UMA CARGA DE 15 TONELADAS de carvão ativado está retida no Porto de Santos (SP) desde setembro do ano passado, quando fiscais da Receita Federal identificaram o equivalente a 5 quilos de ouro em pó, não declarados, misturados ao material. Apesar de responder por apenas 0,03% do volume total da carga, a quantidade de ouro poderia render R$ 1,9 milhão, quase três vezes mais que o valor do carvão declarado na nota fiscal do produto, acessada pela Repórter Brasil.
O destino da carga apreendida era a companhia italiana Safimet, especializada no refino de ouro e outros metais preciosos. A empresa é fornecedora das principais empresas de tecnologia do mundo, como Amazon, Microsoft, Google e Tesla. Componentes de celulares, computadores e carros usam filamentos de ouro em sua composição.
Essa foi a primeira apreensão de ouro misturada a carvão ativado ocorrida no Porto de Santos, segundo a Receita Federal. O flagrante foi realizado dois meses após a entrada em vigor de uma Instrução Normativa do órgão que determinou a emissão de nota fiscal eletrônica para o comércio de ouro. A medida é vista como um dos passos para combater o garimpo ilegal do produto. Antes desse período, bastava um formulário preenchido a mão, com a autodeclaração da origem do ouro, para legalizar a comercialização do metal.
A empresa autuada por tentar exportar o ouro não declarado é a Omex Comércio e Exportação de Metais Preciosos S/A, com sede em São Paulo. Em resposta à intimação dos auditores da Receita cinco dias após a retenção da carga, a Omex admitiu que a Safimet tinha a expectativa de extrair do carvão ativado “o resíduo de metais preciosos porventura existentes”.
“Certamente eles [Safimet] têm explicações a dar sobre a sua ligação a uma empresa disposta a ocultar a natureza das suas exportações”, comentou Christian Poirier, diretor de programas da organização Amazon Watch, que investiga os impactos do garimpo ilegal de ouro. Ele se refere ao motivo apresentado pela Receita Federal para a apreensão da carga.
A Omex afirmou à Repórter Brasil que aguarda a resolução do processo para concluir a comercialização da carga. Questionada sobre a origem do ouro apreendido, a empresa informou que atua “por conta e ordem de seus clientes”, sendo seu papel somente realizar conferências de compliance e checagem documental necessárias à exportação. A refinaria italiana, segundo a Omex, importa carvão ativado de outros países da América Latina, como Peru e Chile. A carga apreendida no Porto de Santos seria a primeira exportação entre as duas empresas.
Já a Safimet afirmou, em resposta à reportagem, ter entrado em contato com a Omex em 2023 “para uma única ‘importação temporária’ (e não uma compra direta) de um lote de carbono contendo ouro”. A refinadora informou que adquire resíduos de clientes para refinar metais preciosos neles contidos. A empresa italiana disse ainda desconhecer as razões que levaram à apreensão da carga, mas ressaltou que não está mais interessada no negócio mesmo que ele seja liberado pelas autoridades. Leia as respostas completas das empresas aqui.
As big techs também foram questionadas pela reportagem sobre seus mecanismos de controle para garantir que empresas fornecedoras não estejam relacionadas a atividades ilegais. A Microsoft afirmou requerer que seus fornecedores sigam o Código de Conduta da empresa. A mesma resposta foi dada pelo Google, que acrescentou que seus fornecedores devem buscar minérios “apenas de empresas certificadas e livres de conflito”. A Amazon não se pronunciou sobre o caso. A Tesla não respondeu às tentativas de contato da Repórter Brasil.
Exportadora não costuma atuar no ramo
A carga chamou a atenção dos agentes da alfândega pelo fato de o carvão ativado estar sendo comercializado por uma empresa que não costuma atuar no ramo. A Omex anuncia ser especializada na exploração de minerais preciosos.
