para esclarecer o motivo do desembargo e para ouvir a versão dos fatos da produtora de soja.

À reportagem, a Sema-MT afirmou apenas que o desembargo à Fazenda Ranchão II, ocorrido no dia 16 de janeiro de 2023, “está embasado no artigo 15B do Decreto Federal nª 6514/2008”. O artigo em questão afirma que uma área poderá ser desembargada caso a empresa ou indivíduo autuado apresente documentação que regularize a obra ou atividade na área. Leia a resposta completa aqui. A Uggeri Agropecuária não respondeu às tentativas de contato. O espaço segue aberto para manifestações futuras.

Assim como no caso do produtor Lazarotto, a Cofco afirmou que a Fazenda Ranchão está dividida em três CARs e que adquiriu soja apenas do cadastro sem irregularidades ambientais. Leia as respostas na íntegra aqui.

Metas repetidas e falta de transparência

A obtenção das vantagens financeiras de empréstimos ligados a critérios de sustentabilidade – mais conhecidos pelo seu termo em inglês Sustainability-Linked Loans –, como juros baixos ou flexibilidade no prazo de pagamento da dívida, tem como contrapartida o cumprimento de metas pré-acordadas junto aos financiadores, avaliadas por meio de indicadores-chave de desempenho (KPI ou Key Performance Indicator, no termo em inglês).

Nessa modalidade de empréstimo, cada meta de sustentabilidade é auditada anualmente por uma terceira-parte independente. As metas e os prazos para o cumprimento de cada promessa, no entanto, não são públicos em contratos desse tipo.

Por outro lado, não há legislações nacionais que determinem o que é e o que não é uma operação financeira ligada a critérios de sustentabilidade. Sequer as regras do mercado financeiro possuem força para obrigar o cumprimento dos objetivos propostos em contratos deste tipo.

Empresas de grãos prometem metas de sustentabilidade, mas não conseguem garantir rastreabilidade completa de suas cadeias produtivas (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

“O que existem são princípios que norteiam esse tipo de investimento. Todas as operações que querem ter credibilidade vão ser baseadas nesses princípios. Mas como o próprio nome já diz, são princípios, não são diretrizes”, ressalta Cristóvão Alves, diretor de pesquisa e avaliação ESG [Ambiental, Social e Governança, na sigla em português] da consultoria NINT, comprada em fevereiro pela ERM, maior consultoria global de sustentabilidade.

No primeiro contrato “verde” assinado pela Cofco International, em julho de 2019, a multinacional divulgou que, entre as metas acordadas, estavam a de “melhoria anual da performance ESG” e de “aumentar a rastreabilidade de commodities agrícolas, com foco para a aquisição direta de soja no Brasil”. A renovação dos acordos, nos anos seguintes, porém, não ensejou mudanças nas promessas, que seguiram sendo exatamente as mesmas inclusive em julho de 2022, na mais recente renovação.

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“Como não tem transparência e não há regras definidas, é um mercado de faroeste. Qualquer um pode chamar um empréstimo de Sustentability-Linked”, avalia Merel Van der Mark, da Florestas & Finanças. “O que vemos é que fazem muita publicidade sobre isso: ‘é o maior Sustainability Linked Loan’, mas não fazemos ideia de qual foi acordo e nem se o acordo está sendo cumprido”.

Lavouras de grãos são um importante vetor de desmatamento na Amazônia e no Cerrado brasileiros (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Alves pondera que o mercado de dívida sustentável ainda é recente e tem espaço para desenvolvimento e adequações. Como resposta, defende mais transparência. “Seria bem importante, até para operações bilaterais, entre um banco e uma empresa, ter algum nível de transparência. Quais são os indicadores? Quais são as metas? Não são aspectos tão confidenciais e estratégicos assim. Passa um pouco a impressão de que as empresas só divulgam quando há obrigação”.

À reportagem, a Cofco International afirmou que os contratos, os indicadores de desempenho e as vantagens obtidas na aquisição dos empréstimos vinculados a critérios de sustentabilidade são confidenciais. A reportagem também questionou o BBVA, coordenador do consórcio que forneceu e renovou os financiamentos bilionários à Cofco, se os casos de desmatamento ligados a fornecedores de soja da trading não violariam as regras estabelecidas em contrato. O banco declarou apenas não poder fornecer nenhuma informação sobre a relação com seus clientes. Leia as respostas na íntegra aqui.

Regras para diretos e indiretos

Em 2020, a Cofco anunciou a meta de rastrear toda a soja adquirida de forma direta no Brasil até este ano. Não há nenhuma menção ou meta específica relacionada ao monitoramento de fornecedores indiretos nos anúncios dos empréstimos obtidos desde 2019.

Em resposta à reportagem, a Cofco afirmou “embora este tópico seja uma prioridade, os fornecedores indiretos de soja não estão incluídos em nossos últimos KPIs [indicadores-chave de desempenho] de empréstimos”. Leia as respostas na íntegra aqui.

O rastreamento dos indiretos é um dos principais gargalos do setor, já que o maior número de irregularidades ambientais acontecem nessa etapa “oculta” do fornecimento do grão. Ainda que a passos lentos, esse monitoramento já é realidade no setor: a brasileira Amaggi afirma ter 26% de rastreabilidade das aquisições indiretas de soja na Amazônia e no Cerrado e a americana Bunge divulgou ano passado ter atingido 64% do monitoramento de indiretos no Cerrado. A Cofco não divulga a porcentagem de fornecedores indiretos rastreados.


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