Do golpe para as urnas: investigados pelo 8 de Janeiro são candidatos no Pará

Pecuaristas e garimpeiros do sul do Pará tentam carreira na política, após participarem dos atos antidemocráticos que culminaram com a tentativa de golpe de estado em janeiro de 2023
Por Daniel Camargos | Edição Diego Junqueira
 26/08/2024

“Conheço homens de caráter e de coragem do agro. Estamos juntos desde 31/10/22 nas estradas e no quartel de Marabá. Jamais desistirei da nossa pátria”. Estas anotações, dirigidas ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foram encontradas no celular do empresário de Xinguara (PA) George Washington de Oliveira Sousa, condenado por terrorismo pela tentativa de explodir um caminhão de combustível no aeroporto de Brasília em dezembro de 2022.

A prisão de Sousa, que confessou ter preparado o artefato explosivo, trouxe à tona uma teia de pecuaristas e garimpeiros do sul do Pará investigados por terem financiado e participado de atos antidemocráticos contra a eleição de Lula. As manifestações defendiam a intervenção do Exército para impedir a posse do petista como presidente.

Desde a ascensão de Bolsonaro, em 2018, alguns desses empresários paraenses se alinharam a lideranças bolsonaristas e da extrema direita para defender seus interesses. Hoje, eles buscam se firmar na política, disputando cargos nas eleições municipais deste ano.

Sousa foi preso no mesmo dia do atentado frustrado, véspera de Natal. Carregava um arsenal de guerra. “Após o segundo turno das eleições, eu participei de protestos no Pará e vim a Brasília com minha caminhonete, duas escopetas, dois revólveres, três pistolas, um fuzil, mais de mil munições e cinco bananas de dinamite”, disse na delegacia. 

“A minha ida a Brasília tinha como propósito participar dos protestos que ocorriam em frente ao QG (quartel-general) do Exército e aguardar o acionamento das Forças Armadas para pegar em armas e derrubar o comunismo”, continuou.

George Washington foi preso com um arsenal de guerra logo após a frustrada tentativa de explodir uma bomba em Brasília (Foto: Reprodução/PCDF)
George Washington foi preso com um arsenal de guerra logo após a frustrada tentativa de explodir uma bomba em Brasília (Foto: Reprodução/PCDF)

No depoimento, Sousa, que administrava quatro postos de combustível em Xinguara, citou os nomes de dois empresários da cidade como contatos pessoais. Um deles era Ricardo Pereira da Cunha, o Ricardo da USA Brasil. Ele é sócio de uma empresa de mineração e dono de uma loja em Xinguara usada para arrecadar verbas para os atos antidemocráticos, como revelou a Repórter Brasil e confirmou, posteriormente, uma investigação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de Janeiro, do Congresso Nacional.

Segundo relatório de inteligência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) obtido pela comissão, a movimentação bancária da USA Brasil saltou de cerca de R$ 10 mil mensais para mais de R$ 300 mil em novembro de 2022, mês seguinte às eleições.

De acordo com o relatório final da CPMI, as informações apontam para “o envolvimento de pessoas ligadas ao garimpo ilegal, empresários, fazendeiros do agronegócio e mineração como possíveis envolvidos na execução e fomento de atos antidemocráticos”.

“Nunca participei de golpe, muito menos atentado a bomba”, diz Cunha à Repórter Brasil. O dinheiro arrecadado era, segundo ele mesmo explica, para comprar comida para os conterrâneos acampados em frente ao QG do Exército em Brasília.

Candidato a vereador de Xinguara pelo PL, partido de Bolsonaro, Cunha disse que o autor da tentativa de atentado era um “amigo que frequentava o acampamento”, almoçava e jantava no local. “Minha campanha independe da minha participação no acampamento. Sou convicto no que acredito e meu tripé é e continua sendo Deus, pátria e família”, afirma.

Ricardo Pereira da Cunha e Enric Juvenal da Costa Lauriano são os representantes do PL em Xinguara (Foto: Reprodução/Redes sociais)
Ricardo Pereira da Cunha e Enric Juvenal da Costa Lauriano são os representantes do PL em Xinguara (Foto: Reprodução/Redes sociais)

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Pecuária e garimpo

Cunha é aliado de uma família tradicional do sul do Pará na criação de gado de corte, os Lauriano. Onício, o patriarca, possui fazendas em cidades da região. Seu nome e telefone foram identificados pela Repórter Brasil em um grupo de WhastApp solicitando depósitos para a conta da USA Brasil, em prol das manifestações golpistas em Brasília.

