FAZENDEIROS COM EMBARGOS ambientais tiveram acesso a verba pública ao contratarem seguros agrícolas subsidiados em 2024. Levantamento da Repórter Brasil identificou cinco propriedades, em diferentes regiões do Mato Grosso, que tiveram áreas embargadas por desmatamento ilegal na Amazônia e contrataram apólices da Brasilseg e da Mapfre, pagas parcialmente com dinheiro do governo federal. A Brasilseg é uma subsidiária do Banco do Brasil. Foram pagos R$ 52,7 mil em subsídios no total e as propriedades beneficiadas somam 1.821,4 hectares embargados.
As propriedades contrataram seguros com o apoio do PSR (Programa de Subvenção ao Seguro Rural). Por meio dele, o governo federal arca com uma parte das apólices como incentivo à produção agropecuária do país. Em 2023, o Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária) destinou R$ 933,1 milhões em subsídios para contratos de seguro rural, de acordo com informações do Relatório PSR 2023.
O levantamento da Repórter Brasil usou dados do PSR, de embargos estaduais do Mato Grosso e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
Em fevereiro, uma investigação da Repórter Brasil já havia revelado situações semelhantes envolvendo apólices subvencionadas pelo Mapa em anos anteriores. Na ocasião, a pasta informou a expectativa de implementar, ainda em 2024, um sistema para verificar a existência de áreas embargadas sobrepostas às fazendas que solicitassem o subsídio.
:: Leia também: Dossiê seguro rural: Seguradoras multinacionais asseguram propriedades dentro de áreas indígenas, com embargos ambientais ou envolvidas em trabalho escravo
Questionado novamente agora, o Mapa afirmou que o sistema ainda está em fase de homologação e que sua entrada em operação deve ocorrer somente no primeiro trimestre de 2025. O ministério informou também que vai verificar os novos casos investigados pela reportagem. Caso as glebas indicadas nas apólices estejam sobrepostas a áreas embargadas, diz o órgão, as seguradoras serão notificadas para que cancelem as operações e façam o ressarcimento dos valores subsidiados por meio do PSR (leia a resposta completa aqui).
Fazendas com embargos
Em Guarantã do Norte (MT), o pecuarista Egídio Brambilla teve aproximadamente dois terços das suas terras embargadas por desmatamento ilegal. Os embargos somam 204,3 hectares.
Após a determinação dos embargos, em 2021, a propriedade teve o CAR (Cadastro Ambiental Rural) original alterado. A Fazenda Fundo da Grota, que possuía 341,5 hectares e englobava todas as terras de Brambilla no local, foi reduzida para apenas 64,4 hectares de perímetro registrado, conforme imagem abaixo.
Um estudo da organização CCCA (Center for Climate Crime Analysis) mostrou que essas alterações estão se tornando prática comum entre fazendeiros da Amazônia. Com as mudanças dos perímetros das fazendas, os proprietários “apagam” infrações ambientais como embargos e conseguem evitar restrições à obtenção de crédito, por exemplo.
Em 2024, o pecuarista contratou seguro da Brasilseg, joint venture entre o Banco do Brasil e a seguradora espanhola Mapfre, com R$ 2.600 subsidiados. A coordenada do seguro divulgada pelo Mapa incide no CAR que não tem embargos. O seguro contratado é o pecuário, que assegura o rebanho. A reportagem esteve em novembro na região e observou gado pastando também na fazenda com áreas embargadas. Não foram identificadas cercas que separassem as duas áreas de CAR apontadas no registro rural.
A Repórter Brasil entrou em contato com a advogada de Brambilla, responsável pela defesa do proprietário no processo administrativo junto à Sema. Ela informou não ter conhecimento sobre o uso da área embargada e sobre a alteração do CAR. A reportagem também buscou contactar Brambilla, mas não houve retorno. O espaço segue aberto para manifestações.
Em Paranaíta (MT), há um caso semelhante. Várias áreas contíguas estão registradas em CARs no nome de Leonildo Greco e de outras pessoas com o mesmo sobrenome. Um embargo de 1,4 mil hectares do Ibama, lavrado em nome de Leonildo, “atravessa” cinco desses CARs, conforme imagem abaixo. Além disso, há outros embargos federais no local que estão registrados em nome de outras pessoas com sobrenome Greco.
Em agosto de 2024, Leonildo foi autuado pela Sema-MT e multado em R$ 7,1 milhões por manter atividades pecuárias no perímetro embargado.
Também em 2024, Leonildo contratou seguro pecuário da Brasilseg, com R$ 2.600 de subsídio. As coordenadas do seguro divulgadas pelo Mapa incidem sobre um dos CARs, dentro do conjunto, que não possui embargos.
No entanto, imagens de satélite analisadas pela organização Aid Environment, a pedido da Repórter Brasil, sinalizam que há indícios de atividade pecuária inclusive sobre a área embargada. A organização também aponta que há indícios de que os CARs dividem a propriedade apenas na teoria, mas que, na prática, trata-se da mesma propriedade.
