O assassinato de Bernadete Pacífico, liderança do quilombo de Pitanga dos Palmares, ocorrido no dia 17 na região metropolitana de Salvador (BA), reflete os riscos da demora no processo de titulação dos territórios tradicionalmente ocupados por essas comunidades, avaliam especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.
Pelo menos 30 quilombolas foram mortos nos últimos 10 anos em 18 territórios diferentes, segundo a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). Somente duas destas comunidades foram tituladas e outras duas receberam titulação de parte do território, de acordo com o Observatório Quilombola da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP).
Para Hédio Silva Jr, ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, a morosidade desse processo transforma os moradores de quilombos em “alvos ambulantes”. “Se você titula a terra, diminui drasticamente a chance de conflito”, afirma Silva, primeiro advogado a defender a titulação de quilombos no Supremo Tribunal Federal (STF).
Pitanga dos Palmares foi reconhecida como comunidade quilombola pela Fundação Cultural Palmares (FCP) em 2005. Esse é o primeiro passo para a demarcação do território. No entanto, passadas quase duas décadas, o processo de titulação definitiva ainda não foi concluído pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Assim como os habitantes de Pitanga dos Palmares, 90% dos quilombolas do Brasil ainda vivem em territórios não titulados. A informação é do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgado em julho com dados específicos sobre essa população. De acordo com o levantamento inédito, existem 1.327.802 de pessoas identificadas como quilombolas em todo o país. Os estados do Nordeste concentram 68% desse total.
Ainda segundo o IBGE, existem seis mil comunidades à espera da demarcação final de seus territórios – boa parte está localizada em áreas em disputa com empreendimentos imobiliários e agropecuários.
Conflitos e regularização
Em ofício expedido um dia após o assassinato de Mãe Bernadete, o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) demandaram à Presidência da República e ao governo da Bahia a adoção de medidas urgentes para efetivar a proteção dos territórios quilombolas no estado.
Dentre os pedidos, destacam-se a criação de uma unidade de investigação especializada em casos relacionados a povos tradicionais e a suspensão de licenças para obras e empreendimentos em que as comunidades impactadas não tenham sido previamente consultadas.
“Se por um lado a regularização dos territórios tradicionais não avança, por outro, as atividades econômicas seguem em ritmo acelerado em todas as regiões baianas, com a anuência estatal, impactando as comunidades tradicionais e colocando suas lideranças em risco constante”, destaca o documento.
Liderança de Bananeiras, uma das comunidades do quilombo Ilha de Maré, em Salvador, Marizelia Lopes cobra ações efetivas das autoridades para reverter o atual quadro de vulnerabilidade. “Não são só os assassinos que estão com a mão suja de sangue, também é o Estado”, afirma. “É a cor da gente que incomoda. Se a gente reclama, estamos condenadas a morrer”, complementa Marizelia.
Ameaças e investigação
Em nota, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) afirma que Mãe Bernadete há dois meses sofria ameaças de morte, atribuídas a “grupos ligados à especulação imobiliária em Salvador”.
O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), chegou a afirmar que a principal tese da investigação apontava para uma relação do assassinato com a disputa de facções criminosas. Procurada, a Polícia Civil não confirmou a informação e respondeu que segue com as investigações, mantida sob sigilo.
A Conaq lembrou que Flávio Gabriel Pacífico dos Santos (Binho do Quilombo), filho de mãe Bernadete, também foi assassinado há seis anos. Até hoje, ninguém foi punido pelo crime.
“Ainda que alguns tentem colocar na conta do [ex-presidente Jair] Bolsonaro a morosidade ou a paralisação na regularização fundiária, nós temos dito que a boiada tem passado independente de gestões de governo de direita ou de esquerda”, critica Elionice Sacramento, defensora de direitos humanos da comunidade de pescadores e quilombolas de Conceição de Salinas, em Salinas da Margarida, na Bahia.
Proteção da família de Bernadete
De acordo com reportagem publicada no G1, o advogado David Mendez, que representa a família de mãe Bernadete, pediu para ser beneficiado no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH). David relata ter sofrido perseguição quando retornava da sede do quilombo em que a ialorixá foi morta. No dia do crime, os familiares de Bernadete deixaram o quilombo.
Em março deste ano, foi aprovado o Plano de Atuação Integrada de Enfrentamento à Violência contra Povos e Comunidades Tradicionais. Segundo o governo baiano, o documento tem como objetivo desenvolver ações preventivas e repressivas a fim de manter a integridade de pessoas e patrimônio em áreas de conflitos decorrentes de disputas de terra.
“Com vigência até 2026, o plano foi criado conjuntamente pelas Secretarias de Segurança Pública, de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais, de Justiça e Direitos Humanos e de Desenvolvimento Rural, além das Polícias Militar, Civil, Técnica e do Corpo de Bombeiros Militar”. Clique aqui para conferir a nota na íntegra.
Assassinatos de famílias
Bernadete e seu filho Flávio não são os únicos exemplos de famílias de lideranças quilombolas assassinadas.
Em 2020, Celino Fernandes e seu filho Wanderson Fernandes foram mortos por quatro pistoleiros na comunidade do Cedro, no município de Arari (MA), dentro de casa e na frente de familiares. Cedro é mais um dos quilombos com o processo de titulação em aberto.
Segundo o Mapa de Conflitos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), plataforma que reúne informações sobre disputas por terra no Brasil, os conflitos em Arari se intensificaram nos últimos anos. As vítimas denunciavam os cercamentos dos campos naturais por fazendeiros acusados de “uso predatório das áreas de uso comum de territórios tradicionais e camponeses para o monocultivo de arroz transgênico e criação de búfalos”.
Em 2021, o trabalhador rural José Francisco de Souza Araújo foi assassinado a tiros por dois homens na comunidade Volta da Palmeira, no município de Codó (MA). Vanu, como era conhecido, já havia perdido quatro de seus familiares em circunstâncias semelhantes. O processo de reconhecimento pelo Incra também foi iniciado, mas ainda não teve uma resposta final.