TUÍRE KAYAPÓ Mẽbêngôkre pede ao repórter que aguarde para fazer as perguntas. Enquanto ajeita o cabelo e pinta o rosto com jenipapo, começa a discursar:
“Eu estava doente e muito debilitada, cuidando da minha saúde. Enquanto isso, vocês (brancos) estão nos atacando, proferindo palavras ofensivas, querendo tomar tudo, nos prejudicar e destruir a nossa floresta.”
Tuíre, de 53 anos, é um ícone da resistência indígena. Aos 19 anos, passou a lâmina do facão no rosto do engenheiro que representava a Eletronorte durante uma audiência em Altamira (PA), para discutir a construção da hidrelétrica de Belo Monte. A resistência indígena adiou a obra, mas perdeu a batalha.
Nas mais de três décadas entre o movimento do facão e a entrevista no quintal da sua casa em Pau Darco, no sul do Pará, Tuíre exerceu um papel de liderança entre seu povo, sendo protagonista de várias marchas e protestos em Brasília. Atualmente, se recupera de um tratamento contra um câncer.
Ela foi pioneira no protagonismo feminino na luta dos povos indígenas, que décadas depois possibilitou a eleição de deputadas indígenas como Célia Xacriabá e a atual presidente da Funai, Joenia Wapichana, além da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. “Antigamente, eu estava sozinha, mas hoje tenho essas mulheres guerreiras ao meu lado”, afirma.
Tuíre pega o facão, o mesmo com o qual desafiou o Estado, e começa a cantar. Ao fim, balança-o, mostrando a lâmina afiada, e diz: “Estava calada porque estava doente e cuidando, mas agora este facão representa a minha voz novamente. É a minha luta, é minha história. Eu não vou me calar”.
A música que antecede o anúncio é um canto do povo Kayapó que afirma que o inimigo pode vir, mas não conseguirá nada.
Durante a entrevista, realizada em kayapó e traduzida simultaneamente pelo marido de Tuíre, Kôkôto Kayapó, o cacique Dudu, Tuire condenou as invasões dos garimpeiros ao território de seu povo e chamou de covardes os políticos que aprovaram o Marco Temporal no Congresso.
Ela também lamentou a construção de Belo Monte e se emocionou ao falar do aprendizado que teve com seus avós, bem como sobre seu desejo de deixar o legado de luta para a netinha de 5 anos, que carrega o mesmo nome dela.
“Ela vai me representar quando crescer. É a nova Tuíre que está surgindo, que vai crescer e defender o povo da mesma forma que estou fazendo”, afirma.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista. O texto final foi traduzido com a ajuda da sobrinha-neta de Tuíre, Emi Kayapó.
A senhora está preparando a sua neta para ser sua sucessora?
Nós, que somos Kayapó, temos um costume distinto. Quando temos um filho ou neto, cuidamos desde o nascimento até que cresçam. Dormimos com eles, pegamos no colo e vivemos com eles no dia a dia. Vocês (brancos) têm um costume diferente, deixam seus filhos crescerem sob os cuidados de outras pessoas. Não acompanham o crescimento e desenvolvimento deles. Nós não os deixamos por nada. Estão sempre conosco em tudo que fazemos. Cuidamos dos nossos netos, dormimos com eles e ficamos abraçados. Durante esses momentos, começamos a contar histórias e a ensiná-los desde bebezinhos.
Foi com a sua avó que a senhora aprendeu a ser guerreira?
Quando minha avó conversava comigo, ela me ensinava. Dizia que eu estava crescendo e que meu avô era um homem que lutava pela defesa dos nossos direitos. Aprendi tudo com meus avós. Eles me ensinaram tudo. Tudo o que falavam, eu aprendia. Meus avós me ensinaram a não deixar nenhum branco entrar na reserva indígena e ocupar espaço. Diziam para nós, indígenas, cuidarmos do que é nosso e da nossa floresta para não ser desmatada.
Meu avô viajava muito e acabou conhecendo e se envolvendo com os brancos. Ele foi morto pelos brancos que conheceu. Mataram ele e as pessoas que estavam com ele também. Pode escrever! Mataram meu avô com crueldade, frieza, e sem piedade. Aí eu te pergunto: o que foi feito? Nada. Alguém pagou alguma coisa?Não teve justiça. É por isso que hoje eu defendo e vou continuar falando: eu não aceito branco na reserva indígena! Não aceito branco na terra indígena!
Essas invasões a deixam indignada?
Vou continuar afirmando que sou contra tudo o que os brancos estão fazendo. Minha avó sempre me ensinou, sempre conversou comigo e explicou as coisas. É por isso que jamais vou entregar nossa floresta e a nossa terra para vocês. Podem falar, podem brigar, mas continuaremos defendendo e não daremos nada para vocês, pois tudo aqui nos pertence. Mesmo que eu não saiba a língua de vocês. Mesmo que eu não saiba escrever com caneta, continuarei defendendo usando minha língua materna. O que fizeram com meu avô e com as pessoas que estavam junto com ele foi uma injustiça. Enquanto eu estiver viva, continuarei lutando, e esta é minha neta, que veio me dar força. Vou seguir lutando por ela e por outros que virão.