A Repórter Brasil entrou em contato com o advogado de Greco, que informou não ter conhecimento sobre a situação. O espaço segue aberto para futuras manifestações.
Soja com seguro
Os sítios Quinta da Bonança e Soberana, em Tabaporã (MT), tem 19 hectares embargados pelo Ibama. São três áreas contíguas registradas, cada uma com um CAR diferente. Uma pertence a Ana Paula Noronha, outra a Airton Leonel Pedroski e há uma terceira que não teve o dono identificado. A área embargada atravessa os três CARs, conforme imagem abaixo.
A reportagem esteve nas estradas que margeiam os sítios e conversou com comerciantes e moradores da região, que afirmaram que as propriedades formam, na prática, uma única fazenda. Percorrendo o seu entorno, não há cercas ou outros indícios de que sejam propriedades diferentes. Há plantação de soja em todo o perímetro. Imagens aéreas analisadas pela Aid Environment também indicam tratar-se de uma única propriedade produtiva, com lavoura de soja que abarca também outros lotes ao redor.
Noronha e Pedroski contrataram apólices com a Brasilseg, em 2023 e 2024, para assegurar a produção de soja e milho, com R$ 13,5 mil de subsídio do PSR. As coordenadas das apólices divulgadas pelo Mapa incidem nas áreas de CAR registradas pelos proprietários, ambas atravessadas pelo embargo.
A reportagem enviou um e-mail para Noronha, mas não obteve respostas. Não conseguimos contatar Pedroski. O espaço segue aberto para manifestações.
Em Marcelândia (MT), a Fazenda Adonai, propriedade de Clara Renita Schwanke, teve uma área de 147,9 hectares embargada pela Sema-MT em dezembro de 2023 por desmatamento ilegal. A proprietária assinou um Termo de Compromisso para Recuperação de Área Degradada com o governo estadual e, desde janeiro de 2024, tem uma Autorização Provisória de Funcionamento Rural. A fazenda, entretanto, continua com o embargo ativo.
Schwanke contratou quatro apólices de seguro com subsídio do PSR, duas pela Brasilseg e duas pela Mapfre, em 2024. Ela também contratou outras três apólices de seguro em seu nome para propriedades que ficam no entorno. No total, ela foi beneficiada com R$ 44,9 mil em subsídios do governo federal.
O advogado de Schwanke informou que a proprietária segue o previsto no Plano de Recuperação de Áreas Degradadas firmado com o governo do Mato Grosso na lavoura de soja e que ela não tinha interesse em se manifestar.
A reportagem também esteve na estrada que margeia a fazenda e observou plantações, conforme a imagem abaixo. No entanto, não foi verificada a existência de plantio especificamente no perímetro embargado da propriedade.
Mas esta situação pode ser considerada uma exceção. Um estudo publicado em 2022 por pesquisadores da Universidade Federal do Pará e do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostrou que 87% dos embargos ambientais não são cumpridos na Amazônia, sendo que 80,9% das áreas continuam suas atividades com o gado e 6% com a agricultura.
A Mapfre informou que, sobre o caso da Fazenda Adonai, as “apólices mencionadas na reportagem referem-se exclusivamente a áreas sem nenhum tipo de embargo prévio ou vigente” e que “nas verificações de critérios ambientais, sociais e de governança (ASG) realizadas no processo de subscrição da apólice, bem como no seu monitoramento contínuo, não houve qualquer falha ou identificação de limitação relacionada à área segurada”, já que a proprietária conta com uma autorização de produção.
Sobre os demais casos, a Mapfre não se posicionou. A companhia destaca ainda que realiza monitoramento contínuo de listas restritivas, garantindo a conformidade das operações com as melhores práticas de ASG (Ambiental, Social e Governança), que orientam suas ações globalmente
Também procurada para comentar todos os casos envolvendo seus clientes, a Brasilseg informou que não comenta casos específicos, que faz o acompanhamento dos casos por satélites e que “opera em estrito cumprimento da legislação”. Leia as respostas na íntegra aqui.
Faltam regras para o setor
A circular nº 666 da Susep (Superintendência de Seguros Privados), autarquia que fiscaliza o mercado de seguros no país, exige que as seguradoras promovam políticas de gestão de riscos e de sustentabilidade, mas não especifica quais critérios devem ser avaliados.
Priscila Souza, gerente sênior de avaliação de política pública do CPI (Climate Policy Initiative)/PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), afirma que o setor carece de regulamentações socioambientais. “No crédito rural, há uma série de restrições e impedimentos, o produtor não pode ter embargo ambiental na propriedade. No seguro, ainda não temos uma regra que impeça isso de acontecer”, comenta.
Para ela, é contraditório que as políticas públicas beneficiem proprietários com embargos. “A crise climática atinge em primeiro lugar a própria agricultura, que tem tido perdas volumosas por desmatamento. E, ao mesmo tempo, temos recursos públicos destinados a áreas embargadas por desmatamentos, que causam toda essa crise”, analisa Souza.
Leia também