A Sherpa, uma organização com sede em Paris que utiliza o sistema judicial para cobrar de agentes econômicos mais responsabilidade em relação ao meio ambiente e aos direitos humanos, protocolou nesta quarta-feira, 8 de novembro, uma denúncia criminal contra quatro bancos franceses, acusando-os de lavagem de dinheiro por financiarem os frigoríficos JBS e a Marfrig, no Brasil.
A Sherpa pede que BNP Paribas, Crédit Agricole, BPCE e AXA sejam investigados pelo Ministério Público francês por terem comprado títulos (bonds) da JBS e da Marfrig. Na interpretação dos advogados da organização, os dividendos (lucros) dessas operações legalizaram capital ilegal ao serem pagos aos bancos investidores – uma vez que parte dos recursos financeiros desses frigoríficos tem origem em atividades ilícitas no Brasil, como o desmatamento ilegal e o trabalho escravo.
“Os bancos franceses não podem ignorar a responsabilidade da indústria pecuária brasileira no desmatamento ilegal, um problema enorme e sistêmico. Esses bancos teriam, portanto, financiado conscientemente atividades ilegais, crimes”, defende Jean-Philippe Foegle, Diretor de Litigância e Incidência da Sherpa.
Em fevereiro deste ano, o BNP Paribas foi denunciado à justiça francesa em razão de seu financiamento à Marfrig – fato que também relacionava o fluxo financeiro com as violações de direitos humanos e ambientais. Porém, esta é a primeira vez que a teoria da lavagem de dinheiro é utilizada para analisar essas relações, informa a organização. “Ao deterem títulos (bonds) emitidos por empresas que lucram com crimes ambientais, BNP Paribas, Crédit Agricole, BPCE e AXA estão contribuindo para que os recursos provenientes desses crimes sejam reintroduzidos dentro da legalidade, quando os títulos são amortizados com recursos provenientes de desmatamento ilegal”, informa o comunicado de imprensa da organização.
Segundo cálculos da Coalizão Florestas & Finanças – da qual a Repórter Brasil faz parte – entre 2013 e 2021, AXA, Crédit Agricole, BNP Paribas e BPCE realizaram investimentos no valor de quase 70 milhões de dólares nas duas empresas de pecuária. O lucro obtido com essas operações foi de cerca de 11 milhões de dólares. No entanto, dizem os advogados, inúmeras investigações revelaram violações ambientais e de direitos humanos no fornecimento de gado a essas empresas.
Em nota enviada à redação, a Marfrig refutou as alegações: “são infundadas e não refletem a realidade das operações da companhia ou de suas práticas”, assegurou a empresa. Já a JBS informou que “mantém relacionamento permanente com investidores e parceiros nacionais e estrangeiros, que têm dado recorrentes demonstrações de confiança na credibilidade e na robustez da Companhia e de suas políticas de compras, em prática dentro de nossa cadeia sistêmica de compliance socioambiental”.
Entre os bancos, o AXA assegurou ter “ambição de ter um dos mais altos padrões ESG de nosso setor” e o BNP Paribas se limitou a dizer: “Não temos comentários a fazer sobre esta reclamação, da qual não temos conhecimento”. A íntegra das manifestações pode ser lida aqui.
As demais empresas citadas na denúncia não haviam respondido nosso pedido com comentários até o fechamento deste texto. O espaço permanece aberto e a matéria será atualizada se houver qualquer manifestação das companhias.
Dados inéditos sobre irregularidades
Além dos dados financeiros, a denúncia oferecida à justiça francesa contém evidências de que o dinheiro que pagou aos bancos o lucro dessas operações pode ter origem ilícita, em atividades ligadas ao desmatamento e ao trabalho escravo.