Como está a saúde da senhora?
Eu estava doente e debilitada, mas estou me recuperando bem e cuidando da minha saúde. Logo vou fazer as minhas pinturas, cortar o meu cabelo e passar urucum no meu rosto. Porque eu sou Kaiapó e represento a minha cultura e o meu povo. Estou aqui sem pintura nenhuma no corpo quase igual a vocês (brancos). Não é isso que eu quero ser. Eu fico feliz quando estou pintada, quando uso meus enfeites. Eu fico feliz quando eu mostro a minha cultura de verdade.
O que a senhora pensa a respeito dos garimpeiros que invadem as terras do povo Kayapó?
Em nenhum momento o indígena chamou o garimpeiro para entrar na reserva indígena em busca de ouro. Foi o próprio garimpeiro que se ofereceu, entrou como intruso e começou a fazer seu serviço de busca pelo ouro. E eu não aceito. Sou contra o garimpo. O garimpo é algo que não aceitamos, defendemos nossa mata, pois é nossa sobrevivência. Sou contra o garimpo. Sou contra o desmatamento. Sou contra tudo o que querem fazer de prejudicial à nossa terra indígena.
E sobre o Marco Temporal, que foi aprovado pelo Congresso, qual a sua opinião?
Sou contra o Marco Temporal. Essas pessoas que afirmam saber tudo, que se proclamam donas de tudo, que se consideram donas de todas as coisas – esses senadores, esses ministros – que vivem dizendo que são grandiosos, que têm direito a tudo, por que não têm coragem de chegar até nós, indígenas, e conversar cara a cara para ouvir o que temos a dizer? Por que falam e realizam as coisas pelas nossas costas?
Estão tentando aprovar muitas leis sem nossa autorização, sem o nosso consentimento. Essas pessoas dizem ter poder para falar, mas são apenas covardes.Estamos sempre no Congresso e eles nunca nos recebem. Estão sempre fugindo. Nós, indígenas, não temos medo de falar a verdade. Não nos escondemos, não contamos historinhas. Não somos duas caras. Temos caráter e o que dizemos é a verdade. Olhem bem para mim, olhem atentamente. Acham que tenho medo de vocês? Acham que tenho medo de suas ameaças? Não tenho medo. Não tenho medo de falar a verdade.
O que esse facão em sua mão representa?
Meu corpo representa o facão, e o facão representa meu corpo, pois são uma única força. Uma força e uma luta. Uma história. Sou mulher, mas tenho a mesma determinação que um homem na hora da raiva. Tenho os mesmos direitos que um homem. Não tenho medo de nenhum homem. Não tenho medo de ninguém, pois possuo a mesma força que vocês representam ter.
A senhora usou o facão para impedir a construção de Belo Monte, mas anos depois a usina foi construída no rio Xingu. Qual o seu sentimento sobre a hidrelétrica?
Sempre fui contra, mas algumas pessoas do meu povo aceitaram sem me consultar. Hoje, não tenho nada. Recuso qualquer verba de qualquer pessoa. Não possuo dinheiro algum. Por quê? Porque não aceito essa covardia, essa mentira que vocês têm para nos oferecer. Mentem em tudo o que dizem. Muitas pessoas já tentaram me subornar, mas não vão conseguir, pois não aceito. Sou filha do rio Xingu. O que fizeram foi uma covardia, mas hoje, com meu conhecimento, não permito mais que nada aconteça. Luto, falo e defendo. Não esqueço facilmente tudo o que ocorreu, pois lutei muito e continuarei lutando.
Como a senhora vê a participação das mulheres indígenas na política? Temos a ministra Sônia Guajajara, a presidenta da Funai, Joenia Wapichana, e a deputada Célia Xakriabá.
Eu já lutei muito desde a minha adolescência e hoje cheguei a uma idade em que quero ensinar às mulheres jovens para que tenhamos uma força única para defender nossos direitos. As mulheres estão ocupando espaços cada dia mais e fico feliz por isso, pois quero que tenham conhecimento e voz. Hoje, há mulheres que são caciques, lideranças, que ocupam cargos e estão estudando e adquirindo conhecimento. Antigamente, conheciam apenas a minha história, mas hoje existe um grupo de mulheres que estão no mesmo caminho que o meu, estão lutando, buscando nossos direitos, falando e brigando. Antigamente, eu estava sozinha, mas hoje tenho a minha família junto comigo e essas mulheres guerreiras.
*Daniel Camargos é fellow da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center, em parceria com a Repórter Brasil