EM UM ANO, 90 retroescavadeiras foram apreendidas em terras indígenas e unidades de conservação na Amazônia. O maquinário de construção civil encontrado em áreas de garimpo é estimado em R$41,6 milhões.
A empresa sul-coreana Hyundai Construction Equipment foi a campeã do ranking, com pelo menos 26 retroescavadeiras detidas entre abril de 2023 e 2024. A estadunidense Caterpillar ficou em segundo lugar, com 13 máquinas detidas no período.
O uso de maquinário pesado no garimpo deu escala para a atividade ilegal na Amazônia, contribuindo para o avanço da destruição. Uma escavadeira realiza em 24 horas o mesmo trabalho que três homens levariam cerca de 40 dias para executar.
O levantamento foi feito pela Repórter Brasil com base nos dados de apreensões do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Nem sempre a marca dos equipamentos é anotada nos termos de apreensão. Duas das seis máquinas apreendidas na terra indígena Kayapó em junho de 2023, por exemplo, não têm identificação.
Apenas em 2022, cerca de 35 mil hectares de garimpo foram abertos, uma área do tamanho de Belo Horizonte, segundo o levantamento mais recente do MapBiomas. A área garimpada cresceu 190% em unidades de conservação e terras indígenas, em comparação ao cenário de 2018.
“As máquinas da Hyundai não servem só para os fazendeiros e para a construção civil, servem para destruir a floresta”, alerta Doto Takak Ire, presidente do Instituto Kabu e membro da Aliança dos Povos Contra o Garimpo – uma articulação dos indígenas Kayapó, Munduruku e Yanomami para combater a atividade ilegal.
Em abril do ano passado, Takak Ire foi até a Coreia do Sul cobrar a Hyundai após um relatório do Greenpeace flagrar 75 máquinas da multinacional nas terras indígenas Kayapó, Munduruku e Yanomami. “Mudou tudo com a chegada das máquinas”, explica a liderança indígena. “A PC [pá carregadeira] cava fundo na terra, come a beira dos igarapés e alarga o rio. É uma destruição enorme”.
Um ano depois da denúncia do Greenpeace, no entanto, máquinas da Hyundai continuam a atuar na destruição da floresta.
Além da Hyundai e Caterpillar, outras multinacionais foram flagradas abastecendo o garimpo ilegal com maquinário pesado. A CNH, dona da New Holland e da Case, ficou em terceiro lugar com oito apreensões, assim como a XCMG (China). As também chinesas Sany e LiuGong empataram na quinta posição com seis máquinas cada.
“O comércio dessas máquinas é livre, não tem nenhum tipo de restrição. Não tem controle nenhum e isso é incompatível com a importância que exercem nas atividades ilegais na Amazônia”, alerta Felipe Finger, coordenador do Grupo Especial de Fiscalização do Ibama.
Procurada pela reportagem, a Hyundai afirmou que vem colaborando com as autoridades públicas competentes e fornecendo informações e documentos que lhe são solicitados para auxiliar as investigações e identificar os supostos garimpeiros ilegais que estejam utilizando suas máquinas e equipamentos na região amazônica. Também disse que atualmente “há rigoroso processo de avaliação de idoneidade de clientes e imediato bloqueio de clientes e consumidores suspeitos de envolvimento em atividades de garimpo ilegal”. Segundo a companhia, o controle de vendas “contempla exigências de declaração de todos os clientes e consumidores de que as máquinas e equipamentos não serão utilizadas para fins de garimpo ilegal”.
Outras 14 fabricantes foram identificadas no levantamento. A reportagem procurou todas as companhias, mas apenas Volvo, Komatsu, Link Belt Excavators, John Deere e JBC responderam até a publicação desta reportagem.
As empresas afirmaram que a responsabilidade das atividades desempenhadas com as máquinas é do cliente após adquirir o equipamento. As que têm tecnologias de controle de localização, como Volvo, Link Belt e John Deere, disseram ainda que apenas poderiam acessar a informação com prévia autorização do cliente proprietário da escavadeira, em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Já a Komatsu afirmou ter sistemas que detectam quando o maquinário entra em áreas protegidas, mas que esse monitoramento “se torna mais complexo” quando os operadores “intencionalmente retiram diversos rastreadores e soluções eletrônicas dos mesmos”.
A íntegra das respostas das fabricantes está disponível neste link. O espaço segue aberto para manifestações das demais empresas.
Fiscalização do Ibama
As operações do Ibama chegaram a destruir escavadeiras novas – uma delas da marca Link Belt com apenas 44 horas de uso e avaliada em R$3,5 milhões. “Isso revela um investimento impressionante”, afirma Finger.
