Queima pelo WhatsApp e vende no Facebook: como a Amazônia é saqueada por grileiros de terras

PF encontra suspeita de grilagem (roubo) de terra protegida na Amazônia que foi queimada no Dia do Fogo, em 2019. Reportagem encontrou mais de 150 ofertas suspeitas de áreas griladas no Facebook. Revelações dão sequência a investigação de Dom Phillips feita em parceria com a Repórter Brasil
Por Karine Pfenniger e Mariana Abreu (Forbidden Stories) e Daniel Camargos (Repórter Brasil)
 03/06/2023
Área queimada durante o Dia do Fogo na Reserva Biológica Nascentes Serra do Cachimbo, no Pará, que foi anunciada no Facebook (João Laet/Repórter Brasil)

Um dos principais suspeitos por organizar o Dia do Fogo – quando fazendeiros do Pará combinaram por WhatsApp e incendiaram a Amazônia em 2019 – estaria envolvido em ao menos quatro tentativas de grilar (roubar) áreas protegidas da floresta queimadas na ocasião. É o que aponta investigação da Polícia Federal, obtida com exclusividade pelo “Projeto Bruno e Dom” – consórcio de jornalistas formado para investigar a pilhagem da Amazônia, e integrado pela Repórter Brasil.

Um dos terrenos queimados em 2019 foi posteriormente anunciado pelo Facebook. A revelação foi feita pela Repórter Brasil em 2020, em parceria com o jornal inglês The Guardian e o jornalista Dom Phillips. Há um ano, Phillips foi assassinado em uma emboscada no Vale do Javari, no Amazonas, durante investigação sobre a exploração da floresta. Para dar sequência ao trabalho dele, mais de 50 jornalistas de 10 países e 16 veículos de comunicação se uniram em um consórcio organizado pelo Forbidden Stories.

Seguindo o rastro de Phillips, o consórcio identificou 52 anúncios suspeitos publicados semanalmente no Facebook com a oferta de terras griladas. A rede social permite a divulgação das ofertas e, assim, tornou-se ferramenta fundamental no esquema de grilagem de terras na Amazônia.

O Dia do Fogo remete à articulação de fazendeiros e empresários do Pará para queimarem ao mesmo tempo áreas de pasto e floresta, ainda no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro (PL). Nos dias 10 e 11 de agosto de 2019, os sistemas de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) detectaram 1.457 focos de incêndio no estado, 2.000% a mais em relação ao ano anterior.

Quase quatro anos depois e ainda sem punição aos envolvidos, o avanço das investigações leva ao presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso (PA), Agamenon Menezes. Apesar de investigado, ele continua atuando para transformar áreas protegidas, como a Floresta Nacional do Jamanxim e a Reserva Biológica Nascentes Serra do Cachimbo, em fazendas para engordar bois ou plantar soja.

O esquema de grilagem tenta “legalizar” as áreas ao registrá-las no Cadastro Ambiental Rural (CAR) – sistema do governo federal no qual donos de terras informam a localização de suas áreas. O simples registro não equivale ao título de propriedade, mas é suficiente para o grileiro obter um documento oficial e, assim, tentar reivindicar a posse. Por ser autodeclaratório e pela falta de controles administrativos, o cadastro facilita a grilagem.

Segundo a investigação da Polícia Federal, quatro fazendas localizadas dentro de áreas de preservação queimadas no Dia do Fogo foram registradas no CAR, por intermédio do sindicato rural de Novo Progresso, após a onda de incêndios. Quem assina os registros como responsável técnico é Wilmar Santos Melo, despachante do sindicato e genro de Agamenon. O relatório da PF foi enviado para o Ministério Público Federal, que não comenta as atividades de Melo e alega que a investigação corre em sigilo.

Desde 2015, Melo registrou no CAR 77 lotes inseridos parcial ou totalmente em unidades de conservação, onde é ilegal constituir propriedade privada, segundo cruzamento de dados realizado pelo consórcio de jornalistas. Isso significa que Melo, o sindicato e Agamenon Menezes podem estar envolvidos na tentativa de legalizar cerca de 75 mil hectares de floresta amazônica protegida nos últimos oito anos – essa área é duas vezes maior que a cidade de Belo Horizonte (MG).

“Em cada município, há talvez duas ou três pessoas que sabem tudo: quem é dono do que, quem está onde, quais são os preços. Também são essas pessoas que cadastram as propriedades no CAR e se ocupam do processo de regularização. Elas meio que controlam esse mercado”, explica a especialista em gestão fundiária do Imazon, Brenda Brito.

Funcionário do sindicato patronal de Novo Progresso fez mais de 600 registros no CAR desde 2015, sendo que ao menos 77 estão inseridos dentro de unidades de conservação na Amazônia (Guillaume Meigniez / Forbidden Stories)

Melo já foi multado por “prestar informação falsa no procedimento administrativo do CAR” de vários lotes no Pará (ele registrou mais de 600 áreas desde 2015). A multa de R$ 111,5 mil, imposta pelo Ibama em 2016, ainda não foi paga e é contestada judicialmente. A reportagem tentou entrevistar Melo por diversos meios, mas segundo seu sogro, ele não quis comentar.

