Governo mantém empresa fora da Lista Suja após recurso de João Paulo Cunha

Presidente da Câmara dos Deputados no primeiro governo Lula e condenado no mensalão, o ex-metalúrgico e agora advogado João Paulo Cunha assina recurso que barrou a entrada da Santa Colomba Agropecuária na chamada Lista Suja do trabalho escravo
Por Carlos Juliano Barros, Igor Ojeda e Daniela Penha
 08/10/2025

QUADRO importante do PT no primeiro governo Lula e ex-presidente da Câmara dos Deputados entre 2003 e 2005, o advogado João Paulo Cunha assina um recurso enviado à chefia do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) para suspender a entrada da Santa Colomba Agropecuária na chamada Lista Suja do Trabalho Escravo.

Na última quinta-feira (2), Francisco Macena da Silva — secretário executivo da pasta, atuando como ministro substituto — acolheu o pedido da empresa e assumiu para si a competência de decidir sobre uma autuação de novembro de 2023 a uma propriedade da Santa Colomba em Cocos (BA). 

Na prática, a “avocação” (como é chamada tecnicamente a medida) suspende a inserção da companhia no cadastro do governo federal, assim como já havia acontecido com a JBS Aves em setembro.

Criada em 2003, a Lista Suja torna públicos os dados de empregadores responsabilizados por trabalho análogo ao de escravo. A última atualização ocorreu na segunda-feira (6), com inclusão de 159 novos nomes. Elogiada pela ONU, a relação é usada por bancos e empresas em suas análises de risco.

Decisão que pode beneficiar empresa autuada por trabalho escravo foi tomada pelo ministro do Trabalho substituto Francisco Macena da Silva, na foto ao lado do ministro titular da pasta, Luiz Marinho (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Decisão que pode beneficiar empresa autuada por trabalho escravo foi tomada pelo ministro do Trabalho substituto Francisco Macena da Silva, na foto ao lado do ministro titular da pasta, Luiz Marinho (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Quem é João Paulo Cunha?

Assim como Luiz Marinho, atual ministro do Trabalho, João Paulo Cunha é ex-metalúrgico. Eleito deputado federal por São Paulo, presidiu a Câmara dos Deputados no primeiro mandato de Lula. 

Cunha chegou a ser condenado no processo do mensalão e preso em 2014. Enquanto cumpria pena em Brasília, cursou Direito. O Cunha & Fonseca, banca que leva seu nome e responde pelo recurso apresentado pela Santa Colomba, tem escritórios na capital federal e em São Paulo (SP).  

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Afastado da política partidária, o ex-presidente da Câmara mantém influência nos bastidores políticos de Brasília. Em julho, durante evento em Osasco (SP) em que Cunha estava na plateia, Lula pediu a ele, em tom de brincadeira, que voltasse à vida pública.

“João Paulo, você trate de voltar para a política. Pare de ganhar dinheiro como advogado em Brasília, pô! Pare de querer ganhar dinheiro em Brasília, venha para a porta de fábrica fazer comício”, disse o presidente.

Em nota à Repórter Brasil, a assessoria de comunicação do Cunha & Fonseca afirma que “a atuação do escritório e de seu representante pauta-se nos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, buscando garantir que todos os atos administrativos observem o devido processo legal e a legalidade estrita”.

O posicionamento sustenta ainda que “a conduta do Ministro de Estado do Trabalho e de sua assessoria técnica está plenamente inserida nos limites legais e administrativos, sem qualquer conotação política ou desvio de finalidade”. Leia aqui a íntegra.

Também em nota, o MTE não respondeu se a pasta tinha conhecimento sobre a assinatura de Cunha no recurso apresentado pela Santa Colomba. O texto informa que “o ministro avocou o processo a pedido da empresa”, em conformidade com a legislação trabalhista, e que a companhia “alega que não foram considerados os recursos apresentados e aponta inconsistências no auto de infração”.

A pasta também afirmou que “a avocação é um instrumento previsto em lei, não possui caráter inédito ou exclusivo e tampouco se fundamenta no porte da empresa. Trata-se da análise, pela autoridade competente, de atos administrativos sob sua responsabilidade, com a prerrogativa legal de revê-los”. Leia a resposta completa do órgão aqui.

A Santa Colomba, por sua vez, informou que a escolha de sua representação jurídica foi feita de maneira institucional e com base em critérios estritamente técnicos. “O escritório Cunha & Fonseca Advogados possui experiência jurídica e competência reconhecida, tendo sido contratado por essas qualidades e pelo profissionalismo na condução das causas sob sua responsabilidade”, diz nota emitida pela empresa.

“A decisão segue o compromisso da empresa de assegurar defesa qualificada e atuação sempre em conformidade com a lei e com o direito fundamental de ampla defesa, que deve ser garantido a qualquer cidadão ou organização”, complementa o posicionamento.