O filho dele, Enric Lauriano, é a face política da família. Presidente do PL em Xinguara, é o candidato do partido a prefeito da cidade, com apoio pessoal de Bolsonaro. 

Recentemente, o ex-presidente deu a Lauriano a medalha de “imbrochável”. Trata-se de uma condecoração com a imagem de Bolsonaro jovem adornada com a mensagem: “imorrível, imbrochável e incomível”. O jogador de futebol Neymar, o presidente da Argentina Javier Milei e um dos principais revendedores de retroescavadeiras usadas em garimpos ilegais no Pará e em Roraima, Roberto Katusda, já foram agraciados com a homenagem.

Lauriano foi descrito no relatório da CPMI como lobista pró-garimpo e um dos articuladores do PL 191/2020, que defende a mineração em terras indígenas. Um relatório da Abin citado pela comissão parlamentar aponta que Lauriano comprou uma escavadeira da fabricante BMC Hyundai apreendida em 2022 dentro da Terra Indígena Kayapó, o que, segundo os parlamentares, “corrobora a sua ligação com o garimpo ilegal”. 

À Justiça Eleitoral, Lauriano declarou a posse de três escavadeiras e de uma firma deste ramo. Porém, omitiu na declaração a posse de uma empresa de compra e venda de gado, conforme consta nas bases da Receita Federal.

A CPMI do 8 de Janeiro identificou que Lauriano fez um pix de R$ 2.500 para financiar o acampamento golpista em Brasília, além de ter colaborado com “a divulgação da rede de financiamento do acampamento atuante em Marabá (PA)”, afirmou o documento final da comissão. 

A investigação do Congresso sobre o 8 de Janeiro pediu o indiciamento de 61 pessoas. Dos 16 apontados como financiadores, 13 são ligados ao agronegócio, a maior parte produtores de soja, contabilizou o De Olho nos Ruralistas.  

Cunha e Lauriano tiveram o indiciamento sugerido pela CPMI pelos crimes de “incitação ao crime” e “associação criminosa”. Eles foram alvo de operações da Polícia Federal (PF), mas não foram indiciados até o momento. 

Procurado, Enric Lauriano não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem.

Estátua da rede Havan em Marabá, no sul do Pará (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Estátua da rede Havan em Marabá, no sul do Pará (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Ogronegócio tranca estrada da soja e pressiona quartel em Marabá

Outro produtor rural paraense investigado por envolvimento nos atos antidemocráticos é o presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Marabá, Ricardo Guimarães de Queiroz. Ele teria financiado e participado do bloqueio da rodovia Transamazônica na cidade, em frente ao 52º Batalhão de Infantaria de Selva.

Segundo denúncia do Ministério Público Federal (MPF), Queiroz “convocou pessoas a se manifestarem na BR-155 e declarou expressamente que descumpriria a decisão judicial de desbloqueio”. 

Em um vídeo gravado com uma pilha de pneus em chamas ao fundo, Queiroz disse: “Já recebemos ordem judicial e não respeitamos”.

As investigações da Polícia Federal e as diversas postagens do sindicato no Instagram demonstram “a existência de um movimento organizado, estruturado, com a finalidade de se insurgir contra o resultado democrático das eleições presidenciais”, diz a denúncia do MPF.

Queiroz também foi alvo de uma operação da PF por envolvimento na invasão ao aeroporto de Brasília, ocorrida em dezembro de 2022. Queiroz foi preso na ocasião por porte ilegal de armas e munições.

O advogado de Queiroz, Antônio Quaresma, não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem.

Mata ciliar do rio Jamanxim pega fogo na região de Novo Progresso (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Mata ciliar do rio Jamanxim pega fogo na região de Novo Progresso (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Antes mesmo de os prédios públicos serem atacados em janeiro de 2023 em Brasília, o estado do Pará já tinha inaugurado os ataques às instituições. 

Dias após a vitória de Lula, a professora Cláudia Kummer gravou um vídeo convocando a população de Novo Progresso para queimar pneus na BR 163, a rodovia da soja, no sudoeste do estado. No vídeo, ela diz que não aceitava o resultado das eleições. Professora da rede pública municipal, Kummer já foi candidata a vice-prefeita de Novo Progresso.

Quando a Polícia Rodoviária Federal (PRF) tentou liberar o trânsito, os agentes foram atacados pelos manifestantes com pedras e tiros. Um vídeo registra o momento em que viaturas deixam o local com as sirenes disparadas. Um dos manifestantes grita: “Fugiram! Arregaram! Viva a população! Aqui é Novo Progresso”. 

