Fé, churrasco e lobby: a resistência contra a retomada da terra indígena mais desmatada do país

Tomada por 60 mil bois, Terra Indígena Apyterewa é alvo de megaoperação. Moradores irregulares se dividem entre a igreja e o churrasco patrocinado por fazendeiros, enquanto esperam que aliados políticos consigam impedir a expulsão
Por Daniel Camargos*
 06/10/2023

O pastor da Igreja Assembleia de Deus Nação Madureira canta um louvor cuja letra diz que os fiéis vencerão a guerra que estão enfrentando. O tema da pregação, realizada na noite desta segunda (2) na Vila Renascer, localizada dentro da Terra Indígena (TI) Apyterewa, em São Félix do Xingu (PA), serve como alento para as 210 famílias que vivem ilegalmente dentro do território.

Elas foram notificadas a deixarem suas casas imediatamente. Escoltando os oficiais de justiça estava uma mega-operação, com dezenas de viaturas da Força Nacional, Polícia Federal, Ibama e Polícia Rodoviária Federal, que promovem desde segunda (2) a operação de retirada dos ocupantes irregulares da Terra Indígena Apyterewa.

A TI Apyterewa foi a terra indígena na Amazônia mais desmatada nos últimos quatro anos. O comando da operação estima que cerca de 60 mil bois pastem ilegalmente no interior da área reservada ao povo Parakanã.

Na quarta-feira (04), uma pessoa foi encontrada em condições análogas à escravidão na fazenda Sol Nascente, de Antônio Borges Belfort, dentro da TI, segundo uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A reportagem tentou contato com Belfort, mas não obteve resposta. Em uma investigação de junho de 2020, a Repórter Brasil mostrou como o pecuarista criava e vendia gado irregularmente dentro do território.

A estratégia da operação comandada pela Secretaria Geral da Presidência da República e pela Funai é minar aos poucos o abastecimento da vila para que os moradores saiam do local pacificamente. Na terça (3), a torre que fornecia o sinal da internet foi retirada. O planejamento é cortar o abastecimento de luz nos próximos dias.

O fornecimento de combustível também foi impedido. Fiscais da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) fecharam os dois postos de combustível construídos na vila. Simultaneamente, o Ibama apreendeu um caminhão e um trator usados por madeireiros.

Sem disposição para sair e ignorando a presença da força policial, um fazendeiro parou uma caminhonete com um boi abatido diante das viaturas da Força Nacional estacionadas na vila com os giroflex ligados. Ele descarregou os pedaços de carne e abasteceu um churrasco iniciado em frente à igreja ainda no domingo (1), quando chegaram os primeiros carros da Força Nacional.

Fazendeiros abateram cinco bois em quatro dias e promoveram um churrasco ininterrupto desde domingo para alimentar os moradores que resistem à operação de retomada da TI Apyterewa

Enquanto comiam e bebiam, os não indígenas recebiam orientações de um advogado, que informou que o prefeito de São Félix do Xingu, João Cleber (MDB), e seu irmão, o deputado estadual Torrinho (Podemos), estavam a caminho de Brasília para tentar paralisar a operação de desintrusão.

Ele disse que falava em nome da OAB do Pará e da comissão de direitos humanos. Contudo, foi desautorizado em nota publicada pela entidade.
Os dois políticos defendem a invasão da terra indígena e a redução da área demarcada. Ambos têm uma base política essencialmente bolsonarista, mas são aliados do governador Helder Barbalho (MDB), base do governo Lula (PT).

Foi em 2007, no governo Lula, que a TI Apyterewa foi homologada. Em 2016, surgiu a Vila Renascer. Na época, o governo de Michel Temer ignorou as determinações do STF para retirada dos moradores irregulares da TI. Sob a gestão de Bolsonaro, a Vila Renascer cresceu, impulsionada pelo discurso do ex-presidente contrário à proteção e demarcação dos territórios indígenas.

Localizada no sudoeste do Pará, a TI Apyterewa tem 773 mil hectares – uma área equivalente a cinco cidades de São Paulo. Segundo o último Censo do IBGE, há 767 indígenas na região.

O número de moradores é incerto. O IBGE contabiliza 616 residentes, mas a presença de habitantes de outras vilas localizadas fora da reserva – como as comunidades de Ladeira Vermelha e Teilândia – que trabalham nas fazendas em áreas invadidas, pode inflar o número para mais de 2 mil moradores irregulares. Inicialmente, o comando da operação havia informado a presença de 3 mil famílias de não-indígenas no território.

