A foto esquecida do trabalhador amarrado em uma carvoaria do Maranhão e o elo com a Toyota

Relatórios oficiais, notas fiscais e entrevistas revelam a conexão entre um trabalhador agredido em carvoaria do Maranhão e um grupo siderúrgico que já forneceu ferro-gusa a plantas industriais nos Estados Unidos da maior fabricante de carros do mundo: a Toyota
Por Daniel Camargos | Fotos João Laet | Edição Carlos Juliano Barros e Paula Bianchi
 29/09/2025

DO MARANHÃO — Era madrugada quando Davi* voltou ao alojamento da carvoaria onde trabalhava, em Mirador, no interior do Maranhão. Na folga, bebeu em um bar nas proximidades da Terra Indígena Cana Brava e voltou alterado. Derrubou cadeiras, fez barulho, acordou os demais trabalhadores, inclusive o encarregado. 

O que se seguiu foi brutal.

“Ele [o gerente da carvoaria] arriou um murro na cara do rapaz, bateu a cabeça dele contra a pilastra e começou a espancá-lo com um cabo de vassoura”, descreve um trabalhador que afirma ter testemunhado a cena. 

O agressor teria então amarrado as mãos de Davi por trás das costas e o imobilizado diante dos colegas. Depois disso, teria fotografado a vítima e passado a exibir as imagens como prova de autoridade. “Ele dizia que ali era do jeito dele ou não era”, conta a testemunha. 

Os retratos e os depoimentos estão registrados no relatório da Operação nº 216, realizada por auditores fiscais do Ministério do Trabalho em julho de 2021, na área rural de Mirador. Ao fim da inspeção, 11 trabalhadores foram resgatados de condições análogas às de escravo. 

Depois daquele episódio, o gerente teria inclusive percorrido outras carvoarias, “mostrando as imagens e intimidando os trabalhadores com palavras ameaçadoras”, de acordo com declarações de outros funcionários citadas no relatório dos auditores fiscais.  

O responsável pelo negócio, segundo o MTE, seria Sirlei Martins Amaral, o “Ferinha” — incluído diversas vezes na chamada Lista Suja do trabalho escravo, cadastro oficial do governo federal que torna públicos os dados de empregadores responsabilizados por auditores fiscais.

A cena de violência, o clima de medo e a rotina de exaustão nos fornos de carvão, narrados no relatório dos fiscais do governo federal, revelam mais do que violência pontual. Fazem parte de uma cadeia produtiva conectada ao mercado internacional e à maior fabricante de automóveis do mundo: a Toyota. 

A montadora japonesa vendeu 10,8 milhões de carros em 2024, uma leve queda em relação ao ano anterior, mas suficiente para manter pelo quinto ano consecutivo o título de maior fabricante de automóveis do mundo, superando a alemã Volkswagen. 

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Entre as carvoarias de Ferinha e a multinacional japonesa está a Viena, siderúrgica com uma planta industrial em Sete Lagoas (MG) e outra em Açailândia, no oeste do Maranhão. A empresa é a maior compradora de carvão vegetal da região — inclusive o produzido no estabelecimento onde ocorreu o caso registrado em fotografia. A denúncia da agressão foi formalmente encaminhada à polícia e ao Ministério Público, mas não chegou a ser investigada.

A Repórter Brasil percorreu essa parte da Amazônia para contar a história de Davi, o trabalhador fotografado espancado e amarrado, e ligar os pontos das conexões comerciais internacionais reveladas pela imagem esquecida em um relatório de 177 páginas.