Já Agamenon Menezes confirmou os registros no CAR, assim como suas ligações com Melo, de quem, além de sogro, é patrão. Ele diz que o sindicato tem parceria com o Incra para os registros no CAR e afirmou ainda ser “normal” o cadastro de áreas dentro de unidades de conservação. Sobre os quatro lotes queimados e registrados no CAR pelo sindicato, ele diz que não tem ingerência sobre as áreas e que o sindicato apenas repassa as informações recebidas dos proprietários.

Menezes é um dos investigados pelo Dia do Fogo após ter sido flagrado em um grupo de WhatsApp chamado “Sertão” combinando com outros fazendeiros e empresários a queimada da floresta. Em 2019, a PF realizou busca e apreensão em sua casa e no sindicato.

Investigado por organizar o Dia do Fogo, o presidente do sindicato dos produtores rurais de Novo Progresso, Agamenon Menezes, é suspeito de usar a entidade para tentar legalizar terras queimadas (João Laet/Repórter Brasil)

Marketplace da grilagem

(Imagem: Anaïs Caura/ Forbidden Stories)

Uma das 77 áreas de preservação registradas por Melo no CAR se deu em favor de Nair Rodrigues Petry, que ficou conhecida em 2019 por acusar fiscais ambientais como responsáveis pelos incêndios.

Petry foi candidata a vereadora pelo PSDB em Guarantã do Norte, cidade do Mato Grosso na divisa com o Pará, em 2004 e 2016. Adotou o nome político de Nair Brizola, uma homenagem ao político gaúcho fundador do PDT. Em 2019, ela concedeu entrevistas dizendo que os responsáveis pelas queimadas eram fiscais do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). A declaração motivou o então presidente Jair Bolsonaro a determinar investigação da Polícia Federal sobre os agentes públicos, em mais um ato da agenda antiambiental do ex-presidente.

Dias depois da declaração, Petry foi multada em mais de R$ 1 milhão pela destruição da área no Dia do Fogo – são 71 hectares dentro da Reserva Biológica Nascentes Serra do Cachimbo.

Procurada pela reportagem, Nair Brizola afirmou que é proprietária da terra desde 1994, antes da criação da reserva. “Eu paguei pelo direito de estar aqui!”, ela diz. Também disse que não se lembrava de o terreno ter sido registrado no CAR, embora isso tenha sido feito por Wilmar Santos Melo em 2015.

Reprodução do anúncio feito por Nair Brizola em um grupo de Facebook para tentar vender um terreno dentro de uma área de proteção. Ao lado, cópia do auto de infração aplicado pelo ICMBio (Reprodução)

A investigação de Phillips e da Repórter Brasil em 2020 mostrou que Nair Brizola chegou a anunciar o terreno queimado no Facebook. Essa prática vem se multiplicando na maior rede social do mundo. Em um intervalo de três semanas, a investigação do Forbidden Stories identificou mais de 150 anúncios suspeitos de venda de terras griladas nos estados de Amazonas, Pará e Mato Grosso.

Um dos vendedores que oferecem terras na Amazônia a preços baixos se identifica como João. A equipe do Forbidden Stories fez contato com ele se passando como potencial cliente. Por R$ 1.200 por hectare, um preço três vezes inferior ao preço médio da terra d na região de Almeirim, no norte do Pará. João oferta fazendas que podem chegar a 8.000 hectares (ou mais de 8.000 campos de futebol).

A venda dessas terras é ilegal, por estar em área de preservação, porém está a mostra para todos. Muitas vezes, a terra colocada à venda é vasta, está parcialmente desmatada e não tem título de propriedade. Alguns anúncios oferecem terras a preços muito baixo, como R$ 450 por hectare, que equivale a 10 mil m².

João oferece também outros serviços. “Eu tenho como fazer a derrubada e queima [da mata] no meio de outubro, quando parar de chover. Queima por minha conta”, continua. “Quando chega dezembro e começa a chover novamente aqui na região, joga semente de avião, aí a fazenda está praticamente formada. O principal é derrubar”. Para limpar o terreno e semear o capim, João cobra R$ 800 por hectare.

Ele diz que já foi pedido ao Instituto de Terras do Pará (Iterpa) o título da propriedade do terreno, e envia documentos para provar que o processo está em curso e que, com um pagamento adicional de R$ 400 por hectare, a titulação fica pronta em seis meses. Sem isso, o processo pode levar até 20 anos. Procurado, o Iterpa não respondeu.

Anúncios no Facebook ofertam terrenos suspeitos de grilagem na Amazônia (Reprodução)

A equipe do Forbidden Stories conversou com oito vendedores de terra ativos no Facebook. Vários informaram que não possuíam um título de propriedade, o que é essencial para a venda de terras.

Quando a BBC revelou, em 2021, que o Facebook estava sendo usado para vender terras em Rondônia, a rede social se comprometeu a proibir a venda de terras protegidas na sua plataforma Marketplace.

Contatada pelo Forbidden Stories, a Meta informou que estava analisando os anúncios no Facebook Marketplace para “identificar aqueles que podem violar suas regras”, e reiterou que a plataforma proíbe “a venda de terras localizadas em unidades de conservação” em seus espaços comerciais. “Determinar se uma determinada área pode ser vendida envolve uma análise jurídica complexa, que compete aos tribunais locais”, acrescentou o porta-voz.

*Com pesquisa e análise de dados realizadas por Ruan Martins e Eduardo Goulart (OCCRP)

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