CRESCE A PRESSÃO sobre o governo Lula para anular o contrato que entregou 2.428 hectares de terras da União para a mineradora canadense Belo Sun extrair ouro em uma área reservada para um assentamento de reforma agrária no Pará.
Embora o projeto seja considerado estratégico pelo Ministério de Minas e Energia, há setores do governo federal que defendem a anulação do contrato de concessão de cessão de uso das terras, assinado pelo Incra ainda na gestão Bolsonaro.
A divergência dentro do governo federal ficou clara após a Ouvidoria Agrária Nacional, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, pedir ao Incra a anulação do contrato. Em parecer de julho de 2023 obtido pela Repórter Brasil, a Ouvidoria diz que o processo que culminou com a cessão da área para a Belo Sun foi marcado por “coerções, violências e desintrusões ilícitas”.
O documento da ouvidoria destaca ainda que não houve participação social no processo de concessão das terras. A presidência e a procuradoria do Incra ainda não se posicionaram sobre o parecer.
“Há pessoas ameaçadas ali, em uma situação de muita violência, e com uma base jurídica muito frágil. Entendemos que é um conflito agudo que a qualquer momento pode gerar um resultado muito trágico”, diz a ouvidora Cláudia Dadico, que assina o parecer. Ela é diretora do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Pelo contrato assinado novembro de 2021, o Incra cede os lotes do assentamento em troca de pagamento de parte da produção. Mas o acordo é questionado judicialmente pelas defensorias públicas da União (DPU) e do Estado do Pará (DPE-PA). Os órgãos alegam que uma manobra feita à época permitiu que o acordo escapasse ao crivo do Congresso.
Isso porque negociações de terras públicas com mais de 2.500 hectares precisam ser aprovadas pelo Legislativo federal. A suspeita é que o Incra tenha ajudado a driblar essa exigência ao conceder à mineradora uma área pouco menor, de 2.428 hectares
“É evidente a burla que eles fizeram para não passar por autorização do Congresso”, avalia o defensor público federal Marcos Wagner Teixeira, um dos responsáveis pela ação da anulação do contrato.
No início de fevereiro, o Ministério Público Federal (MPF) endossou o pedido de anulação do contrato, em manifestação enviada à Justiça em 30 de janeiro.
Procurada pela reportagem, a Belo Sun afirmou que “confia que o entendimento pela validade do contrato será mantido ao final do processo” judicial. Leia a resposta completa.
Em meio ao imbróglio, um grupo de manifestantes contrários à instalação da mina permanece no local, em uma ocupação iniciada em junho de 2022. Eles pedem que a área volte a ser destinada para a reforma agrária. Em outubro passado, a mineradora canadense pediu à Justiça do Pará a prisão de 40 manifestantes.
Suspeita de coação
A área em disputa fica dentro do Projeto de Assentamento (PA) Ressaca, criado em 1999 para abrigar 600 famílias de agricultores em uma área de pouco mais de 30 mil hectares entre os municípios de Altamira e Senador José Porfírio, no norte do Pará. O local é próximo à Volta Grande do Rio Xingu, região já afetada pela usina hidrelétrica de Belo Monte.
Em 2021, parte desse assentamento foi cedida pelo Incra à Belo Sun, que recebeu também parte da gleba federal Ituna, outro terreno do governo na região, para instalar a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil. Em troca, o Incra receberia parte dos lucros gerados com a produção de ouro.
Na ação judicial, a Defensoria argumenta que, antes de a Belo Sun receber as terras federais do Incra, a mineradora já teria iniciado um processo ilegal de aquisição dos lotes, obtendo cerca de 3.400 hectares de terras federais.
Em resposta à Repórter Brasil, a Belo Sun afirmou, em nota, que não pretende expandir sua área de atuação. “A empresa não obteve a concessão de 2.428 ha com o propósito de expandir a área do empreendimento e utilizar mais do que 2.500 ha, reafirmando que não ocupará nenhum hectare a mais do que o contido na área concedida no âmbito do contrato e aprovada no licenciamento ambiental, motivo pelo qual é absolutamente especulativa, imprópria e falaciosa tal alegação.”
Para justificar a entrega de lotes da reforma agrária para a mineradora, o Incra alegou em 2021 que a área estaria desocupada, pois os assentados teriam abandonado o local. Porém, uma visita técnica realizada pela Defensoria Pública da União desmentiu.