Carvoaria na área rural de Grajaú, no Maranhão. Reportagem mostra a história de um trabalhador amarrado e espancado em uma carvoaria, que fornece carvão para a Siderúrgica Viena, em Açailândia. Casos de trabalho análogo à escravidão são recorrentes entre os fornecedores da Viena, que é investigada pelo Ministério Público do Trabalho. A Viena é uma das fornecedores de gusa para indústrias da Europa e Estados Unidos, incluindo uma fábrica da Toyota nos EUA. Foto de João Laet / Repórter Brasil
Carvoaria na área rural de Grajaú, no Maranhão. Trabalhadores são cotidianamente expostos a altas temperaturas e a contato com fuligem, em jornadas extenuantes (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

Siderúrgica brasileira exportou ferro-gusa para a Toyota nos Estados Unidos

Ao pisar em uma carvoaria, no centro-sul do Maranhão, em poucos minutos, os olhos arderam com a fumaça. A fuligem cobria o chão e os rostos dos trabalhadores. Um deles, com o corpo enegrecido pelo carvão, definiu: “É trabalho duro. Mas é o que tem por aqui”.

O carvão produzido nos empreendimentos associados a Ferinha abasteciam a Viena Siderúrgica. Situada no polo industrial de Açailândia, a unidade é uma das 40 maiores do Brasil. A usina utiliza o carvão vegetal para transformar o minério de ferro em ferro-gusa, uma liga metálica com várias aplicações, inclusive na indústria automotiva. Segundo a própria Viena, 80% da produção da empresa têm como destino o mercado norte-americano.

Foto da siderurgica Viena, em Açailândia. Reportagem mostra a história de um trabalhador amarrado e espancado em uma carvoaria, que fornece carvão para a Siderúrgica Viena, em Açailândia. Casos de trabalho análogo à escravidão são recorrentes entre os fornecedores da Viena, que é investigada pelo Ministério Público do Trabalho. A Viena é uma das fornecedores de gusa para indústrias da Europa e Estados Unidos, incluindo uma fábrica da Toyota nos EUA. Foto de João Laet / Repórter Brasil
Vista aérea da siderúrgica Viena, em Açailândia, Maranhão (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

A Repórter Brasil consultou informações oficiais alfandegárias e portuárias. Os dados mostram que a Toyota dos Estados Unidos aparece entre os clientes da Viena. 

Ao menos quatro embarques, totalizando 8 mil toneladas de ferro-gusa produzidos pela siderúrgica, foram consignados à montadora, de fevereiro a setembro de 2022. As vendas ocorreram no ano seguinte ao episódio fotografado na carvoaria.  

A Repórter Brasil questionou a Viena sobre a origem das cargas exportadas para a Toyota dos Estados Unidos: Sete Lagoas ou Açailândia. Por meio de sua assessoria de imprensa, a empresa disse que não poderia revelar a informação porque “os acordos comerciais da siderúrgica com clientes ou ex-clientes são confidenciais”.

Mapa do Ferro-gusa na Amazônia
(Arte: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

O que dizem os envolvidos no caso

Em nota, a assessoria da montadora japonesa no Brasil diz que “suas operações são independentes de outras unidades da Toyota ao redor do mundo e, portanto, não possui ingerência sobre o quadro de fornecedores da Toyota Motor North America (TMNA)”. Procurada diversas vezes, a Toyota dos Estados Unidos chegou a pedir uma extensão de prazo para se manifestar, mas não respondeu às perguntas enviadas pela Repórter Brasil.

Já a Viena Siderúrgica afirma que “repudia qualquer prática de exploração de trabalhadores e não compactua com fornecedores que descumpram a legislação”. A empresa destaca que a relação comercial com unidades ligadas a Sirlei Martins Amaral ocorreu “apenas com plantas licenciadas pelos órgãos competentes” e que, tão logo tomou conhecimento das fiscalizações, descredenciou os fornecedores. 

Também em nota, a defesa de Sirlei Martins Amaral, o Ferinha, sustenta que o cliente “nunca compactuou com tais práticas” e que “não há qualquer condenação criminal contra o Sr. Amaral”. O texto informa ainda que a carvoaria autuada pelos auditores fiscais, onde o trabalhador foi espancado e amarrado, teria sido desativada. Outros trechos da nota dos advogados serão citados ao longo da reportagem. 

Os posicionamentos da Toyota, da Viena e dos advogados de Ferinha podem ser lidos na íntegra neste link.

