Amputações e mortes: máquina para colher café gera onda de acidentes no ES

Adotadas para diminuir a dependência de mão de obra na cafeicultura, recolhedoras provocaram ao menos nove amputações e duas mortes nos últimos dois anos. Autoridades pedem ajustes de segurança nos equipamentos
Por Poliana Dallabrida | Fotos Lela Beltrão | Edição Bruna Borges
 04/03/2024

O USO DE RECOLHEDORAS nas plantações de café conilon, tipo de grão usado para fabricar café instantâneo, foi responsável por pelo menos nove amputações de pernas, braços e dedos, além de duas mortes no Espírito Santo somente nos últimos dois anos. Os acidentes chamaram a atenção de profissionais da saúde na região Norte do estado.

A máquina foi originalmente criada para a colheita do feijão, e depois adaptada pelos fabricantes para o uso nos cafezais. Até 2022, os equipamentos eram vendidos sem itens de segurança como botão de travamento. Seu trabalho é recolher galhos carregados com o grão depositados em lonas estendidas entre os pés de café. 

Para autoridades que monitoram os acidentes, o uso dessas máquinas na cafeicultura traz riscos adicionais, pois os galhos e grãos de café são mais pesados do que o material recolhido pelas máquinas na colheita do feijão. “Muitas vezes, o trabalhador tem que puxar a lona para enrolar no cilindro [da colheitadeira], e aí está um dos problemas”, explica a procuradora Fernanda Barreto Naves, do Ministério Público do Trabalho (MPT) em São Mateus (ES).

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Um dos acidentes aconteceu com a agricultora Rogéria Silveira, de 42 anos, que teve parte do braço amputado na sua fazenda em Jaguaré (ES). Ela estava ajustando a lona no cilindro quando a máquina agarrou um dos seus dedos. “No que pegou, eu me apavorei e soltei o comando [responsável por controlar o movimento do cilindro]. Quando eu soltei, o cilindro virou e arrancou o braço de uma vez”, conta Rogéria. Veja mais casos aqui.

O uso da máquina vem diminuindo a dependência de mão de obra na colheita do conilon. Um produtor visitado pela Repórter Brasil em Vila Valério (ES) revelou ter diminuído os custos com funcionários durante a safra após a aquisição de duas recolhedoras. No ano passado, o número de trabalhadores temporários em sua fazenda havia caído de 120 para 40 pessoas.

Fiscais pedem adaptações nas máquinas

Com a sequência de acidentes, representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT), produtores e fabricantes de equipamentos firmaram um acordo voluntário, em setembro de 2022, para desenvolver e instalar “kits de segurança” no maquinário. Mas inspeções em fazendas realizadas na safra seguinte mostraram baixa adesão aos ajustes requeridos.

Em 2023, integrantes do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), órgão vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS), visitaram 33 propriedades capixabas com irregularidades na colheitadeira de café identificadas no ano anterior. Desse total, apenas 25% tinham instalado os componentes de proteção completos. “Praticamente ninguém fez as adaptações necessárias”, aponta Fernando Roberto da Silva, engenheiro agrônomo do Cerest.

Inspeção das recolhedoras pelos integrantes do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), órgão vinculado ao SUS

Na safra do ano passado, fiscais do Ministério do Trabalho interditaram oito recolhedoras de café em seis fazendas, segundo informações obtidas pela Repórter Brasil via Lei de Acesso à Informação (LAI). Todas eram da fabricante Miac. A Indústrias Colombo, grupo dono da Miac, não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem.

Em outubro de 2023, o MPT em São Mateus (ES) expediu uma recomendação para 11 sindicatos patronais rurais do norte capixaba e para a Federação da Agricultura do Estado do Espírito Santo (Faes) solicitando que orientassem os cafeicultores sobre a necessidade de instalação dos “kits de segurança”. “Até agora só obtivemos três respostas”, explica a procuradora Polyana de Fátima França, também da procuradoria do MPT em São Mateus.

Os kits requeridos incluem a instalação de um botão de pânico para o travamento imediato do equipamento em caso de emergência, entre outras melhorias. Além disso, foi demandado dos fabricantes ajustes no projeto das recolhedoras para que elas já saiam de fábrica com as novas adaptações.

“Solicitamos que esse projeto de adequação das máquinas novas também pudesse ser usado nas máquinas usadas”, explica Ricardo Rosa, auditor fiscal do Ministério do Trabalho. “O fabricante precisa oferecer essa possibilidade, afinal de contas foi ele que fabricou a máquina”.

O custo dessas adaptações é de cerca de R$ 10 mil. Já o maquinário novo custa entre R$ 245 e R$ 365 mil, a depender da potência da máquina. 

Das fazendas para a sua casa

A região do norte do Espírito Santo vem se consolidando como um polo de processamento de café conilon para a produção de café instantâneo e em cápsula. Em dezembro, o grupo singapurense Olam inaugurou uma unidade de processamento de café solúvel em Linhares (ES), após investimentos de cerca de R$ 1 bilhão.  

O grão produzido por Rogéria é vendido para a Cooperativa Agrária dos Cafeicultores de São Gabriel (Cooabriel), a maior cooperativa de café conilon do país, com 7,2 mil produtores cooperados. A Cooabriel é também o destino do café produzido no Sítio Santa Luzia, em Nova Venécia (ES), onde um jovem de 24 anos morreu após ser puxado para dentro da recolhedora de café. A Cooabriel não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem. 

O Espírito Santo foi responsável por 12 das 18 milhões de sacas colhidas no Brasil em 2022, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O estado responde por quase 20% da produção mundial desse tipo de grão.

Atualização: Este texto foi atualizado em 04/03/2024. Diferentemente do que foi publicado antes, o nome do auditor fiscal do Ministério do Trabalho é Ricardo Rosa.

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