DEZ DIAS APÓS a Repórter Brasil revelar que um pano cobria o fundo do altar da Igreja Santa Luzia, em Anapu, no Pará, ocultando a pintura em homenagem à memória de Dorothy Stang, o bispo da Diocese do Xingu, Dom Frei João Muniz Alves, interveio e determinou que a imagem da religiosa fosse definitivamente descoberta.
A missionária católica norte-americana foi executada com seis tiros há 20 anos, em 12 de fevereiro de 2005, em um crime que chocou o mundo. Para amigos da missionária e movimentos sociais, a cobertura da pintura representava uma tentativa de “invisibilizar” a luta pela reforma agrária em uma região marcada por décadas de sangrentos conflitos fundiários.
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“Dorothy é um ícone desta região. É uma força mística”, afirmou Dom João, que celebrou, no último domingo (9), a missa de abertura do ano jubilar da Diocese de Altamira, comemorado a cada 25 anos a partir do nascimento de Jesus Cristo, na Paróquia Santa Luzia, em Anapu.
“A maneira como ela foi assassinada revolta e desperta solidariedade em tantas pessoas ao redor do mundo, não apenas por sua história, mas pelo povo que ela serviu”, completou o bispo.
Ele descreveu a missionária como uma mulher corajosa e, após listar suas iniciativas nas áreas de educação e assistência social, destacou que sua morte está diretamente ligada às questões agrárias.
Anapu é uma das cidades mais violentas da região e é palco de inúmeros conflitos por terra. Ocupa o 13º lugar no ranking de mortes violentas intencionais nas cidades da Amazônia Legal, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Com uma população de 35 mil habitantes, o município se espalha por um vasto território, equivalente a oito vezes o tamanho da cidade de São Paulo.
Desde o assassinato de Dorothy, outras 21 pessoas foram executadas por disputas de terra, conforme levantamento da CPT (Comissão Pastoral da Terra), organismo da igreja católica que atua junto a trabalhadores rurais. O nome de todas elas está em um cruz vermelha cravada na sepultura da missionária.
![Freiras da mesma congregação de Dorothy (à esq.) foram recebidas pelo bispo Dom João e pelo padre Josemar (à dir.) na missa do último domingo (9), quando o altar com a homenagem a Dorothy foi descoberto (Foto: Reprodução/Redes Sociais)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-11-104613_002-1024x768.jpeg)
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Homenagem Permanente
Após as palavras do bispo, o padre de Anapu, Josemar Lourenço, assegurou que a homenagem não será mais coberta. Antes da intervenção do bispo, ele havia justificado o uso do pano como um pedido da comunidade. “A maioria dos fiéis dizia que, ao rezar, não gostava de ver a pintura e os desenhos”, explicou o padre, que é ex-investigador da Polícia Civil da Paraíba e foi ordenado há quatro anos.
Criado em 2009, o painel retrata Jesus Cristo crucificado em uma árvore, vestido com roupas simples, chapéu de palha e pele queimada pelo sol, remetendo a um posseiro ou trabalhador rural sem terra. Ao lado dele, sobre troncos de árvores cortadas, estão representados a irmã Dorothy e o padre Josimo Tavares, assassinado em 1986 no Maranhão após ameaças de fazendeiros. Assim como a missionária, Josimo fazia parte da CPT.
“Uma minoria dos fiéis não quer a pintura, mas os pobres, em sua grande maioria, a defendem”, disse a freira Jane Dwyer, da mesma ordem religiosa de Dorothy, a Notre Dame de Namur. Aos 84 anos, Jane continua o trabalho missionário que sua companheira realizava.
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Durante a missa de domingo, fiéis levaram cartazes destacando as obras de Dorothy durante o ofertório. Além da luta pela reforma agrária e pela preservação da floresta, a missionária foi essencial na criação de escolas e na emancipação de Anapu.
![Ofertório foi feito com cartazes que representam os legados de Dorothy para Anapu (Foto: Reprodução / Redes Sociais)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-11-104645_002-1024x768.jpeg)
Nascida em 1931 em Ohio (Colorado), nos Estados Unidos, Dorothy chegou ao Brasil 30 anos depois e viveu no interior do Maranhão, Ceará e Paraíba. Em 1982, estabeleceu-se em Anapu, na região do médio Xingu paraense, onde foi assassinada aos 73 anos.
A freira trabalhou diretamente com comunidades amazônicas, defendendo pobres, indígenas, ribeirinhos e trabalhadores rurais contra a exploração da terra, o desmatamento ilegal e a violência. Ficou conhecida por sua coragem e determinação ao enfrentar os interesses de fazendeiros e grileiros.
Seu trabalho incluía a organização política das comunidades, o mapeamento de áreas de conflito, a denúncia de crimes ambientais e a defesa dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), modelo de reforma agrária que busca conciliar a preservação da floresta com a produção de alimentos. Dorothy também atuava na formação de mulheres rurais, promovendo cursos sobre direitos sociais, saúde, maternidade e sexualidade.
Passados 20 anos, os PDS enfrentam invasões e desmatamento. A área ocupada pela agropecuária em projetos de desenvolvimento sustentável saltou de 4,38% para 22,27%, entre 2005 e 2023, segundo levantamento publicado pela Agência Pública.
Foi justamente em um PDS, o Esperança, que a missionária foi executada. Demonstrando paciência e coragem até o último instante, ela tentou dissuadir os assassinos contratados para matá-la.
Segundo os depoimentos dos criminosos à Justiça, Dorothy lhes disse: “Olha, meu filho, eu sei como é. Vocês são mandados como soldados. Vocês querem terra? Venham junto com a gente”. Em seguida, abriu a Bíblia e leu um trecho do Sermão da Montanha, do Evangelho de Mateus: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”. Logo após, recebeu o primeiro tiro na barriga. Caída, foi alvejada outras cinco vezes.
A memória de Dorothy Stang é celebrada em romarias e vigílias, e seu nome é lembrado como exemplo de coragem e compromisso com os mais vulneráveis. Nos Estados Unidos, recebeu diversas homenagens, e o dia de sua morte foi proclamado “Dia Dorothy Stang” no estado de Colorado. Há um mês, uma vigília em sua homenagem foi realizada no Vaticano.
Nesta quarta-feira (12), às 9h, quando sua execução completa exatos 20 anos, será realizada uma celebração junto ao seu túmulo, em um espaço da CPT, em Anapu.
A homenagem será conduzida pelo bispo emérito de Altamira, Dom Erwin Krautler, o mesmo que, em 2005, celebrou sua missa de corpo presente. Na ocasião, ele declarou: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos. Sim, Dorothy deu sua vida! Deu o testemunho mais eloquente de seu amor: derramou seu sangue”.
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