“SE VOCÊ QUISER RODAR, eu aconselho você, caso você esteja precisando muito, pegar uma conta de uma pessoa próxima – pegar do teu pai ou da tua mãe.”
Essa é a recomendação de um dos três vídeos derrubados pelo TikTok, com dicas sobre como adolescentes podem burlar o cadastro exigido pelo iFood para trabalhar como entregador de aplicativo. As postagens foram retiradas do ar após questionamentos enviados à rede social pela Repórter Brasil.
O iFood proíbe a atuação de pessoas com menos de 18 anos, como diz a lei. Na prática, porém, jovens conseguem contornar as restrições usando contas de parentes ou amigos.
O trabalho infantil é proibido no Brasil, salvo algumas exceções, como o trabalho artístico e o de “jovem aprendiz”– sujeito a uma série de regras para combinar a formação profissional com a educacional.
No caso do serviço de entrega, há um agravante: ao expor adolescentes ao risco de acidentes, à chuva, ao frio e ao calor excessivo, a ocupação pode ser enquadrada na lista oficial de piores formas de trabalho infantil.
![Presidente do STF, Luís Roberto Barroso defende que as empresas assumam uma postura proativa para remoção de conteúdos (Foto: Antonio Augusto / STF)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/barroso-1024x683.jpg)
Mesmo assim, estratégias para driblar as restrições de idade correm soltas no TikTok e no Youtube. A reportagem mapeou uma série de vídeos nas duas plataformas com orientações sobre o uso de perfis fraudulentos. Até ensinamentos sobre como enganar ferramentas de reconhecimento facial, usadas por aplicativos para confirmar a identidade dos entregadores, são compartilhados.
Enquanto o TikTok removeu ao menos três desses conteúdos, a assessoria de imprensa do Youtube respondeu dizendo que a empresa “não vai comentar” – os vídeos com dicas sobre as fraudes continuam públicos, mas não serão veiculados nesta matéria.
A reportagem também questionou o iFood. Por meio de nota, a empresa afirma que “o uso de cadastros por menores de idade é uma fraude, conforme previsto nos termos e condições da plataforma”. Leia aqui a resposta na íntegra.
![Plataformas proíbem entregadores com menos de 18 anos; atividade pode ser enquadrada na lista das piores formas de trabalho infantil (Imagem: Reprodução / Redes Sociais)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-06-143148.png)
O posicionamento diz ainda que a empresa monitora ativamente conteúdos relacionados à marca e que, ao identificar postagens como as mencionadas, registra denúncias diretamente nos canais de ajuda das plataformas. “Reforçamos que o iFood não tem ingerência sobre as regras de uso das distribuidoras de conteúdo”, conclui a nota.
A Rappi também é mencionada nos vídeos e comentários. Procurada pela Repórter Brasil, reiterou que não permite o trabalho infantil e “tampouco contribui para que isso ocorra em sua plataforma”. A empresa não respondeu, no entanto, se faz algum tipo de monitoramento sobre os conteúdos publicados no TikTok e no Youtube. A íntegra pode ser lida aqui.
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STF debate responsabilidade de plataformas sobre conteúdos postados por usuários
Atualmente, o STF (Supremo Tribunal Federal) debate a regulamentação de plataformas digitais, incluindo a responsabilização dessas empresas por conteúdos publicados pelos usuários.
Em dezembro, o presidente da corte Luís Roberto Barroso defendeu que as empresas devem ter uma postura proativa para evitar postagens criminosas. “Os provedores têm o dever de cuidado de mitigar os riscos sistêmicos criados ou potencializados por suas plataformas”, disse. O julgamento foi suspenso após pedido de vista do ministro André Mendonça.
“O discurso de apologia ao trabalho infantil é muito grave. Além disso, é crime apresentar uma documentação falsa, agir em nome de outro”, alerta Moacir Nascimento Júnior, promotor de Justiça da Bahia e colaborador da Comissão da Infância, Juventude e Educação do Conselho Nacional do Ministério Público.
![(Reprodução /Redes Sociais)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-05-093414.png)
“As empresas que mantém esse tipo de conteúdo depois de notificadas extrajudicialmente devem ser responsabilizadas”, reforça Nascimento, explicando que autoridades públicas, organizações da sociedade civil e até mesmo pessoas comuns podem pedir às plataformas a retirada de posts contrários à lei.
Esse também é o entendimento de Renata Tomaz, professora da FGV Comunicação Rio (Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getulio Vargas). “É responsabilidade das plataformas garantir que não haja não só a prática ilícita, mas a promoção da prática ilícita”, avalia.
Adolescentes usam contas de amigos e familiares para trabalhar no iFood
“É fácil, rapaziada, é só botar o documento de alguém ‘de maior’”, afirma um vídeo no Youtube. Nele, um menino que aparenta ter menos de 18 anos afirma ter usado a documentação da mãe.