Um dos patrocinadores do churrasco, que seguiu ininterruptamente de domingo (1) até a manhã de quarta-feira (4), quando a equipe da Repórter Brasil deixou o local, é Derly dos Santos Ramiro. O fazendeiro foi preso na terça com uma arma sem registro. Levado para a base da Funai, onde a força policial se concentra, pagou fiança de R$ 7 mil e foi liberado.

Crianças correndo na Vila Renascer

Na casa de Ramiro foram encontrados os documentos e uma picape de Lauanda Peixoto Guimarães, proprietária de um dos postos de combustível fechados pela operação na segunda-feira. Guimarães estava junto com seu marido, Rogério Silva da Fonseca, o Goiano, que ameaçou sequestrar e agrediu a equipe da Repórter Brasil. O casal, contudo, saiu da fazenda antes da chegada dos policiais.

Guimarães já havia sido presa em 2021 durante uma ação da Polícia Federal por venda irregular de gasolina e por manter uma farmácia clandestina em casa. O advogado que orientava os moradores durante o churrasco também estava hospedado na fazenda de Ramiro.

Fila de caminhões na Vila Renascer aguardando a autorização dos policiais para buscarem os bois que estão ilegalmente dentro da terra indígena

A música que animava o churrasco só diminuía o volume depois do pôr do sol, quando o culto em uma das quatro igrejas evangélicas da vila começava. Uma moradora conta que quando chegou à Renascer, há quatro anos, as igrejas conseguiam impor um controle social forte e não era comercializada bebida alcoólica na localidade. “Mas foram chegando pessoas ruins e isso mudou”, avalia.

Caminhões que transportam gado passavam pelas ruas da vila para buscar e levar os bois para fora da terra índigena. Alguns moradores foram até a base da Funai montada próxima ao local pedir informações. Manoel Rodrigues, de 28 anos, chorava. Ele disse que não conseguiria tirar as 130 cabeças de gado que tem em uma fazenda dentro da TI rapidamente.

Rodrigues conta que comprou a área em 2013, com um dinheiro que ganhou de herança. “Eu não sabia que era terra indígena”, argumenta. Em uma operação do Ibama, em 2022, ele teve sua casa queimada. Mesmo assim, construiu um barraco e seguiu criando gado dentro da TI.

O gado deve ser retirado imediatamente, informou o assessor da Secretaria-Geral da Presidência, Nilton Tubino, que comanda a operação. Se isso não for feito, será entregue para Funai que repassará para a Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará abater. “Um prejuízo de R$ 200 milhões considerando as 60 mil cabeças de gado”. calcula.

Folheto distribuído pelo governo brasileiro

Investigações da Repórter Brasil já revelaram que parte dos bois da reserva é comercializado para grandes frigoríficos usando uma triangulação conhecida como lavagem de gado, quando produtores encobrem a origem ilegal de seu rebanho, registrando a passagem dos animais por uma fazenda que não tem impedimentos socioambientais para vender ao frigorífico.

“Esse nível de organização tem um custo”

Manoel Rodrigues (de verde) diz que não consegue tirar o gado que tem dentro da Apyterewa rapidamente

A coordenadora de fiscalização da Funai, Juliana Almeida, observa que além da busca pelo apoio de políticos há um financiamento pesado para manter a pressão contra a desintrusão. “Está aí a churrascada toda. Esse nível de organização tem um custo”, diz.

Ao conversar com os moradores é perceptível que a maioria usa o mesmo argumento para justificar a invasão. “Nunca vi um índio aqui”, dizem.

Almeida explica que os Parakanã foram removidos para as bordas do rio Xingu, distante da vila, durante o período que tiveram os primeiros contatos com o homem branco. Com a chegada dos invasores, aldeias foram queimadas e eles passaram a ser ameaçados constantemente. Por isso, segundo ela, evitam a aproximação.

Autor da ação que resultou na operação de retomada, o Ministério Público Federal argumentou que a permanência de ocupantes ilegais na área infla o risco de conflitos, violando o direito dos Parakanã à posse de seu território, além de aumentar o desmatamento na região.

“Depois que conseguir a desintrusão, a gente pode reflorestar a nossa terra. Tudo que a gente perdeu, pode ser recuperado”, afirmou a presidenta da Associação Indígena Tato’a, Wenatoa Parakanã, quando a operação estava sendo preparada pela Funai.

*Daniel Camargos é fellow da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center, em parceria com a Repórter Brasil

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