A DPU critica também a forma como o Incra tratou os assentados que supostamente tinham abandonado o local. Em 2018, o Incra notificou 124 famílias a se defenderem da acusação. Contudo, a notificação teria sido feita apenas em formato eletrônico, na edição digital do Diário Oficial da União.
Muitas famílias sequer possuem acesso à internet e, segundo os defensores, não souberam que teriam que responder a essas acusações, o que tornaria o procedimento ilegal. Depois da notificação, 94 famílias foram excluídas da lista de beneficiários do programa de reforma agrária.
Ainda assim, um relatório emitido pelo Incra em janeiro deste ano aponta que 329 famílias assentadas pelo programa de reforma agrária moram no PA Ressaca, além de 97 já terem recebido o título da terra.
Compras ilegais
Antes de propor a ação civil pública, a Defensoria Pública da União fez visitas técnicas aos assentados em 2021 e 2022. Os defensores mapearam ao menos 29 lotes que teriam sido vendidos ilegalmente à Belo Sun, totalizando 1.761 hectares. Eles também encontraram três lotes vendidos ilegalmente na gleba Ituna, em um total de 1.734 hectares.
Alguns assentados que venderam os terrenos disseram à época que assinaram procurações entregando poderes para a mineradora supostamente regularizar a transferência no Incra. Eles também assinaram contratos de comodato, o que permitiu que seguissem morando e produzindo nos imóveis.
Um dos assentados, Diego Maciel Nogueira, relatou à Defensoria que seus pais eram analfabetos quando venderam seu imóvel para a mineradora. A negociação foi feita com um homem que se apresentou como representante da mineradora canadense.
“A gente conhece [ele] como Toninho, mas eu não sei o nome verdadeiro. Aí ele veio falar que era para nós falar ao Incra que nós não precisava mais de nada, que estava tudo bem, sendo que as coisas não estavam tudo bem porque pagaram a gente, mas deviam ter realocado em outro canto”, disse Nogueira à Defensoria Pública em fevereiro de 2022. No mesmo depoimento, ele disse que o Incra havia visitado a região pela última vez em 2016.
O Ministério Público Federal aponta outro problema na cessão das terras públicas. A negociação deveria ter desvinculado a área do programa de reforma agrária, uma etapa obrigatória por lei, mas que não ocorreu, segundo o procurador da república Rafael Sousa.
“Há evidente ausência de desafetação de bem público e notável ausência de autorização legislativa para alienação de bens imóveis da administração, sendo qualquer destes fundamentos suficientes para o reconhecimento de que o Contrato de Concessão de Uso nº 1.224/2021 é nulo”, diz o procurador, em parecer anexado ao processo que tenta anular a concessão.
Projeto estratégico
O acordo do Incra com a Belo Sun só foi possível após a publicação da Instrução Normativa 112/2021, norma aprovada pelo governo Bolsonaro que liberou a cessão de terras de reforma agrária para exploração de mineradoras.
Em resposta à Repórter Brasil, o Incra informou que avalia um “aprimoramento” da norma e que a Câmara de Conciliação Agrária mantém interlocução com movimentos sociais da região.
A extração de ouro na Volta Grande do Xingu é tratada como projeto estratégico pelo Ministério de Minas e Energia, o que lhe garante, por exemplo, prioridade para conseguir licenciamento ambiental.
“Parece que o governo está meio parado em reforma agrária, para não confrontar a base do Centrão com interesses ambientais e rurais. Parece excesso de precaução. Politicamente, isso pode ser apropriado, mas o público que precisa das ações de democratização de acesso à terra, de regularização fundiária, está sofrendo”, afirma Reginaldo Aguiar, técnico do Incra e diretor da Associação Nacional dos Servidores Públicos Federais Agrários (Cnasi-AN).
Líder do grupo de manifestantes acampados na área, o agricultor Amilson Cardozo tenta agendar uma reunião em março com a presidência do Incra para debater a anulação do contrato.
O Incra e o Ministério do Desenvolvimento Agrário afirmaram à reportagem que monitoram a situação da Belo Sun devido às denúncias de coação, violência e intimidação. A ouvidora Cláudia Dadico planeja visitar a área em abril.
*Nota da redação: a reportagem foi atualizada em dia 26 de fevereiro de 2024 para incluir o posicionamento da mineradora canadense Belo Sun.