Produtores da maior exportadora de café do Brasil entram na ‘lista suja’ do trabalho escravo

Dois cafeicultores membros da Cooxupé foram flagrados submetendo 11 trabalhadores a condições análogas à escravidão. Eles tiveram seus nomes incluídos no cadastro federal que divulga a identidade dos empregadores responsabilizados pela prática do crime
Por Poliana Dallabrida | Edição Bruna Borges
 10/04/2024

DOIS PRODUTORES DE CAFÉ incluídos na mais recente atualização da  “lista suja” do trabalho escravo, divulgada pelo governo federal na última sexta-feira (5), são fornecedores da Cooxupé (Cooperativa Regional dos Cafeicultores de Guaxupé), a maior cooperativa de café do mundo. A Cooxupé é responsável por 10% das exportações brasileiras do grão. 

Em julho do ano passado, auditores fiscais do Trabalho flagraram 11 trabalhadores submetidos à condições análogas à escravidão no Sítio Douradinha, em São Pedro da União (MG). A propriedade é dividida em duas áreas, uma administrada Jurandir Marques Bueno, cooperado da Cooxupé desde 1989, e outra por seu sobrinho, Rafael de Lima Bueno, cooperado desde 2006. 

O café produzido por Lima Bueno na última safra, depois de entregue para a Cooxupé, estava habilitado a alcançar mercados globais. Isso porque o produtor possuía uma das principais certificações por “boas práticas” do setor: a 4C (sigla para Código Comum para a Comunidade Cafeeira).

Procurada, a 4C afirmou que “Rafael de Lima Bueno foi certificado pelo 4C no passado, mas sua certificação não está mais ativa”, sem esclarecer quando o cafeicultor perdeu o selo. Leia a resposta completa aqui.

Os trabalhadores resgatados estavam alojados em um espaço de dez dormitórios com paredes mofadas. No pico da safra, 22 pessoas chegaram a ficar no local. Como não havia cozinha, os resgatados comiam nos dormitórios, sentados em suas camas. Lá também eram armazenados diversos itens com potencial de causar incêndios, incluindo o combustível utilizado nas derriçadeiras – máquinas portáteis usadas para colher café. “Assim, gasolina, gás de cozinha e fogareiros dividiam espaço naqueles cômodos com colchões, roupas espalhadas e vários outros pertences inflamáveis dos trabalhadores”, diz o relatório de fiscalização.

Alojamento precário em que foram resgatados trabalhadores de lavoura de café (Foto: Gerência Regional do Trabalho de Poços de Caldas)
Trabalhadores dormiam em cômodo com alto risco de incêndio. Camas dividiam espaço com fogão e outros materiais inflamáveis. (Foto: Gerência Regional do Trabalho de Poços de Caldas)

A Cooxupé não comentou o caso específico dos dois cooperados que entraram na “lista suja” do trabalho escravo, afirmando apenas que não comercializa café de propriedades que não sigam a legislação trabalhista e que, “diante de eventuais inserções de nomes de produtores na lista de inconformidades”, as atividades comerciais são suspensas pela cooperativa. Leia a nota completa aqui.

O produtor Rafael de Lima Bueno não respondeu aos questionamentos enviados pela Repórter Brasil até o fechamento desta matéria. Já o cafeicultor Jurandir Bueno não foi localizado. O espaço segue aberto para manifestações.

Trabalhadores são resgatados em condições análogas à escravidão em fazenda em Minas Gerais (Gerência Regional do Trabalho de Poços de Caldas)
Trabalhadores são resgatados em condições análogas à escravidão em fazenda em Minas Gerais (Gerência Regional do Trabalho de Poços de Caldas)

Descontos ilegais nos salários

Dos 11 trabalhadores resgatados durante a colheita de café de Rafael Bueno, onde a fiscalização teve início, os fiscais descobriram que 7 deles atuaram também na colheita de Jurandir Bueno e, por isso, os dois produtores foram autuados.  O grupo foi contratado por um intermediário de mão-de-obra, figura conhecida no meio rural como “gato”, que trouxe os trabalhadores de Varzelândia, na região norte de Minas Gerais. 

