DENUNCIA

Não é só no Brasil: ONG liga Nestlé e Starbucks a trabalho precário no México

Investigação da organização Empower denuncia envolvimento das duas multinacionais em sistema de exploração de cafeicultores familiares mexicanos. Repórter Brasil já revelou casos de trabalho escravo na rede de fornecedores brasileira de ambas as empresas
Por Murilo Pajolla | Edição Poliana Dallabrida
 14/02/2025

UM NOVO RELATÓRIO da Empower, organização mexicana de defesa dos direitos humanos, expôs uma série de violações trabalhistas e ambientais na cadeia de fornecimento de café no México. Os casos estão diretamente relacionados às gigantes multinacionais Nestlé e Starbucks, duas das principais compradoras do grão no país.

O documento “Exploração e Opacidade: A Realidade Oculta do Café Mexicano nas Cadeias de Fornecimento da Nestlé e Starbucks”, publicado nesta sexta-feira (14), detalha como as práticas da produção de café certificado das duas corporações impactam negativamente produtores, trabalhadores e o meio ambiente. 

A Empower alerta que os cafeicultores são vítimas da informalidade, baixa remuneração, jornadas extenuantes e que o trabalho infantil ainda é comum nos cafezais do país. “As crianças costumam estar presentes nas plantações de café devido aos salários inadequados recebidos por seus pais, obrigando as famílias a depender de sua mão de obra para complementar a renda familiar”, aponta um trecho do estudo. 

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Na avaliação da organização, o problema é agravado pela falta de fiscalização eficiente e pela conivência das certificadoras, que falham em detectar ou relatar esses abusos.

Segundo a Empower, os cafeicultores mexicanos enfrentam pressão econômica de grandes empresas compradoras, o que resulta em condições de pobreza extrema e marginalização. Intermediários conhecidos como “coyotes”, que compram a produção de zonas distantes dos grandes centros de comercialização, impõem preços abusivamente baixos. Há relatos também de fraudes na pesagem dos grãos.

“Esses abusos não são incidentes isolados, mas sim problemas estruturais e abrangentes em toda a indústria, impulsionados pelas práticas de compra das gigantes globais do café, que priorizam a redução de custos em detrimento de condições laborais éticas”, declarou Giulia Marchese, pesquisadora sênior da Empower, à Repórter Brasil.

Em resposta à reportagem, a Nestlé afirmou que as alegações do relatório “distorcem a realidade de sua atuação na cadeia de fornecimento de café no México”. A empresa declarou que paga preços historicamente altos aos fornecedores diretos e não compra café de intermediários. Sustentou ainda que a expansão do robusta no país ocorreu sem desmatamento e que exige de seus fornecedores o respeito aos direitos trabalhistas e comunitários. Clique aqui para ler a resposta na íntegra. 

A Starbucks não respondeu aos questionamentos enviados até o fechamento deste texto. O espaço segue aberto para manifestações futuras.

Problema global

O cenário traçado pela pesquisa mexicana guarda semelhanças com a realidade brasileira. Em 2023, a Repórter Brasil revelou que fazendas de café em Minas Gerais, onde o Ministério do Trabalho e Emprego flagrou trabalho escravo e infantil, possuíam o selo de certificação da Starbucks. Naquele ano, o cultivo de café foi o setor com maior número de trabalhadores resgatados do trabalho análogo à escravidão em todo o país.

Trabalhador colhe café em fazenda no Sul de Minas Gerais. Em 2023, Repórter Brasil revelou que fazendas autuadas por trabalho escravo possuíam selo de certificação da Starbucks (Foto: Lela Beltrão/Repórter Brasil)

Quatro anos antes, em 2019, um fornecedor de café da Nespresso, marca controlada pela Nestlé, foi incluído na Lista Suja do trabalho escravo pela submissão de 6 trabalhadores a condições análogas à escravidão. O produtor também possuía o selo C.A.F.E. Practices, da Starbucks. 