Sediada em Açailândia, a siderúrgica Viena afirma ter descredenciada o fornecedor de carvão autuado por fiscais do Ministério do Trabalho (Foto: João Laet/Repórter Brasil)
Sediada em Açailândia, a siderúrgica Viena afirma ter descredenciado o fornecedor de carvão autuado por fiscais do Ministério do Trabalho (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

MPT discute Termo de Ajustamento de Conduta com siderúrgica

A estrutura montada por Ferinha para operar suas carvoarias no Maranhão era deliberadamente complexa, de acordo com um relatório do MPT (Ministério Público do Trabalho).

Várias empresas funcionariam em sincronia. Elas seriam diferentes apenas no papel: cada uma com CNPJ e endereço próprios. Na prática, porém, contariam com os mesmos trabalhadores, os mesmos encarregados, a mesma madeira e os mesmos fornos. 

“Constatei, por meio dos relatos de trabalhadores e encarregados, que toda a produção do Ferinha era destinada à siderúrgica Viena”, afirma o procurador do MPT, Luciano Aragão Santos.

Santos conduziu uma investigação sobre trabalho análogo ao de escravo em carvoarias no Maranhão que resultou na abertura de um inquérito contra a Viena. Além dos depoimentos, o caso reúne notas fiscais e recibos que comprovam a relação comercial entre as carvoarias e a empresa.

Minério transportado por ferrovia da Vale é misturado com carvão vegetal para dar origem ao ferro-gusa, liga metálica com diversas aplicações (Foto: João Laet/Repórter Brasil)
Minério transportado por ferrovia da Vale é misturado com carvão vegetal para dar origem ao ferro-gusa, liga metálica com diversas aplicações (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

Segundo o procurador, a Viena exercia controle sobre a qualidade do carvão produzido e também fixava os preços de compra. Santos participou de diversas forças-tarefa em propriedades ligadas a Ferinha, onde teria constatado trabalhadores submetidos a jornadas exaustivas e condições degradantes — o que, segundo o artigo 149 do Código Penal brasileiro, pode caracterizar uma situação de trabalho análogo à escravidão.

O Ministério Público do Trabalho propôs à siderúrgica um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), em fase final de negociação. Entre as medidas sugeridas no acordo, está a adoção de diligência em direitos humanos — processo pelo qual a empresa deve identificar, prevenir e corrigir riscos de violações, como o trabalho escravo, em sua cadeia produtiva. O TAC também prevê a reparação econômica das vítimas já identificadas, além da implementação de mecanismos eficazes de rastreamento da produção de carvão.

Apesar de não submeterem seus próprios empregados diretos a violações trabalhistas, as siderúrgicas “lucram e tiram proveito da superexploração do trabalho humano em carvoarias que produzem os insumos necessários à sua atividade”, escreveu Santos no relatório de investigação – parte do projeto Reação em Cadeia do MPT. 

Ferinha é um nome conhecido entre auditores fiscais e procuradores do trabalho. Em pelo menos sete operações desde 2015, ele aparece vinculado a carvoarias denunciadas por trabalho escravo, ausência de equipamentos de proteção individual, alojamentos insalubres e jornadas exaustivas.

Diante da reincidência, ficou preso menos de um mês, a pedido do Ministério Público Federal, em novembro de 2022. Sua defesa conseguiu converter a prisão preventiva em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Quatro meses depois, o juiz federal de Balsas (MA) Cláudio Cezar Cavalcantes revogou as medidas e determinou a retirada do equipamento. O processo foi arquivado em agosto de 2023.  

Ao todo, quatro empresas das quais Ferinha foi sócio acumulam 19 autuações por infrações ambientais, aplicadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente). Somam R$ 37,7 milhões em multas, relacionadas a desmatamento ilegal e uso de madeira nativa sem licença. 

