A NESTLÉ excluiu a Fazenda Vista Alegre, localizada no município mineiro de Patrocínio, de seu programa de qualidade Nespresso AAA, criado para estimular boas práticas socioambientais e prevenir violações de direitos humanos entre fornecedores de café. A decisão ocorreu depois que a Repórter Brasil e a organização de mídia suíça Public Eye informaram a multinacional de que três trabalhadores em condições análogas à escravidão haviam sido resgatados na propriedade durante uma fiscalização do Ministério do Trabalho.
O flagrante de trabalho escravo ocorreu em julho de 2023, quase dois anos antes da Nestlé comunicar o bloqueio do fornecedor. “Após tomar conhecimento dos fatos, reagimos de forma decisiva e excluímos a fazenda do nosso Programa AAA de Qualidade Sustentável até que haja evidências de que a propriedade atenda aos nossos rígidos requisitos”, afirmou a empresa em comunicado.
Segundo a fiscalização do Ministério do Trabalho, os três resgatados não tinham acesso à água potável no campo, dormiam em colchões no chão, em um alojamento que não contava com chuveiro, fogão ou geladeira. Para os auditores fiscais, a conduta do empregador feriu a dignidade dos trabalhadores. Segundo a lei brasileira, submeter trabalhadores a condições degradantes é um dos elementos que caracteriza o emprego de mão de obra análoga à escravidão.
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Um dos resgatados, de 34 anos, relatou à reportagem que o recrutador havia prometido um bom salário para o trabalho na colheita. Chegando ao local, diz ter sido tratado “igual cachorro”. Ele também afirmou que a alimentação dos trabalhadores se limitava a arroz, feijão, pequenos pedaços de salsicha e mortadela. Por segurança, sua identidade será preservada.
O caso da Fazenda Vista Alegre também é mencionado na reportagem “Trabalhadores brasileiros escravizados por fornecedores de café da Nestlé”, publicada nesta quarta (18) pela organização Public Eye. A investigação contou com a colaboração da Repórter Brasil.
Venda de café certificado para a Nestlé
Duas notas fiscais de venda do café colhido na Fazenda Vista Alegre, anexadas no relatório de fiscalização do Ministério do Trabalho, foram acessadas pela Repórter Brasil. Ambas referem-se à aquisição do produto pela unidade de Varginha, em Minas Gerais, da NKG Stockler, empresa do grupo alemão NKG, que é parceira da Nestlé na compra de cafés certificados.
Uma das notas fiscais é referente ao bônus que o produtor Cosmo Damião da Silva, autuado pelo flagrante de trabalho escravo, recebeu por vender seu café com o selo Nespresso AAA. Pela entrega de 12,4 mil kg de café, Damião da Silva ganhou R$ 7,4 mil em bônus.
As notas foram emitidas em fevereiro de 2023, quatro meses antes do flagrante. De acordo com informações prestadas aos auditores fiscais por Michelle Silva, filha de Cosmo e administradora da propriedade, o café colhido no momento da fiscalização ainda não havia sido comercializado, pois a colheita não estava concluída.
Procurada, a NKG Stockler afirmou ter recebido com “grande consternação” informações sobre o caso e ter suspendido o fornecedor no dia 24 de março de 2025, um dia após ser notificada pela Repórter Brasil e Public Eye. “O relacionamento comercial com o fornecedor foi pausado e a fazenda Vista Alegre já não consta na lista de fornecedores ativos”, afirmou Ole Kerbsties, diretor de sustentabilidade da empresa.
Os posicionamentos da NKG Stockler e da Nestlé podem ser lidos na íntegra aqui.
Alojamento precário e descontos ilegais
Ao todo, 21 pessoas trabalhavam na colheita na Fazenda Vista Alegre. Apenas três estavam alojados na propriedade e foram resgatados. Os demais residiam na cidade e se deslocavam diariamente em ônibus fretado pelo próprio arregimentador da mão de obra, com os custos também repassados aos trabalhadores.
No relatório da fiscalização da Fazenda Vista Alegre, os auditores fiscais apontaram que os três trabalhadores dormiam em colchões diretamente sobre o chão, com apenas um pedaço de papelão de proteção. Não havia fogão nem geladeira no alojamento. Sem estrutura para preparar refeições, eram obrigados a comprar comida pronta, pagando R$ 15 por cada almoço ou jantar. Ao final do mês, o gasto com alimentação chegava a R$ 900, descontados semanalmente de seus salários. O recrutador, que também atuava como encarregado do grupo, fazia os descontos.

Ainda segundo o relatório, esse valor de desconto é ilegal. O limite permitido por lei para o desconto com alimentação é de até 25% do salário-mínimo, o que equivaleria a R$ 330 mensais, segundo cálculo dos auditores fiscais. “Esse valor é muito superior ao que poderia ser descontado do empregado rural”, conclui o relatório de fiscalização do Ministério do Trabalho.
O documento também informa que a água consumida na lavoura era levada em garrafas com água da torneira. No campo, não havia acesso a água potável. No alojamento, os trabalhadores não tinham chuveiro elétrico; apenas canos despejavam água fria, mesmo em temperaturas que, nas madrugadas de julho, podem cair abaixo dos 10 graus.
A jornada de trabalho, segundo os fiscais, era realizada por produção. Inicialmente, o grupo recebia R$ 15 por saca colhida, valor depois reajustado para R$ 20. O recrutador recebia 7% de comissão sobre a produção total.
Produtor não entrou na Lista Suja
Pelo flagrante, o proprietário pode ser incluído na Lista Suja do trabalho escravo, cadastro do governo federal que lista empregadores responsabilizados pela prática. A inclusão na Lista Suja ocorre após o encerramento de todos os recursos administrativos, o que já aconteceu no caso de Cosmo Damião.
Segundo resposta da NKG Stockler enviada à Repórter Brasil, o produtor teria ingressado na Justiça com uma ação para tentar anular os autos de infração lavrados pelo Ministério do Trabalho. Em casos em que a Justiça concede um mandato de segurança para impedir antecipadamente a inclusão do nome de um produtor no cadastro, seu nome só é incluído na Lista Suja após a análise judicial.
A reportagem, no entanto, não localizou nenhum processo em nome de Cosmo Damião e não obteve resposta dos advogados do produtor. À Repórter Brasil, a administradora da fazenda, Michelle Silva, limitou-se a informar que responderia por meio de seu advogado, mas não retornou aos contatos feitos. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
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