À época, a Nespresso suspendeu o contrato com o cafeicultor e garantiu que as fazendas fornecedoras da marca “são rigorosamente avaliadas e supervisionadas anualmente”. Em relação ao mesmo caso, a Starbucks afirmou que investigaria o episódio e que seguia “padrões éticos e sustentáveis”. Quando as novas revelações da Repórter Brasil vieram à tona, a multinacional disse estar “profundamente preocupada com as alegações levantadas” e que as fazendas mencionadas seriam investigadas. 

Repressão policial

O relatório da Empower ressalta também um caso ocorrido em 2022 no estado de Veracruz, quando cafeicultores que vendiam sua produção para uma empresa intermediária fornecedora da Nestlé realizaram uma manifestação contra a queda repentina no preço do café. De acordo com a Empower, 12 pessoas foram presas de forma irregular na ocasião.

Segundo o relatório, “essas irregularidades incluíram prisões violentas, a imposição injustificada de um ano de prisão preventiva e a negação da possibilidade de os réus apresentarem provas de sua inocência”. Dos 12 cafeicultores presos, 7 ainda respondem por crimes na Justiça. 

Certificação fracassou, diz organização 

Violações trabalhistas e aos direitos humanos, ressalta o relatório, são identificadas também em propriedades certificadas, que deveriam garantir boas práticas socioambientais. A investigação aponta que esquemas de certificação, como o 4C (sigla para Código Comum para a Comunidade Cafeeira), usado pela Nestlé, e o C.A.F.E. Practices, da Starbucks, criam uma aparência de sustentabilidade, transformando-se em ferramentas de greenwashing (lavagem verde, na tradução para o português). 

“Muitos trabalhadores enfrentam jornadas exaustivas sem descanso adequado, recebem salários abaixo do nível de pobreza, que não cobrem os custos básicos de vida, e não têm acesso a serviços essenciais, como água potável, saneamento e assistência médica”, explica Florencia Rivaud, da Empower. “O fracasso dos esquemas voluntários de certificação em prevenir essas violações destaca a necessidade urgente de regulamentações obrigatórias, proteções trabalhistas mais robustas e mecanismos de responsabilização corporativa”, completa.

A 4C foi procurada para comentar o estudo, mas não respondeu aos questionamentos enviados até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras. 

Novos cultivos

No México, segundo a ONG, a situação é agravada pelo incentivo da Nestlé ao cultivo de café robusta, que exige cultivo sob sol pleno, sem sombras. A Empower analisou imagens de satélite de novas áreas de cultivo e constatou que o plantio substituiu formações florestais e gerou desmatamento. 

Quase 90% do café robusta importado pela Nestlé no México entre 2022 e 2024 veio do Brasil. As pesquisadoras da Empower dizem que a importação em massa prejudica os cafeicultores mexicanos, que enfrentam dificuldades para competir em preço e volume. Como resultado, a estratégia de fornecimento da Nestlé perpetua preços baixos no campo e reforça a vulnerabilidade estrutural dos pequenos agricultores. 

“Quando a Nestlé estabeleceu sua fábrica de café em Veracruz, inicialmente prometeu comprar predominantemente de produtores mexicanos, mas, em vez disso, continua importando grandes volumes de robusta brasileiro mais barato, por meio de intermediários”, lembrou Rivaud.

Como reverter o cenário

No Brasil e no México, a Empower recomenda que as corporações adotem mais transparência na cadeia produtiva, garantindo preços justos aos produtores e auditorias verdadeiramente independentes. 

“Empresas como Nestlé e Starbucks devem ser obrigadas a assumir responsabilidade pelas condições de trabalho em suas cadeias de suprimentos. Isso inclui a implementação de leis de devida diligência obrigatórias, que imponham consequências reais para violações dos direitos trabalhistas, em vez de depender de compromissos voluntários e programas de certificação ineficazes”, pontuou Marchese. 

A pesquisadora defende ainda que os governos imponham regulamentações mais rígidas para assegurar que fundos públicos destinados ao setor cafeeiro beneficiem de fato os pequenos produtores, e não apenas as multinacionais.

“Os governos devem exigir salários dignos, contratos formais e acesso a assistência médica e previdência social para todos os trabalhadores agrícolas, independentemente de seu status empregatício”, disse.

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