POUCOS MESES após uma operação de guerra retirar milhares de invasores das Terras Indígenas (TIs) Apyterewa e Trincheira Bacajá, no sul do Pará, grileiros voltaram a invadir os dois territórios para uma série de incêndios criminosos que já devastaram 2.000 hectares (o equivalente a 2.800 campos de futebol), segundo denúncia de organizações socioambientais.
Os focos de incêndio estão concentrados em áreas de pasto e ao longo de estradas ilegais dentro das duas terras indígenas, de acordo com a Rede Xingu+, uma coalizão formada por 53 organizações indígenas, ribeirinhas e da sociedade civil atuantes na bacia do rio Xingu. O fogo é uma tática dos invasores para preparar o terreno para a criação de gado, principal atividade econômica exercida ilegalmente dentro das áreas protegidas antes da retirada dos invasores, além da extração de madeira.
“Não adianta o governo fazer a desintrusão da terra, expulsar os fazendeiros, e eles retornarem”, afirma Nenexiga Parakanã, secretário da Associação Tato’a, que representa os indígenas do povo Parakanã, que vive na TI Apyterewa.
Os primeiros focos de incêndio foram identificados na primeira quinzena de julho no sul da TI Trincheira Bacajá, divididos em dois ramais com 20 quilômetros de extensão cada. Nas semanas seguintes, outras queimadas foram identificadas em uma estrada ilegal que corta as duas terras indígenas. O fogo se espalhou por mais de 2.100 hectares entre julho e agosto, segundo a denúncia, com pelo menos 62 focos em menos de dois meses.
A Apyterewa lidera o ranking de terra indígena mais desmatada da Amazônia desde 1997, ano de início da série histórica do Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite), produzido pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Na sequência aparecem outras TIs na bacia do rio Xingu, como Cachoeira Seca, Ituna/Itatá e Trincheira Bacajá.
“Tratam-se de localidades anteriormente desmatadas e irregularmente utilizadas para a plantação de pastagem e a criação de gado”, destaca a denúncia.
A desintrusão da Trincheira Bacajá, no Pará, foi oficialmente finalizada em março. Menos de seis meses depois, porém, já havia focos de incêndio no interior da TI, sugerindo o retorno dos invasores.
A terra indígena Apyterewa, vizinha à Trincheira Bacajá, também sofre sucessivas investidas com uso de fogo, poucos meses depois de ter passado por uma desintrusão. Além dos ocupantes ilegais, milhares de bois foram retirados do território dos Parakanã.
“Os fazendeiros estão entrando de novo, estão botando muito fogo e queimando pasto. Tem muita fumaça nas aldeias por causa das queimadas, nunca tinha visto isso acontecer”, detalha Nenexiga Parakanã.
A situação se agravou em agosto, no pico das queimadas, quando duas crianças indígenas tiveram que ser levadas de avião para receber tratamento em Altamira. “Elas não conseguiam respirar”, conta Nenexiga.
A informação foi confirmada pelo assessor indígena do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Altamira, Xokarowara Parakanã. Ambas crianças têm menos de um ano e vivem em aldeias próximas às áreas invadidas. “A fumaça prejudicou a aldeia. Está todo mundo doente”, lamenta. Após serem atendidas no hospital, os pequenos seguem em tratamento na Casa de Saúde Indígena (Casai) da cidade.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Onde há fumaça, há fogo
Não é de hoje que os Parakanã alertam para o retorno dos invasores. No final de agosto, eles já denunciavam o avanço do fogo na Apyterewa. No mês anterior, eles foram atacados por pistoleiros enquanto coletavam cacau em uma antiga fazenda ilegal. Após o episódio, a Associação Tato’a foi a Brasília pedir reforço no policiamento do território – que hoje conta com três bases de proteção operadas pela Fundação Nacional de Povos Indígenas (Funai).
Os Xikrin também têm denunciado as invasões na Trincheira Bacajá – além da pecuária, o território enfrenta o avanço do garimpo ilegal e do roubo de madeira. Foram seis denúncias protocoladas pela Rede Xingu+ desde 2022. “A nossa maior preocupação são os invasores. Tem muito desmatamento e criação de gado. O governo tem a responsabilidade de tirar a invasão”, reitera Katoprore Xikrin, presidente da Associação Bebô Xikrin do Bacajá (Abex).