As irregularidades já começaram no trajeto até a fazenda: os trabalhadores não tinham carteira de trabalho registrada e precisavam pagar do próprio bolso o valor da passagem de ônibus, que percorria um trajeto de 900 km até a propriedade.

Jurandir Bueno também cobrava pelo alojamento dos funcionários, que, segundo a lei, deveria ser fornecido de forma gratuita pelo empregador. De acordo com o relatório de fiscalização, eram cobrados R$ 250 por cômodo e o valor era descontado do pagamento dos trabalhadores. 

:: Leia mais: Fazenda fornecedora da Starbucks ignora lei e não fornece máquina para colheita de café, dizem trabalhadores

Os fiscais descobriram ainda que existiram outros descontos ilegais nos salários, incluindo a gasolina usada nas derriçadeiras.

Nos cafezais, não havia banheiro químico, e os trabalhadores precisavam usar o mato para suas necessidades fisiológicas. Os dois produtores também não forneciam água nas frentes de trabalho e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) obrigatórios, como luvas, óculos e botas.

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Gigante do setor

A Cooxupé ficou na 26ª posição na lista da Forbes das 100 maiores empresas do agronegócio brasileiro de 2023. É a única cooperativa que atua exclusivamente com café a integrar o seleto grupo da revista. Na última safra, a cooperativa faturou R$ 6,4 bilhões e as suas exportações de café chegaram a clientes em 50 países.

“Todos os anos nós denunciamos casos de trabalho escravo em fazendas de café de cooperados da Cooxupé”, afirma Jorge Ferreira dos Santos Filho, coordenador da Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (Adere/MG), organização que monitora as condições de trabalho no campo. “A Cooxupé, por ser a maior cooperativa de café do mundo, deveria dar exemplo. Ela tem todas as condições financeiras, políticas e técnicas de reunir os produtores durante a entressafra e falar da pauta de direitos humanos para os seus cooperados, da não utilização de mão-de-obra informal e precária. Mas ela quer fazer isso? Ela quer liderar esse processo?”, questiona. 

Em resposta à Repórter Brasil, a Cooxupé argumentou que “trabalha incessantemente junto aos seus cooperados as boas práticas trabalhistas e agrícolas na cafeicultura” e que realiza eventos, palestras, visitas técnicas e reuniões com entidades e profissionais especializados.

Primeira denúncia foi recebida em 2021

Os auditores fiscais apontam que a primeira denúncia sobre as condições de trabalho no Sítio Douradinha foi recebida em 2021, mas que a falta de servidores para averiguar in loco a situação fez com que a propriedade só fosse fiscalizada na última safra.

A Repórter Brasil mostrou em fevereiro que o número atual de auditores fiscais – cerca de 1.900 – é o menor em três décadas. À época, mais de 300 servidores entregaram cargos de chefia em uma reivindicação para o cumprimento de um acordo feito em 2016 pela então presidente Dilma Rousseff (PT) sobre bônus de eficiência e investimentos em infraestrutura.

“Essa demora na fiscalização não é surpresa pra ninguém”, avalia o coordenador da Adere/MG, que afirma que a organização fez várias denúncias não atendidas nos últimos anos. “O trabalhador, percebendo que a denúncia dele não foi atendida quando ele precisava, fica desiludido e desiste de pedir ajuda em outro lugar, quando estiver sendo novamente submetido a condições análogas à escravidão”, conclui.

A Repórter Brasil entrou em contato com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para questionar os planos da pasta para recomposição do número de auditores, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. A última atualização do cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão, popularmente conhecido como “lista suja” do trabalho escravo, incluiu 27 cafeicultores. Entre os casos em geral, foram 248 novos patrões, número recorde, chegando a 654 responsabilizados. Trabalho doméstico e pecuária lideram os recém-chegados.

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