Em nota, a defesa de Ferinha afirma que a prisão preventiva de 2022 foi revogada e que o processo acabou arquivado “justamente por inexistirem provas que sustentam a acusação”. Também argumenta que as multas ambientais aplicadas pelo Ibama estão em fase recursal e não configuram condenações definitivas. 

Ferinha continua com dois CNPJs de carvoarias ativos: uma em Araguatins (TO) e outra em Grajaú (MA), segundo a Receita Federal. Outras seis carvoarias constam da base de dados da Receita, mas são consideradas inaptas. 

Paisagem da cidade de Açailândia, próximo a comunidade Pequiá de Baixo. Reportagem mostra a história de um trabalhador amarrado e espancado em uma carvoaria, que fornece carvão para a Siderúrgica Viena, em Açailândia. Casos de trabalho análogo à escravidão são recorrentes entre os fornecedores da Viena, que é investigada pelo Ministério Público do Trabalho. A Viena é uma das fornecedores de gusa para indústrias da Europa e Estados Unidos, incluindo uma fábrica da Toyota nos EUA. Foto de João Laet / Repórter Brasil
Quatro empresas das quais Ferinha foi sócio acumulam 19 autuações e R$ 37,7 milhões em multas por infrações ambientais, aplicadas pelo Ibama (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

Ferinha e suas empresas já foram incluídos na chamada Lista Suja do trabalho escravo em pelo menos cinco oportunidades — a última foi em abril deste ano. Os dados dos empregadores são incluídos após defesa em duas instâncias administrativas. Apesar de não gerar bloqueios comerciais ou financeiros de forma automática, o cadastro do governo federal tem sido usado por bancos e empresas para fins de gerenciamento de risco. 

Os advogados afirmam que a inclusão de Ferinha na Lista Suja está sendo contestada na Justiça, “pois viola direitos fundamentais, notadamente o devido processo legal, a ampla defesa e a presunção de inocência”.

‘A siderúrgica dita as regras’

No papel, a Siderúrgica Viena é somente uma compradora do carvão vegetal. Mas os relatórios de fiscalização e a investigação do Ministério Público do Trabalho apontam para outra direção: a siderúrgica agiria como se fosse a dona de fato das carvoarias. 

Segundo o MPT, técnicos da usina visitam os fornos, determinam o padrão de qualidade do carvão, aplicam multas em caso de “munha” (pó) excessiva e cobram metas de produtividade. Quando algo foge ao padrão, enviam notificações diretamente a Ferinha. “Eles mandam em tudo. Até no jeito de empilhar a tora”, relatou um encarregado ouvido pela fiscalização.

Segundo relatório do MPT, Viena exercia controle sobre a qualidade do carvão produzido e também fixava os preços de compra (Foto: João Laet/Repórter Brasil)
Segundo relatório do MPT, Viena exercia controle sobre a qualidade do carvão produzido e também fixava os preços de compra (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

Notas fiscais obtidas pela fiscalização e incluídas no relatório do MPT comprovam a ligação direta entre os fornos de Ferinha e a linha de produção da Viena. “Em todas as carvoarias em que eu fiz resgate (de trabalhadores em condições análogas às de escravo), a Viena está na ponta da cadeia”, afirma o auditor-fiscal do Trabalho, Ivano Sampaio. 

O ferro-gusa produzido pela Viena tem como insumo o minério de ferro extraído das minas da Vale em Carajás, no sudeste do Pará. A Viena, assim como todas as plantas industriais do pólo siderúrgico da região, também depende da estrada de ferro e do porto de São Luís (MA), ambos operados pela mineradora. 

Em 2007, a companhia chegou a suspender temporariamente o fornecimento de minério a quatro usinas por descumprimento de normas ambientais e trabalhistas, mas a Viena não foi afetada. 

Procurada, a assessoria de imprensa da Vale respondeu em nota que “as relações comerciais estabelecidas entre as partes são regidas por cláusulas contratuais que contemplam claros compromissos no que se refere aos direitos humanos”. O texto afirma ainda que “o descumprimento comprovado de tais obrigações resultará na rescisão motivada dos contratos”. Leia aqui a íntegra da nota da Vale.

