A PRF (Polícia Rodoviária Federal) deixou de participar de resgates de trabalhadores em situação análoga à de escravo, como vinha fazendo há mais de 15 anos, desde o segundo governo Lula. Isso é um efeito colateral de uma portaria do Ministério da Justiça e Segurança Pública, de dezembro do ano passado, para limitar a atuação da força policial às suas atribuições originais — que foram expandidas durante o governo Jair Bolsonaro. Com isso, operações deixam de ser realizadas por falta de segurança às equipes que libertam escravizados.
O Ministério da Justiça afirma que um convênio será estabelecido em breve com o Ministério do Trabalho e Emprego para dar continuidade ao apoio. Enquanto isso, organizações da sociedade civil e servidores públicos calculam o prejuízo no combate à escravidão. A Comissão Pastoral da Terra diz que a PRF participou de 25% de todas as operações desse tipo nos últimos 12 anos.
Durante o governo Bolsonaro, a PRF passou a atuar com frequência fora de sua competência principal — por exemplo, participando de operações de enfrentamento ao crime organizado em comunidades pobres, e algumas dessas ações terminaram com denúncias de chacinas. Parte dessas atribuições foram conferidas por portaria pelos ministros da Justiça da gestão anterior.
A portaria 830/2024 tem como objetivo fazer um freio de arrumação. De acordo com posicionamento enviado ao UOL pelo Ministério da Justiça, o artigo 3º da portaria diz que, em situações excepcionais que não se enquadrem nas competências constitucionais da PRF, o ministro pode autorizar ou determinar seu emprego em cooperação com os demais órgãos integrantes do Sistema Único de Segurança Pública.
“No que diz respeito a operações de resgates de trabalhadores escravizados, o Ministério da Justiça e Segurança Pública está em diálogo com o Ministério do Trabalho e Emprego para a elaboração de um acordo de cooperação que se adeque à portaria”, afirmou, em nota.
A reportagem conversou com policiais rodoviários federais que reafirmaram o desejo de continuar participando dos resgates e com auditores fiscais e procuradores do Trabalho que apontam o mesmo. A questão é que empregadores criminosos não esperam a reorganização do governo para escravizar.
Auditores fiscais do trabalho com os quais a coluna conversou apontam que a ausência de policiais rodoviários federais para garantir segurança às equipes já está afetando as fiscalizações. Algumas operações ainda contaram com agentes no começo deste ano, mas, agora, isso acabou.
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Em uma justificativa que circulou entre instituições que atuam no grupo especial de fiscalização móvel, a PRF explicou que a sua direção-geral está “reavaliando os convênios com os demais órgãos, incluindo o Ministério do Trabalho e Emprego, para a realização de operações conjuntas no combate a crimes como o trabalho escravo”.
“Essa medida visa adequar-se à portaria número 830/2024 do ministro e resguardar os policiais da corporação designados para tais ações”, diz a mensagem. Em 12 anos, 25% dos resgates contaram com a PRF.
O grupo móvel é a base do combate à escravidão contemporânea e responsável pela verificação de denúncias e resgates de pessoas. Completa, em maio, 30 anos. É coordenado pelo Ministério do Trabalho ao lado de instituições como Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Polícia Federal, Defensoria Pública da União e, até o final do ano passado, a Polícia Rodoviária Federal.
Organizações da sociedade civil apontam que a Polícia Federal, que tem competência original para atuar no combate a esse crime, não consegue participar de todas as ações de fiscalização do grupo móvel e das Superintendências de Trabalho e Emprego nos estados. Daí, a PRF surgiu para garantir apoio no que diz respeito à segurança.
Frei Xavier Plassat, coordenador nacional da campanha de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, aponta que a ausência da PRF reduz a segurança das equipes, colocando em risco a vida dos servidores públicos.
“Basta conhecer minimamente as condições severas enfrentadas pela fiscalização para ter a certeza de que a presença de uma força policial qualificada é fundamental para a segurança. A Polícia Federal assume parte dessa presença, trazendo sua competência própria de polícia judiciária da União. Mas é longe de ser o suficiente: nos últimos 12 anos, mais de uma em cada quatro fiscalizações contou com o apoio da PRF, sendo que uma proporção igual não contou com qualquer apoio policial”, afirma Plassat.
“A saída da PRF dessa missão deixa a descoberto, no total, a metade das ações. Isso é inaceitável. Será que a lição de Unaí não bastou?”, conclui, citando a Chacina de Unaí, quando quatro servidores do Ministério do Trabalho foram executados a mando dos fazendeiros Antério e Norberto Mânica durante uma fiscalização de rotina no Noroeste de Minas Gerais em 28 de janeiro de 2004.
‘Desbolsonarização’ da PRF
Foram numerosos os casos de polêmicas envolvendo a instituição no governo passado que ensejaram o que, internamente, é descrito como uma “desbolsonarização” da PRF. Por exemplo, em maio de 2022, três policiais rodoviários federais mataram um homem, em Umbaúba (SE), através de uma câmara de gás improvisada em uma viatura durante uma fiscalização de trânsito. Genivaldo de Jesus Santos, negro, 38 anos, desarmado, que dirigia uma motocicleta velha e vivia com uma doença mental, foi trancado em um porta-malas. Então, acionaram uma bomba de gás para lhe fazer companhia, em Umbaúba (SE).
No mesmo mês, a PRF e a Polícia Militar do Rio deflagraram uma operação na Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, para prender chefes do Comando Vermelho e suspeitos de outros estados que estariam escondidos no lugar. Ao final, produziram uma chacina que deixou 23 mortos. Três meses antes, outra operação da PRF e da PM-RJ na Vila Cruzeiro já havia deixado, ao menos, oito mortos, além de fechar escolas e postos de saúde.
Para além das mortes, a Polícia Rodoviária Federal abriu a temporada de ações golpistas ao implementar, sob o comando do ministro Anderson Torres e do diretor-geral Silvinei Vasques, bloqueios em estradas para dificultar que eleitores de locais com alto índice de votos lulistas fossem às urnas no dia do segundo turno. Naquele domingo, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, ameaçou o diretor da PRF de prisão se não liberasse as estradas em 20 minutos.
E, após a eleição, a PRF fez vistas grossas aos protestos de caráter golpista que trancaram rodovias em todo o país após a vitória de Lula, deixando que bloqueios se instalassem. Foi necessário a Justiça Federal emitir uma série de decisões e o próprio STF intervir para a cúpula da corporação se mexer de fato. Um dia antes da eleição, Silvinei Vasques já havia publicado em suas redes sociais um pedido de voto em Bolsonaro.
Quando ministro da Justiça, Flávio Dino afirmou que determinou “a revisão da doutrina e dos manuais de procedimentos da Polícia Rodoviária Federal, para aprimorar tais instrumentos, eliminando eventuais falhas e lacunas”. E Ricardo Lewandowski publicou a portaria para limitar a corporação às suas atribuições originais.
Evitar que a PRF atue fora de suas atribuições é tão importante quanto garantir o resgate de escravizados. A questão é resolver um problema sem deixar o outro descoberto. Ou, em uma analogia mais simples: o desafio é consertar os vagões com o trem em movimento.
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