Os fiscais também encontraram uma máquina nova da Hyundai em uma situação inusitada: enterrada em um buraco e coberta com folhas de palmeira. Pintar as escavadeiras de cores neutras para esconder o amarelo típico desse maquinário ou mesmo trocar o turno de trabalho do dia para a noite são outras estratégias utilizadas para driblar a fiscalização.
Nambikwara sob pressão
A terra indígena com mais máquinas apreendidas foi a Sararé, ocupada pelo povo Nambikwara, que fica na fronteira entre Mato Grosso e Rondônia. No último ano, 29 escavadeiras foram apreendidas – 11 são da Hyundai.
O garimpo, que já era observado no sul do Pará, está migrando para o território. O aumento das ações de fiscalização nas imediações de Itaituba (PA) e a “fofoca do ouro” na terra indígena mato-grossense provocou um “uma saída em massa de garimpeiros e maquinário para a Sararé”, explica Finger, do Ibama.
Além disso, a facilidade de acesso por via terrestre na terra indígena Sararé pode explicar a explosão do garimpo na região. Levar escavadeiras para dentro das terras indígenas Munduruku e Yanomami, por exemplo, demanda uma complexa logística de transporte pelo rio e via aérea. “Os criminosos têm uma facilidade grande de organizar e prover a logística das atividades ilegais na Sararé”, alerta o fiscal.
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Descontrole na venda
Uma escavadeira nova custa entre R$ 800 mil e R$ 1,5 milhão, dependendo da marca e modelo, e uma usada não sai menos do que R$200 mil. “Não é igual ao pão que você compra todo dia, quem é que tem capital para comprar isso? A maioria de quem trabalha com garimpo hoje na Amazônia são grandes redes profissionalizadas e muito bem capitalizadas”, pondera Jorge Eduardo Dantas, coordenador da Frente de Povos Indígenas do Greenpeace.
A venda do maquinário é um dos pontos cegos no enfrentamento do garimpo ilegal, avalia o especialista. “Não existe controle. As máquinas continuam sendo vendidas e o pessoal está usando esses equipamentos de maneira criminosa”.
Em seu relatório, o Greenpeace destaca que existem tecnologias de monitoramento e bloqueio remoto que poderiam evitar o uso do maquinário em atividades criminosas.
Um exemplo é o “Código de Consciência”, programa que, inserido no computador de bordo de uma máquina, emite um alerta ou mesmo desliga o motor do veículo quando ele se aproxima de uma área protegida.
“Partimos de um insight muito simples: se nós não podemos impedir os humanos de destruírem as florestas, podemos impedir as máquinas que o fazem”, explicou Hugo Veiga, diretor criativo global da AKQA, empresa que desenvolveu o software.
A adesão das empresas, no entanto, é tímida. “Falta às empresas um maior compromisso com soluções a curto prazo. Se a empresa quiser realmente ter um compromisso de que sua frota não vai causar danos numa área protegida, poderia implementar o código hoje”.
Entorno de Itaituba em alerta
No sul do Pará, num raio de 380 quilômetros de Itaituba, foram apreendidas 34 máquinas em unidades de conservação ao largo do rio Tapajós: na Estação Ecológica Alto Maués, nas Florestas Nacionais do Jurupari, Crepori e Amaná e na Área de Proteção Ambiental (APA) Tapajós. As duas últimas foram as unidades de conservação com as maiores áreas de garimpo registradas em 2022, segundo o MapBiomas.
“O rio Creporizinho está morto”, lamenta Finger, do Ibama, se referindo ao rio que corre ao lado da APA Tapajós. Além do impacto sobre os recursos hídricos, o garimpo contribui para o avanço do desmatamento, por meio da abertura de pistas de pouso e ramais para acessar as áreas da atividade ilegal.
Essas unidades de conservação na bacia do Tapajós são vizinhas aos territórios do povo Munduruku. A atividade explodiu na região a partir de 2017, assim como os relatos de contaminação por mercúrio, substância usada para separar o ouro das impurezas.
A Repórter Brasil esteve nas aldeias no Alto Tapajós no ano passado e revelou os impactos do garimpo: crianças com problemas com malformações e atrasos no desenvolvimento. Em abril, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal para denunciar a contaminação por mercúrio entre os Munduruku.
“A contaminação realmente está pegando todo mundo. Muita gente já está perdendo crianças ou elas nascem deficientes por conta do mercúrio. Estamos preocupados com as futuras gerações”, alerta Doto Takak Ire, do Instituto Kabu.