Reportagem mostra a história de um trabalhador amarrado e espancado em uma carvoaria, que fornece carvão para a Siderúrgica Viena, em Açailândia. Casos de trabalho análogo à escravidão são recorrentes entre os fornecedores da Viena, que é investigada pelo Ministério Público do Trabalho. A Viena é uma das fornecedores de gusa para indústrias da Europa e Estados Unidos, incluindo uma fábrica da Toyota nos EUA. Foto de João Laet / Repórter Brasil
Ferro-gusa produzido pela Viena no Maranhão tem como insumo o minério extraído das minas da Vale em Carajás, no Pará (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

‘À noite tem perigo de cobra pegar’

A Repórter Brasil esteve em duas carvoarias no centro-sul do Maranhão, região onde ficava a unidade de Ferinha em que foi tirada a foto de Davi. A estrada de terra estreita e esburacada dá acesso a áreas isoladas no meio da mata, onde baterias de fornos circulares queimam sem parar. 

O cheiro de carvão impregna o ar. A fuligem cobre o chão e todas as estruturas. Os trabalhadores que operam os fornos têm os rostos cobertos de poeira preta. Usam botas, capacetes mal ajambrados nas cabeças, calças rasgadas e camisas molhadas de suor. Dormem em alojamentos improvisados, a poucos metros das chamas e perto da fumaça e da fuligem.

A produção segue o mesmo ciclo: toras de madeira nativa, cortadas em áreas abertas para pastagem ou plantio de soja, são transportadas em carroças (chamadas de cambonas) até os fornos. Empilhadas à mão, são queimadas e depois resfriadas, peneiradas e ensacadas. Cada trabalhador é responsável por diversas etapas. 

“O maior risco é a fumaça nos olhos da gente. À noite também tem perigo de cobra pegar. Eu vou sempre com uma lanternazinha, mas é um perigo”, conta José Vagner Coelho Souza, de 53 anos, um dos milhares de trabalhadores já resgatados por auditores fiscais do governo federal de condições análogas às de escravo no Maranhão.

Souza é morador de um distrito na zona rural de Grajaú. Foi encontrado pela fiscalização trabalhando em jornada exaustiva, sem descanso. Começava o turno antes das cinco da manhã e seguia até depois da meia-noite, cuidando dos fornos. “A gente trabalha na esperança de juntar um dinheirinho, mas é só engano”, afirma. 

A fala de Souza ecoa nas estatísticas. O Maranhão é o terceiro estado com maior número de operações de resgate de trabalhadores de condições análogas às de escravo no Brasil — foram 251 fiscalizações desde 1995, somando 3.799 pessoas resgatadas.

“O maior risco é a fumaça nos olhos da gente. À noite também tem perigo de cobra pegar. Eu vou sempre com uma lanternazinha, mas é um perigo”, diz um trabalhador de uma carvoaria no Maranhão (Foto: João Laet/Repórter Brasil)
“O maior risco é a fumaça nos olhos da gente”, diz um trabalhador de uma carvoaria no Maranhão (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

Boa parte dos casos está ligado à cadeia do carvão vegetal. Os fornos seguem sendo reerguidos, ainda que as empresas mudem de nome. Os trabalhadores, muitas vezes os mesmos, voltam poucos meses depois do resgate.

“O que a gente consegue perceber é que, geralmente, as pessoas que são colocadas nessa posição, ou que são submetidas a essas condições, são pessoas que vêm de uma vulnerabilidade social muito grande”, afirma​ a advogada Morgana Meirelles, do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Carmem Bascarán, em Açailândia.

“É um ciclo perverso. São resgatados e, meses depois, o mesmo trabalhador retorna. Sem educação, sem assistência, sem inserção produtiva. É a omissão do Estado que empurra de volta para a mesma exploração”, complementa. 

