Empresa que driblou Lista Suja fornece para Philip Morris e Syngenta

Autuada por trabalho escravo, Santa Colomba Agropecuária adiou entrada na Lista Suja após ministro do Trabalho assumir para si decisão sobre o caso, em ação vista como interferência política na área técnica; localizada no oeste baiano, a empresa é fornecedora de multinacionais do agronegócio
Por Daniela Penha | Edição Poliana Dallabrida
 10/10/2025

A SANTA COLOMBA Agropecuária, que entrou com pedido de avocação ministerial para barrar sua entrada na Lista Suja do trabalho escravo, fornece matérias-primas para multinacionais do agronegócio, como a Syngenta Seeds e a Philip Morris. 

Produtora de grãos e sementes, algodão, cacau e tabaco no oeste baiano, a empresa foi autuada pela submissão de um trabalhador a condições análogas à de escravo, em novembro de 2023. A autuação ocorreu após um empregado da Santa Colomba denunciar ter sido torturado por vigilantes que faziam a guarda da Fazenda Karitel, polo de produção da empresa.

De acordo com o relatório de fiscalização, obtido pela reportagem, o trabalhador foi algemado, trancado em um quarto escuro e agredido pelos vigilantes. Após a inspeção no local e análise de documentos, como inquérito policial e laudo do exame de lesões corporais, a equipe técnica do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) autuou a empresa pela submissão do trabalhador a condições degradantes, um dos elementos que caracterizam o trabalho escravo no Brasil.

Conforme a Repórter Brasil noticiou, após recurso apresentado pelo advogado João Paulo Cunha, quadro importante do PT no primeiro governo Lula e ex-presidente da Câmara dos Deputados entre 2003 e 2005, o ministro do Trabalho em exercício acatou pedido da empresa e assumiu para si (avocou, no termo técnico) a competência de decidir sobre a autuação da Santa Colomba. 

Decisão que pode beneficiar empresa autuada por trabalho escravo foi tomada pelo ministro do Trabalho substituto Francisco Macena da Silva, na foto ao lado do ministro titular da pasta, Luiz Marinho (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Decisão que pode beneficiar empresa autuada por trabalho escravo foi tomada pelo ministro do Trabalho substituto Francisco Macena da Silva, na foto ao lado do ministro titular da pasta, Luiz Marinho (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O recurso mantém a empresa fora do cadastro de empregadores responsabilizados por exploração de mão de obra escrava, a chamada Lista Suja do trabalho escravo, até a decisão ministerial. A última atualização do cadastro ocorreu na segunda-feira (6), com inclusão de 159 novos nomes.

Contrato de exclusividade com gigante do tabaco

Com a Philip Morris, dona das marcas de cigarro Marlboro e L&M, a Santa Colomba mantém, desde pelo menos 2021,  contratos para o fornecimento de tabaco. Essas informações são descritas em relatórios financeiros da empresa, obtidos pela Repórter Brasil. Em 2023, um contrato de exclusividade da Santa Colomba com a Philip Morris representou  quase metade (49%) do total faturado pela companhia baiana.

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O contrato com a multinacional do tabaco também serviu como lastro para um CRA (Certificado de Recebíveis do Agronegócio) da Santa Colomba lançado ao mercado em 2019. Nesse mecanismo, a agropecuária emite títulos para investidores, que compram os CRAs, antecipando pagamentos à empresa a partir da garantia fornecida pelos seus recebíveis. Nesse caso, um “Contrato para Plantio, Colheita, Cura, Compra e Venda de Tabaco e Outras Avenças” celebrado entre a Santa Colomba e a Philip Morris entrou como garantia, conforme documentos do mercado financeiro aos quais a Repórter Brasil teve acesso.

Em outubro de 2024, a Repórter Brasil já havia falado sobre essa relação de fornecimento, após o Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos) da Bahia identificar uma espécie de “cemitério de animais” silvestres na Fazenda Karitel. A propriedade foi notificada por órgãos ambientais por não proteger adequadamente seus canais de irrigação e colocar em risco a fauna do Parque Grande Sertão Veredas, berçário de espécies do Cerrado, localizado no entorno da propriedade. 

Entre as políticas socioambientais divulgadas pela Philip Morris está a  adoção de medidas para mitigação de riscos de exploração de trabalho em suas cadeias de fornecimento e a exclusão de fornecedores que integram a Lista Suja. 

Em respostas enviadas à Repórter Brasil na última quarta-feira (8), a Santa Colomba afirmou acompanhar o processo administrativo no MTE e destaca que “decisões sobre o mesmo episódio tomadas pelo Ministério Público do Trabalho e pela Justiça do Trabalho, bem como as conclusões das investigações da Polícia Civil, comprovam que o caso não diz respeito a práticas de trabalho análogo à escravidão”. A empresa reafirmou seu “compromisso absoluto com direitos humanos, sustentabilidade e responsabilidade social” e disse que o caso foi uma “ocorrência pontual envolvendo um funcionário terceirizado e um trabalhador”. Procurada novamente, a Santa Colomba disse que não comentaria sobre relações comerciais. 

A Philip Morris não respondeu aos questionamentos da reportagem até o fechamento deste texto. O espaço segue aberto para manifestação futuras.

