Indígenas permanecem desalojados, sem luz, água potável e suprimentos básicos, desde que o governo de Santa Catarina fechou uma barragem no rio Itajaí-Açu, em 8 de outubro. A medida foi tomada para reduzir o impacto da inundação de municípios como Rio do Sul e Blumenau.
Apesar de ter poupado as populações das cidades do Vale do Itajaí, o fechamento da barragem, que fica dentro da Terra Indígena (TI) Ibirama/LaKlãnõ, represou as águas do rio e alagou parte do território ancestral, onde vivem cerca de 4.700 pessoas em dez aldeias.
Dezenas de famílias das etnias Xokleng, Guarani e Kaingang tiveram de deixar suas casas às pressas. Elas estão isoladas em uma área com risco de deslizamento desde então.
No dia 14, as águas da barragem chegaram ao nível máximo e começaram a verter (sair pelo outro lado). As comportas foram reabertas no dia seguinte. Novos alertas de chuvas para os próximos dias na região aumentam a insegurança na comunidade.
“Fico muito preocupada. A terra lá pra cima está muito úmida, tenho medo de dar deslizamento, causar algum desastre”, conta Jussara Djakuy Caxias Reis Dos Santos, ex-liderança do território indígena.
Moradora da aldeia Plipatol, ela vem acompanhando a situação de familiares, amigos e vizinhos atingidos pelas chuvas. Como vive em uma parte mais elevada da aldeia, ela não teve de deixar sua casa, mas ajudou dezenas de parentes a buscarem um local seguro.
Desde o dia 8, os desalojados se abrigam em um galpão abandonado, ao lado da estrutura de contenção e próximo da estrada de acesso à TI, que continua com bloqueios. Além das enchentes, há fortes riscos de deslizamentos e desbarrancamentos, já que a construção da barragem assoreou boa parte das terras.
A situação dos indígenas já era precária antes mesmo do fechamento da barragem. Com as fortes chuvas iniciadas no dia 4, a estrada de acesso ao território indígena ficou inundada e parte do asfalto da via cedeu. Adultos ficaram sem trabalhar e os jovens perderam as aulas.
O fechamento momentâneo das comportas piorou a situação, pois acelerou o alagamento do território. Lideranças indígenas afirmam que os impactos poderiam ser menores, caso a gestão do governador Jorginho Mello (PL-SC) adotasse um plano de segurança para situações como essa.
Plano só no papel
Divulgado em janeiro deste ano, o plano de contingência foi criado pela Defesa Civil do estado em parceria com os indígenas e as prefeituras vizinhas de José Boiteux, Vitor Meireles, Doutor Pedrinho e Itaiópolis.
O documento antecipa as ações a serem tomadas por órgãos públicos, de acordo com os riscos provocados pelas chuvas na região da barragem. Porém, o protocolo não foi seguido no primeiro teste, segundo os indígenas ouvidos pela Repórter Brasil.
No cenário atual, a Defesa Civil deveria entrar em estado de alerta, fornecer cestas básicas e enviar uma viatura para o posto de saúde indígena, além de transporte coletivo (micro-ônibus 4×4) para a comunidade.
“Nunca vimos esse ônibus e o posto de saúde não tem suporte”, afirma Jussara Djakuy. “A aldeia tem um carro só e precisa atender aldeias distantes”, complementa.
Os moradores das aldeias inundadas de Coqueiros, Pavão e Figueira contam que deixaram suas casas a pé, sem suporte nem orientação dos órgãos estaduais.
As ações do governo de Santa Catarina na região mostram uma diferença no tratamento dispensado à população não indígena. Quando as enchentes inundaram as cidades de Blumenau e Rio do Sul, a Defesa Civil e o Corpo de Bombeiros resgataram os moradores de suas casas em botes motorizados, segundo o site NSC.
O cacique regional da aldeia Plipatol, Brasílio Priprá, afirma que não houve ações da Defesa Civil para deslocamento ou abrigo dos indígenas. “Só recebemos cestas básicas até agora. Outras medidas para atender a comunidade, como a retirada para um lugar seguro, não aconteceu”, ele diz.
Procurada para comentar as medidas de assistência aos indígenas, a Defesa Civil e o governo de Santa Catarina não retornaram até a publicação desta reportagem.
Sob chuva e bala de borracha
As promessas não cumpridas do plano de contingência geraram um conflito entre indígenas e o governo Mello
Em conversa por telefone, o cacique presidente, Setembrino Camlen, e o governador Jorginho Mello concordaram com o fechamento após promessas do estado em fornecer suporte — como botes e auxílio médico. Parte das demandas, como ônibus, viaturas e cestas básicas, já eram previstas no plano de contingência, não cumprido até então.
Entretanto, o não cumprimento do acordo levou um grupo de indígenas a organizar um protesto no dia seguinte às negociações.
A manifestação foi reprimida pelas forças policiais. Balas de borracha, spray de pimenta, bombas de gás lacrimogêneo e até munição de verdade foram usadas contra os Xokleng. Três pessoas foram baleadas, segundo o Corpo de Bombeiros.
Com o fechamento das comportas, as chuvas seguintes colocaram debaixo d’água diversas casas e, em alguns casos, aldeias inteiras, como as de Coqueiros, Pavão e Figueira. Os desabrigados deixaram tudo rumo ao abrigo em Plipatol.