A Rede Xingu+ enviou um ofício pedindo reforço nas operações de fiscalização nas duas terras indígenas e combate aos incêndios “em caráter de urgência”. Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Funai, Ibama, Polícia Federal e Ministério Público Federal (MPF) receberam o documento em 4 de setembro.
A Repórter Brasil procurou a assessoria de imprensa de todos os destinatários do ofício para saber quais providências foram ou serão tomadas.
A PF informou que a delegacia de Redenção, no sul do Pará, instaurou procedimento de investigação sobre os incêndios. Disse também que articula com outros órgãos federais, como a Funai, para “realizar incursões nas áreas atingidas visando a identificação dos autores dos atos criminosos”. O MPF, por sua vez, instaurou uma notícia de fato para iniciar a apuração das responsabilidades criminais pelo fogo.
Em nota, o Ibama detalhou as atividades do órgão para combate aos incêndios em todo o país, como a mobilização de 3.000 brigadistas e a criação de bases na Amazônia, mas não tratou de planos específicos para as TIs Trincheira Bacajá e Apyterewa (leia na íntegra).
O MPI e a Funai informaram, em nota, que reconhecem a “gravidade” da situação e que “serão intensificadas as ações de fiscalização e monitoramento” das áreas, “para coibir práticas ilegais de desmatamento e criação de gado”. A nota diz ainda que os incêndios foram provocados intencionalmente pelos invasores, segundo relatam as equipes de fiscalização, e que a Polícia Federal está atuando para identificar e responsabilizar os autores (leia as notas completas).
Queimando para invadir novamente
“O fogo é um indicativo de que os invasores não vão abandonar o território, mesmo após serem expulsos”, afirma Thaise Rodrigues, analista de geoprocessamento da Rede Xingu+. “O incêndio ocorre em áreas onde já houve a retirada de ocupantes ilegais, que agora colocam fogo numa tentativa de retomada”, explica.
Para Rodrigues, frear o desmatamento na Apyterewa é fundamental para impedir que o mesmo aconteça na Trincheira Bacajá, já que uma das principais frentes de invasão é uma estrada ilegal que parte da primeira até chegar a última. “A TI Apyterewa é intensamente invadida e isso foi confinando os indígenas dentro do próprio território. Hoje existe um risco de que aconteça a mesma coisa na Trincheira Bacajá”.
Os focos de incêndio na Trincheira Bacajá se concentram em duas estradas ilegais. “São várias frentes de invasão, que tornam a terra indígena cada vez mais fragmentada e vulnerável”, alerta Rodrigues.
A primeira, conhecida como “estrada do Mogno”, foi aberta em 2019 para o escoamento de madeira ilegal e “a promoção de invasões e ocupações por grileiros”, segundo a denúncia da organização. O ramal tem origem na Apyterewa e, de acordo com a Rede Xingu+, está relacionado com a Vila Renascer, uma das principais frentes de invasão na terra indígena, que foi destruída pelas forças do governo federal entre o final do ano passado e o início deste ano.
A localidade surgiu em 2016, mas cresceu durante o governo de Bolsonaro impulsionada pelo discurso anti-indígena. A vila chegou a ter postos de gasolina, hotéis e até rede de energia fornecida pela empresa Equatorial, concessionária de energia elétrica do Pará.
A Repórter Brasil acompanhou o começo da operação de desintrusão da Apyterewa, marcada por momentos de tensão em campo e nos gabinetes de Brasília. Políticos bolsonaristas e também aliados do governador Helder Barbalho (MDB), apoiador do presidente Lula (PT), pressionaram para que a operação fosse abortada. Em meio à pressão contra a retomada, a Força Nacional matou um dos invasores com um tiro de fuzil.
Mesmo após a destruição de todas as casas da Vila Renascer, a estrada que parte de lá se estende por 40 km, atravessando as terras indígenas Araweté/Igarapé Ipixuna e Trincheira Bacajá. Em um período de pouco mais de dez dias (20/08 a 1º/09), foram detectados 23 focos de incêndio no curso desta estrada, segundo a denúncia, com base em dados do Inpe.
* A reportagem foi atualizada em 13 de setembro de 2024 para incluir o posicionamento do Ministério dos Povos Indígenas e da Funai.
Leia também