Para demonstrar essa relação, os advogados anexaram à denúncia investigações desenvolvidas pela Repórter Brasil. Entre elas, está um caso em que a própria JBS admitiu aos jornalistas que havia comprado cerca de 9 mil cabeças de gado em propriedades ilegais em Rondônia. Também integram a denúncia as reportagens que demonstraram que tanto Marfrig como JBS podem ter comprado gado criado ilegalmente dentro da Terra Indígena Apyterewa, no Pará – a mais desmatada do Brasil e que agora está em processo de retomada pelos indígenas.
Segundo o comunicado de imprensa da Sherpa, também foi incluída uma análise inédita do Center for Climate Crime Analysis sobre os fornecedores de três unidades da JBS no Pará e duas plantas da Marfrig em Mato Grosso. Neste levantamento, o CCCA encontrou indícios de irregularidades, como desmatamento ou sobreposição a terras indígenas e florestas protegidas em mais de 50% dos fornecedores examinados da JBS e em aproximadamente 40% da amostra vinculada à Marfrig.
“Isso demonstra a necessidade de sanções mais fortes para impedir que bancos financiem empresas que lucram com desmatamento ilegal e crimes ambientais”, conclui Jean-Philippe Foegle, da Sherpa.
Na nota enviada à redação ainda nesta manhã, a JBS lamentou “que as ONGs em questão façam acusações a respeito da cadeia de fornecedores da JBS sem apresentar com transparência quais seriam os produtores e suas possíveis infrações, impedindo a empresa de fazer sua verificação e tomar as medidas cabíveis. Assim, as ONGs perdem a oportunidade de contribuir para o desafio setorial da sustentabilidade”.
Já a Marfrig, que só se manifestou após a publicação deste texto, listou em sua resposta cinco propriedades que estariam incluídas na análise de seus fornecedores e deu seus contrapontos às conclusões do CCCA. “Reforçamos que não há mais operações no Pará desde março de 2020. E que realizamos auditorias anuais de terceira parte em todas as unidades localizadas na Amazônia Legal, área objeto de tal relatório. Os resultados de tais auditorias são públicos, e a Marfrig obteve 100% de conformidade”, acrescentou a empresa. A íntegra das manifestações pode ser lida aqui.
Conexões reveladas
Em novembro do ano passado, a Repórter Brasil publicou o relatório ‘Conexões Infames’, no qual detalhou fluxos financeiros provenientes de bancos franceses em produtos financeiros lançados pelas grandes empresas do agronegócio que operam no Brasil. A França é pioneira em legislação sobre devida diligência ou dever de cuidado, como também vem sendo chamado este instrumento. Aprovada em 2017, a lei francesa determina que as empresas realizem avaliações sobre o risco que suas operações representam para o meio ambiente, entre outras questões.
Isso quer dizer que antes de comprar bonds de um frigorífico, por exemplo, os bancos franceses precisam examinar minuciosamente toda a cadeia produtiva associada àquele negócio para se certificarem de que seu dinheiro não está apoiando atividades que provoquem impactos negativos em populações ou na natureza.
Em seu Plano de Vigilância vigente à época do relatório, o BNP afirma que “não fornecerá produtos nem serviços financeiros a empresas sem estratégias para atingir o desmatamento zero em suas cadeias produtivas e de fornecimento até 2025, no máximo”. Porém, o banco mantém investimentos na Marfrig e na Minerva, cujas metas de desmatamento zero no país têm como horizonte de tempo o ano de 2030. A JBS, também apoiada pelo banco, estabelece meta de desmatamento zero para todos os biomas brasileiros até 2025, mas os planos de monitoramento da empresa não contemplam o segundo nível de seus fornecedores indiretos – ou seja, os que vendem aos fornecedores de seus fornecedores diretos – que respondem por 11% do desmatamento associado à cadeia de fornecimento.
Na ocasião, os frigoríficos ressaltaram seus compromissos com o combate ao desmatamento ilegal e detalharam seus esforços para que suas cadeias produtivas estejam livres de ilegalidade. A íntegra dos esclarecimentos pode ser lida aqui.