A aldeia Sede, mais distante dos acessos principais, permanece isolada pelas cheias. Para comprar mantimentos, a líder comunitária faz o trajeto até o armazém mais próximo em dois meios de transporte — carro e canoa.
Nesta situação, considerada alerta vermelho, o plano de contingência estipula que helicópteros sejam enviados para o resgate em comunidades isoladas. À reportagem, Brasílio conta que nada disso foi feito. “Isso é só no papel. O papel aceita tudo”, critica.
Uma por todos
Para a comunidade, a sensação geral é de que estão abandonados à própria sorte. É o que Jussara sentiu na pele em 12 de outubro. Três dias antes do vertimento da Barragem, ela ajudou a família da irmã, Rinesma, a deixar a casa prestes a ser inundada, na parte baixa da aldeia Plipatol. Ao se deparar com a situação da vizinhança, a ajuda logo se transformou num resgate geral.
Com água próxima ao relógio de energia, idosos, adultos e crianças — duas delas com deficiência — escaparam por cerca de 2 km a pé, ou na tobata (espécie de trator motorizado) de Brasílio.
Em meio ao trajeto chuvoso, os desalojados priorizaram roupas e pertences, salvando poucos móveis. Cães foram levados. Ilhados, porcos e galinhas foram salvos no dia seguinte, de canoa. O gato de estimação de Rinesma ficou na casa até a água atingir o teto.
As fontes contam que a Defesa Civil não emitiu alertas nem enviou transporte ou outras formas de suporte para o desalojamento na ocasião.
Jussara conseguiu abrigar a irmã e os sobrinhos longe das enchentes, em sua oficina de tecelagem. A maioria não teve essa sorte. Logo, o galpão se tornou a nova casa dos desalojados.
No local não há água potável, energia nem chuveiro. Não há vidros nas janelas, e mais de uma vez as chuvas e o vento se infiltram, estragando colchões, mantimentos e os poucos pertences que ainda sobreviveram às enchentes.
O alojamento improvisado não era um dos previstos pelo plano de contingência, que estipula a evacuação para casas de familiares ou pontos de encontro em cada uma das aldeias. O documento inclui também abrigos comunitários em José Boiteux, Vitor Meirelles e Itaiópolis.
Escolhidos pela Defesa Civil de SC, os pontos fora da TI oferecem água potável, luz e energia, mas não segurança, segundo os indígenas. Eles dizem que as populações das cidades são hostis a eles, pois ficam em cidades fundadas após chacinas e epidemias que dizimaram as populações indígenas. A disputa por este território gerou a ação judicial que levou o Supremo Tribunal Federal a derrubar a teoria do “marco temporal”.
À Repórter Brasil, o cacique regional afirma que mesmo que os órgãos seguissem os critérios à risca, o plano de contingência não funcionaria na prática.
“O plano não funciona porque as estradas já estão debaixo d’água. Os postes, os fios, estão embaixo d’água. Uma coisa é escrever. Outra coisa é acontecer. E foi isso o que aconteceu. Não passa criança para a escola, não tem como atender.”
A crise climática logo se torna, também, sanitária. Principal suporte médico local, o posto de saúde na aldeia Pavão também foi comprometido. A água, até a metade da entrada, arruinou remédios, equipamentos médicos e suprimentos. Os desalojados passaram a apresentar diarréias e problemas pulmonares, como gripe, bronquite e resfriado.
Jussara conta que os funcionários do posto fazem o que podem — algo que, na maioria dos casos, significa transferir os doentes para hospitais em José Boiteux ou Ibirama.
Cinco dias após o fechamento, a barragem atingiu o nível máximo. No dia 14 de outubro, pela primeira vez na história, transbordou. Foi reaberta gradualmente a partir do dia seguinte.
Ficar é difícil, voltar é pior
Procurado pela Repórter Brasil, o Ministério dos Povos Indígenas anunciou que está tomando medidas de curto a longo prazo para o território. Dentre elas, estão previstas a entrega de 3.000 cestas básicas até dezembro de 2023, e aquisição de carne para complemento da alimentação. O governo federal também enviou R$ 1,2 milhão ao governo de SC para atendimento às necessidades locais.
Com a diminuição das chuvas, as pessoas já contemplam voltar para suas casas nas cidades cujos impactos foram mitigados pela barragem. Mas na TI Ibirama-LaKlãnõ, ainda é cedo (e perigoso) demais para isso.
Devido ao assoreamento do terreno causado pela barragem, casas, estradas e estruturas no território podem deslizar a qualquer momento.
“Não tem ninguém olhando, ou se preocupando. A gente mesmo olha, sai, avisa fulano, ‘sai daí, vai vir água de novo’. Teve duas famílias que voltaram para casa. Uma delas é meu parente, e eu já disse pra ela que vai chover”, diz Jussara.
“E tem muitos não índios falando que os índios só querem isso para se aproveitar. A gente não fez essa escolha. A gente tá sofrendo. Quem queria estar numa situação dessa, sair de dentro da casa pra morar de favor?”, continua ela.
O espaço segue aberto para manifestação da Defesa Civil e da Secretaria do Estado de Santa Catarina.