O conteúdo foi postado há mais de três anos com o título “como entregar sendo de menor”, já acumula 58 mil visualizações e segue movimentando a caixa de comentários.
Ali, os perfis trocam incentivos, dicas e relatos: “vlw pela dica man vou trabalhar com 11 anos vou pode junta um dinheiro pra min”, diz uma postagem de novembro de 2024.
“Também uso o documento da minha mãe, e já fiz várias entregas”, diz um post feito em dezembro. Outro, de janeiro deste ano, promete: “vou pegar a conta do meu irmão mais velho”.
![iFood diz monitorar conteúdos sobre sua marca na internet, mas afirma não ter "ingerência sobre as regras de uso ds distribuidoras de conteúdo" (Imagem: Reprodução / Redes Sociais)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-06-143247.png)
“Se há uma fraude na hora da criação da conta e isso é sabido, devem ser adotadas medidas para evitar que isso aconteça. Temos tanta tecnologia, não é possível que não se consiga fazer uma verificação etária efetiva”, pondera Luísa Carvalho Rodrigues, da Coordinfância (Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente), do MPT (Ministério Público do Trabalho).
Vídeos dão dicas para driblar reconhecimento facial
Um dos mecanismos implementados pelas empresas para impedir fraudes é o monitoramento via reconhecimento facial. A medida exige que os entregadores enviem fotos de tempos em tempos para confirmar sua identidade.
Mas também há maneiras de burlar essa exigência. Jovens ouvidos pela Repórter Brasil contaram que a “facial”, como eles chamam, normalmente é solicitada antes ou logo após as primeiras entregas. Eles começam o serviço nas proximidades da casa do dono da conta – amigo ou parente. Assim que o aplicativo solicita a confirmação de identidade, é só pedalar até lá e pedir a foto.
“Esse amigo morava na mesma comunidade. Eu fazia a primeira entrega, aqui perto mesmo, e voltava. Aí ele fazia a ‘facial’, e eu podia fazer a entrega o restante do dia”, conta um dos entrevistados, ouvido sob condição de anonimato.
![(Imagem: Reprodução / Redes Sociais)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-07-073335.png)
Esses relatos encontram eco nos vídeos no Youtube e TikTok. “Eu conheço pessoas que vão em casa e voltam com a ‘facial’ da pessoa que está com a conta e depois volta a trabalhar. Até hoje não foi pego”, diz um dos vídeos que foi removido pelo TikTok, postado em fevereiro de 2024.
O esquema, porém, não é isento de falhas. Isso porque as empresas podem pedir fotos em horários aleatórios. Nesses casos, a orientação contida em alguns vídeos é encerrar o expediente para não correr o risco de bloqueio.
No Youtube alguns perfis se gabam por conseguir burlar a verificação etária de outra maneira. Em um vídeo com mais de 27 mil visualizações, o autor sugere usar um segundo celular com várias fotos do dono da conta armazenadas: “quando pedia para tirar foto, colocava um celular de frente para o outro, e o aplicativo aceitava”.
![Adolescentes trocam dicas sobre como burlar ferramentas de reconhecimento facial em apps de entrega (Imagem: Reprodução / Redes Sociais)](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-06-113925.png)
Em outra publicação, dessa vez no TikTok, um usuário diz que usou essa técnica com sucesso. “Eu fazia o reconhecimento facial com um vídeo da minha mãe, apontando um celular pro outro. DE VERDADE, nunca deu errado”, diz o post publicado em julho de 2024.
Em nota, o iFood afirma que tem aprimorado suas ferramentas de segurança. “Por outro lado, sabemos que uma prática irregular que pode ocorrer após o cadastro é o aluguel ou empréstimo de contas”, diz em nota. “Para coibir essa fraude, utilizamos checagens periódicas por biometria facial, garantindo que a pessoa que está acessando a conta é, de fato, o titular cadastrado”.
A Rappi também disse implementar mecanismos robustos para verificar a identidade do entregador após o cadastro. Um deles é o envio de um código de verificação cada vez que a pessoa entra na plataforma, além da solicitação de uma foto em tempo real. “Essa imagem é comparada, por meio de um avançado software, com a foto do seu documento de identidade, para garantir a segurança do ecossistema”. Leia as notas enviadas pelas empresas na íntegra.
Luísa Carvalho, do Ministério Público do Trabalho, reconhece que houve um avanço nas medidas de monitoramento das empresas, mas alerta que ainda existem brechas. “As tecnologias e as formas de burlá-las vão evoluindo muito rapidamente, então os mecanismos mais efetivos [de verificação etária] precisam estar sempre em aprimoramento”, finaliza.
Esta reportagem foi realizada com apoio do Instituto Alana
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