A reincidência também aflige o agente da CPT (Comissão Pastoral da Terra) Raniere da Conceição. “As comunidades não têm garantia de permanência no campo. Sem política fundiária, migram ou acabam aceitando essas condições degradantes. Isso não é escolha. É ausência de opção”​, avalia. 

A informalidade é comum. A cada denúncia, parte dos trabalhadores some no mato. Em uma das operações, um trabalhador relatou ter sido orientado pelo chefe a se esconder ao ver o carro da fiscalização: “Mandou a gente correr e voltar só depois que eles fossem embora.”

“A cadeia é global. O impacto é local. E quem consome esse produto também precisa entender que está comprando algo produzido com sofrimento e violação de direitos”, afirma o coordenador da ONG Justiça nos Trilhos, Mikael Carvalho, que vive em Açailândia.

Ferrovia de Carajás, que transporta o ferro gusa até o porto do Maranhão. Reportagem mostra a história de um trabalhador amarrado e espancado em uma carvoaria, que fornece carvão para a Siderúrgica Viena, em Açailândia. Casos de trabalho análogo à escravidão são recorrentes entre os fornecedores da Viena, que é investigada pelo Ministério Público do Trabalho. A Viena é uma das fornecedores de gusa para indústrias da Europa e Estados Unidos, incluindo uma fábrica da Toyota nos EUA. Foto de João Laet / Repórter Brasil
Estrada de Ferro Carajás, da Vale, transporta o ferro-gusa até o porto de São Luís, no Maranhão, de onde é exportado para diversos países (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

“Olha isso… A situação que fizeram com meu filho”

A Repórter Brasil localizou os pais de Davi, o trabalhador espancado e fotografado, em um sítio na zona rural de Grajaú. Vivem em uma casa simples de madeira, cercada por roça e árvores, às margens do rio Grajaú. O pai carrega no rosto os traços de quem também foi carbonizador. Trabalhou por dezoito meses em fornos, como aqueles operados pelo filho. Conhece o calor da queima do carvão.

“Ele nunca falou muito. Mas eu sou ciente do que aconteceu. Ele tem medo de contar”, diz. O filho, segundo ele, ainda trabalha em carvoarias da região. Recusou-se a conceder entrevista. Disse para os pais que prefere esquecer.

A mãe soube da agressão, mas nunca tinha visto a imagem. Quando a reportagem mostrou a foto de Davi amarrado pelas costas, ela silenciou por segundos antes de falar: “Olha isso… A situação que fizeram com meu filho”, disse com a voz embargada pelo choro.

MPT propôs um Termo Ajustamento de Conduta à Viena. Medidas preveem que a empresa deve identificar, prevenir e corrigir riscos de violações em fornecedores (Foto: João Laet/Repórter Brasil)
MPT propôs um Termo Ajustamento de Conduta à Viena. Medidas preveem que a empresa identifique, previna e corrija riscos de violações em fornecedores (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

Os pais tentaram convencer o filho a deixar o trabalho nas carvoarias. Ofereceram moradia, apoio, uma nova tentativa. Mas ele preferiu ficar. O medo, dizem, é maior que a vontade. “Ele está calado. Mas, se quiser correr atrás, eu apoio. É meu filho”, diz o pai.

A agressão a Davi nunca foi formalmente denunciada à Justiça e ficou registrada apenas no relatório da fiscalização trabalhista. A empresa não comunicou o fato. O encarregado foi afastado, mas a carvoaria seguiu produzindo. 

A Viena continuou vendendo ferro-gusa para a maior fabricante de automóveis do mundo, a Toyota. 

Quatro anos depois da agressão fotografada, Davi voltou a ser resgatado em uma operação do Ministério do Trabalho — desta vez entre 49 trabalhadores em condições análogas à de escravidão em outra carvoaria, no município de Benedito Leite, sul do Maranhão.

*o nome verdadeiro do trabalhador foi ocultado para preservar sua identidade

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Fotos de trabalhador amarrado, após espancamento em carvoaria no Maranhão, foram tiradas pelo próprio encarregado da unidade (Foto: Reprodução/MTE)
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