Até setembro, antes do caso da JBS Aves, uma interferência direta de um ministro do Trabalho em uma autuação por trabalho escravo nunca havia acontecido desde novembro de 2003, quando a Lista Suja foi criada (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Até setembro, antes do caso da JBS Aves, uma interferência direta de um ministro do Trabalho em uma autuação por trabalho escravo nunca havia acontecido desde novembro de 2003, quando a Lista Suja foi criada (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Marinho já havia usado ‘avocação’ para barrar entrada da JBS Aves na Lista Suja

Em menos de um mês, é a segunda vez que a chefia do MTE “avoca” a decisão sobre a entrada de uma empresa na Lista Suja. Em setembro, Marinho já havia suspendido a inserção da JBS Aves no cadastro.

Vista como interferência política na área técnica do Ministério, a medida do ministro provocou um pedido coletivo de desligamento feito por 19 servidores da pasta que atuavam em cargos de coordenação regional de combate ao trabalho escravo.

A legislação prevê que, após apurada a responsabilidade por trabalho escravo pela área técnica da Inspeção do Trabalho, seja garantido amplo contraditório e direito de defesa em duas instâncias administrativas, antes de a autuação ser confirmada e o empregador ter seus dados inseridos na Lista Suja.

Trabalhador da MRJ em granja: caso em empresa terceirizada levou JBS Aves a ser autuada por trabalho escravo (Foto: MTE)
Trabalhador da MRJ em granja: caso em empresa terceirizada levou JBS Aves a ser autuada por trabalho escravo (Foto: MTE)

“Está se criando algo que nunca houve: uma terceira instância, que fica a cargo de uma compreensão política. A decisão sai da área técnica e jurídica”, analisa Rodrigo de Carvalho, coordenador Nacional da Anafitra (Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho). “É inaceitável. Um ataque sem precedentes. Esse caso [da Santa Colomba] só veio agravar ainda mais a situação”, complementa. 

Na avaliação de Luciano Aragão, procurador do MPT (Ministério Público do Trabalho), órgão independente do governo federal, “o novo ato avocatório evidencia que foi instituído um verdadeiro subterfúgio para empresas escaparem da sanção administrativa pelo trabalho escravo praticado”.

“O poder econômico e político sobrepujaram o devido processo legal e subverteram a própria noção de Estado de Direito, no qual a lei vale para todos. A sensação é que se for grande, se for influente, consegue escapar da aplicação da lei”, avalia.

Entenda a fiscalização que levou a Santa Colomba a ser autuada por trabalho escravo

Produtora de grãos, algodão, café, cacau e tabaco no oeste baiano, a empresa foi fiscalizada por auditores fiscais do Trabalho, servidores do MPT e da Defensoria Pública da União, acompanhados de agentes da Polícia Rodoviária Federal em novembro de 2023. 

A fiscalização aconteceu após um homem denunciar à polícia ter sido despido, algemado e agredido por seguranças da Fazenda Karitel, em Cocos (BA), pólo de produção da empresa. Após a inspeção no local e análise de documentos, como inquérito policial e laudo do exame de lesões corporais, a equipe técnica do MTE autuou a empresa pela submissão do trabalhador a condições degradantes, um dos elementos que caracterizam o trabalho escravo no Brasil.

À polícia civil de Cocos, a Santa Colomba alegou que o trabalhador se apresentava em “aparente estado de embriaguez” e queria entrar na propriedade portando bebida alcoólica, o que é proibido pelas regras da companhia. Ao ser contrariado, segundo a Santa Colomba, teria sido agressivo com os funcionárias da vigilância armada, que o contiveram e o levaram para um alojamento. 

Algemado, o trabalhador teria arrombado a porta do alojamento. Para a Santa Colomba, “outra não poderia ter sido a atitude dos vigilantes”, pois o trabalhador “se demonstrava cada vez mais agressivo e, por várias vezes ameaçou os seguranças, que estavam apenas no exato e racional exercício das suas funções, qual seja, preservar vidas”. 

O relatório final do inquérito policial esclarece que “na segurança privada não é permitido o uso de algemas”. Os vigilantes envolvidos no caso foram indiciados pelos crimes de lesão corporal e maus tratos. 

De acordo com o documento, a empresa não ofereceu atendimento médico ao trabalhador, mesmo tendo sido solicitado por ele, e deu 10 dias de folga após o caso. O relatório aponta também que a Santa Colomba demitiu o funcionário por justa causa dias após o ocorrido e antes da fiscalização ocorrer, com o argumento de que o trabalhador “cometeu falta grave”, por ter recebido o salário de outubro e não ter retornado ao trabalho. 

A Santa Colomba afirmou acompanhar o processo administrativo no MTE e destacou que “decisões sobre o mesmo episódio tomadas pelo Ministério Público do Trabalho e pela Justiça do Trabalho, bem como as conclusões das investigações da Polícia Civil, comprovam que o caso não diz respeito a práticas de trabalho análogo à escravidão”. 

A empresa reafirmou seu “compromisso absoluto com direitos humanos, sustentabilidade e responsabilidade social” e disse que o caso foi uma “ocorrência pontual envolvendo um funcionário terceirizado e um trabalhador”. A resposta completa da Santa Colomba pode ser lida aqui.

Leia também


APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM

O presidente Lula com João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados entre 2003 e 2005 (Foto: Divulgação/Presidência da República)
Assine nossa newsletter!

Receba o conteúdo da Repórter Brasil direto na sua caixa de email.
Assine nossa newsletter.