Pouco mais de um mês depois do levante, Kummer foi alvo de mandado de prisão da Justiça Federal durante a Operação 163 Livre. Não foi encontrada pela PF e ficou foragida por mais de cem dias até conseguir a revogação do pedido de prisão. Em maio, ela foi homenageada pela Câmara Municipal de Novo Progresso.

O advogado de Kummer disse que ela não  participou do levante contra a PRF, apesar de ter gravado a convocação. “Não houve uma tentativa de golpe de Estado, conforme se investiga. Em momento algum, ela cita tal situação. Ela, assim como várias pessoas da sociedade, não gostaram do resultado das eleições e protestaram”, afirma o advogado.

Outdoor homenageia o senador Zequinha Marinho em Itaituba, uma das cidades com maior atividade garimpeira no Brasil (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Outdoor homenageia o senador Zequinha Marinho em Itaituba, uma das cidades com maior atividade garimpeira no Brasil (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Zequinha Marinho

No sul do Pará, uma das principais lideranças políticas ligadas ao agronegócio é o senador Zequinha Marinho (Podemos), atual vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, braço institucional da bancada ruralista no Congresso.

Pastor evangélico e bolsonarista ferrenho, Zequinha pode ser classificado como um defensor do “ogronegócio” em Brasília. No mês passado, ele se tornou alvo do Supremo Tribunal Federal (STF) após a Justiça do Pará enviar para a corte uma investigação que aponta o suposto envolvimento do senador no uso de seu gabinete para favorecer grileiros de terras indígenas no Pará. O caso pode configurar um possível crime de advocacia administrativa. A ministra Cármen Lúcia ainda vai decidir se abre um inquérito contra ele.

Zequinha é abertamente defensor da exploração econômica das terras indígenas. Ele recebeu em Brasília representantes de uma cooperativa de ouro investigada pela PF por exploração ilegal do minério. Já defendeu também invasores das terras indígenas Ituna/Itatá e Apyterewa, dentre eles um homem apontado pelo Ibama como o maior grileiro de terras da Amazônia

Zequinha também teve o nome envolvido com os atos antidemocráticos após as eleições de 2022. Foi ele quem autorizou a entrada no Congresso, em novembro daquele ano, de George Washington, o mentor do frustrado atentado à bomba.

Um ex-assessor de Zequinha também teve participação ativa nos atos antidemocráticos: Luciano Guedes, pecuarista de Redenção, apoiou os acampamentos em Brasília e na capital federal, defendendo a intervenção militar. Entre agosto de 2019 a julho de 2022, ele ocupou cargo comissionado no gabinete do senador.

Guedes atuou na campanha de Zequinha para o governo do Pará, em 2022, quando o senador foi o escolhido de Bolsonaro no estado, mas saiu derrotado por Hélder Barbalho (MDB). Nas principais cidades do sul do Pará, contudo, Zequinha venceu: 55% dos votos em Redenção e 59% em Xinguara.

Entrada de propriedade que invadiu área de assentamento da reforma agrária no norte de Mato Grosso. Série de reportagens mostra como "ogronegócio" tomou a Amazônia com ajuda do bolsonarismo (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Entrada de propriedade que invadiu área de assentamento da reforma agrária no norte de Mato Grosso. Série de reportagens mostra como “ogronegócio” tomou a Amazônia com ajuda do bolsonarismo (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Não é por acaso que Zequinha é o político que mais aparece na agenda oficial do ex-secretário de Assuntos Fundiários do governo Bolsonaro, Luiz Antonio Nabhan Garcia. Personagem da série de reportagens “Ogronegócio: milícia e golpismo na Amazônia”, Nabhan dedicou mais espaço em sua agenda para representantes da banda truculenta do agronegócio, conforme revelou a Repórter Brasil, a partir da análise de seus compromissos oficiais.

Procurado, Luciano Guedes não retornou os contatos da reportagem. Nabhan Garcia também não respondeu às perguntas enviadas.

Já o senador Zequinha Marinho disse que não mantém relação com os financiadores de atos antidemocráticos Ricardo Pereira da Cunha e Enric Lauriano, citados na reportagem. Disse ainda que não comentaria sobre Guedes, pois ele não faz mais parte de sua equipe. Por fim, declarou que os encontros com Nabhan Garcia tiveram como tema a regularização fundiária do estado.

Esta reportagem teve apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center. Saiba mais.

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