Em resposta à Receita Federal, a Omex afirmou que comprou o carvão ativado de uma mineradora, que havia utilizado o produto no processo de extração de metais preciosos. A carga seria, portanto, um subproduto da mineração. “No Brasil, esse produto não tem maior relevância econômica, no exterior, entretanto, refinadoras que possuem equipamento especializado têm interesse econômico nesse pó, que pode conter resíduos dos metais preciosos”, disse a Omex às autoridades.
A Declaração de Exportação preenchida pela Omex não registrava a possibilidade de outros elementos minerais surgirem após o beneficiamento do carvão ativado – anotação necessária, segundo a Receita, para o despacho de cargas desse tipo. A pedido da Receita Federal, um perito constatou a presença de 355,5 gramas de ouro por tonelada de carvão ativado. As projeções técnicas estimaram a presença total de 5 quilos de ouro nas 15 toneladas. “[Ficou] evidenciada a fuga de Au [símbolo do ouro] para o estrangeiro pelo exportador, bem como impossibilitando a sua rastreabilidade”, diz o auto de infração aplicado à Omex.
Entre 2018 e 2022, a Omex exportou R$ 5,4 bilhões em cargas – a maioria delas eram barras de ouro destinadas a clientes na Europa, segundo documentos de investigações da Receita Federal acessados pela Repórter Brasil.
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‘Esquentamento’ de ouro
Essa não foi a primeira vez que a Omex teve uma carga apreendida. Em junho de 2023, duas remessas de ouro destinadas aos Emirados Árabes foram barradas na Alfândega do Aeroporto de Guarulhos.
Segundo investigações da Receita Federal, a Omex não teria comprovado a legalidade do ouro e teria usado documentos falsos para simular a origem do metal. Segundo a investigação, a empresa seria operadora de um esquema de emissão de notas fiscais falsas de compra de jóias por meio de empresas de fachada, abertas em nome de laranjas. O esquema incluiria compras de pessoas físicas beneficiárias do Auxílio Emergencial e até mesmo já falecidas na data de emissão da nota fiscal.
Para o órgão, o objetivo do esquema era simular que o produto vendido era resultado da reciclagem de jóias, e não ouro proveniente de garimpo ou de extração mineral, o que exigiria documentos como Permissão de Lavra Garimpeira ou licença ambiental.
Um dos administradores e acionistas da Omex é Roselito Soares, ex-prefeito de Itaituba (PA), maior polo de garimpo do país.
Em resposta à Repórter Brasil, a Omex afirmou que “todas as suas transações comerciais são realizadas de forma totalmente legal” e que o caso mencionado encontra-se judicializado e que questões relativas a ele serão tratadas no decorrer do processo. Leia as respostas completas aqui.
Ouro italiano
Em 2022, a Safimet declarou para a organização não-governamental holandesa Profundo que não compra ouro com origem no Brasil. A refinadora não esclareceu, no entanto, desde quando deixou de adquirir o metal de fornecedores brasileiros.
Dados de notas fiscais de 2018 acessados pela Repórter Brasil mostram um histórico de compra do ouro pela refinadora italiana com origem no Pará. Em maio daquele ano, 24 kg em barras de ouro foram compradas pela subsidiária da empresa no país – a Safimet do Brasil – da Cooperativa dos Garimpeiros Mineradores e Produtores de Ouro do Tajapós (COOPOROU). Pelo metal, a Safimet do Brasil pagou R$ 2,8 milhões. A relação comercial entre a empresa e a cooperativa veio à tona após parte dessa carga de ouro ter sido furtada da casa do representante da Safimet em Itaituba (PA). As notas fiscais são mencionadas no processo judicial sobre o caso.
A sede da Safimet está localizada na cidade italiana de Arezzo, próxima a Florença. A menos de 6 km das instalações da empresa está localizada a Chimet, refinaria investigada pela Polícia Federal por supostamente adquirir ouro extraído ilegalmente da Terra Indígena Kayapó, no Sul do Pará, em outro caso revelado pela Repórter Brasil.
A Itália foi o 9º maior comprador de ouro exportado pelo Brasil em 2023, de acordo com dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços.
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