Sementes para multinacional

A Santa Colomba também possui hectares reservados para a multiplicação de sementes de milho e soja das empresas Syngenta Seeds e Boa Safra, duas das principais empresas na produção de sementes no Brasil e no mundo. Depois de cultivadas ali, as sementes são distribuídas para clientes das empresas de sementes.

A parceria comercial da Santa Colomba com as duas empresas ocorre desde pelo menos 2021, segundo balanço financeiro da empresa, obtido pela reportagem.

Com sede na Suíça, a Syngenta aponta em seu Código de Conduta para Fornecedores que seus parceiros de negócios devem tomar medidas para “assegurar que não participem direta ou indiretamente ou se beneficiem de qualquer forma de trabalho forçado ou escravo”, como pela “coerção física ou mental”.

No entanto, ao ser questionada pela Repórter Brasil, a Syngenta reforçou a inclusão na Lista Suja como principal critério de exclusão de um fornecedor. 

A multinacional informou que não tinha conhecimento sobre a autuação da empresa, já que ela ainda não consta na Lista Suja, e que “caso está sendo devidamente monitorado para que possamos agir conforme os desdobramentos”. Também afirmou que “não aceitará o fornecimento de nenhum produtor elencado na “Lista Suja” do Ministério do Trabalho”. A resposta da Syngenta pode ser lida na íntegra aqui

A Boa Safra, que tem unidades de beneficiamento e centros de distribuições em oito estados brasileiros, afirma em seu Código de Ética que “repudia trabalho análogo ao escravo ou degradante, trabalho infantil, práticas de concorrência desleal e outras práticas contrárias aos princípios estabelecidos neste Código, em qualquer etapa de sua cadeia de valor”. 

Procurada, a empresa afirmou à reportagem que desconhecia a situação envolvendo e que “condena qualquer situação de desrespeito à vida e não compactua com situações fora dos padrões éticos e legais de trabalho”. A Boa Safra, no entanto, não esclareceu se adotará alguma medida concreta sobre o caso envolvendo a Santa Colomba.

A suíça Barry Callebaut, uma das maiores fabricantes globais de chocolates, é outra empresa que teria aberto negociações para formar uma parceria com a Santa Colomba, de acordo com reportagem publicada pela agência de notícias Reuters em abril. A multinacional não confirmou o negócio na ocasião. Procurada agora pela Repórter Brasil, também não se manifestou sobre o assunto.

Empresas precisam se responsabilizar por cadeia, analisa especialista

“Quando as empresas adotam medidas de devida diligência, elas são atores de combate à desigualdade”, avalia Ravenna Alves, coordenadora de Justiça Rural e Desenvolvimento da organização Oxfam Brasil. Devida diligência é um termo que se refere ao processo de identificar, prevenir, mitigar e remediar potenciais impactos nas quais uma empresa pode causar ou contribuir. “Quando temos essa cadeia de fornecimento na qual as multinacionais não se responsabilizam com a rastreabilidade e com a transparência,  há o aumento das desigualdades”. 

No Brasil, a falta de um marco regulatório para a devida diligência empresarial dificulta esse caminho, pondera. “Uma vez que você conhece os fornecedores, você força também esses fornecedores a agirem com essa devida diligência, a respeitarem as leis trabalhistas, a se atentarem às leis ambientais e com o social”, afirma. 

Avocação já havia barrado entrada da JBS Aves na Lista Suja

Em menos de um mês, foi a segunda vez que a chefia do MTE “avocou” a decisão sobre a entrada de uma empresa na Lista Suja. Em setembro, Marinho já havia suspendido a inserção da empresa JBS Aves, do grupo JBS, no cadastro.

Vista como interferência política na área técnica do Ministério, a medida do ministro provocou um pedido coletivo de desligamento feito por 19 servidores da pasta que atuavam em cargos de coordenação regional de combate ao trabalho escravo.

Trabalhador da MRJ em granja: caso em empresa terceirizada levou JBS Aves a ser autuada por trabalho escravo (Foto: MTE)
Trabalhador da MRJ em granja: caso em empresa terceirizada levou JBS Aves a ser autuada por trabalho escravo (Foto: MTE)

Até setembro, antes do caso da JBS Aves, uma avocação por um ministro do Trabalho nunca havia acontecido desde novembro de 2003, quando a Lista Suja foi criada. O período inclui os governos 1 e 2 de Lula, 1 e 2 de Dilma Rousseff, além das gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

Em nota enviada à Repórter Brasil na última quarta-feira (8) sobre o caso da Santa Colomba, o MTE informou que “o ministro avocou o processo a pedido da empresa”, em conformidade com a legislação trabalhista, e que “a empresa alega que não foram considerados os recursos apresentados e aponta inconsistências no auto de infração”. 

A pasta também afirmou que “a avocação é um instrumento previsto em lei, não possui caráter inédito ou exclusivo e tampouco se fundamenta no porte da empresa. Trata-se da análise, pela autoridade competente, de atos administrativos sob sua responsabilidade, com a prerrogativa legal de revê-los”. A resposta completa do órgão pode ser lida aqui.

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Localizada no oeste baiano, a Santa Colomba Agropecuária possui contrato de exclusividade com a gigante do tabaco Philip Morris. Na foto, fumo seca em estufa (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
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