UMA DAS MAIORES lideranças indígenas do Brasil, o cacique Raoni Metuktire divulgou um vídeo pedindo que o presidente Lula e o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, “corrijam o erro” da nomeação de Casimiro Júnior Marinho Aguiar para o comando do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Kayapó do Pará.
Casimiro é parente do senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro. A nomeação, publicada no Diário Oficial da União em 25 de setembro, provocou a ocupação da sede do DSEI em Redenção, no sul do Pará, por dezenas de indígenas Kayapó. Desde então, o Ministério da Saúde não tem respondido aos pedidos de posicionamento enviados pela reportagem.
O DSEI é uma unidade responsável por coordenar as ações do SUS (Sistema Único de Saúde) em terras indígenas. No caso do DSEI Kayapó, a estrutura atende dezenas de aldeias em ao menos cinco municípios paraenses. O coordenador organiza campanhas de vacinação, transporte de pacientes, equipes médicas e a logística de atendimento em regiões remotas.
“Lula, me ouça! Antes de você se tornar novamente presidente, me encontrei com você e você me perguntou se eu achava que os próprios indígenas poderiam trabalhar, assumindo funções no governo. Eu disse que sim. Isso foi muito bom para nós. Mas não gostei de ver você esquecendo sua fala e não cumprindo o que nos prometeu. Por isso, estou mandando essa mensagem para você. Soube que nomearam um bolsonarista no DSEI Kayapó do Pará. Ele não vai cuidar bem de nossas comunidades. Vai criar muita confusão. Peço o apoio do ministro e o seu apoio para corrigir esse erro”, afirmou Raoni em vídeo divulgado nas redes sociais.
A cobrança é uma crítica direta ao governo Lula, a quem Raoni havia declarado apoio em 2021, em entrevista à Repórter Brasil. Na época, ele afirmou que “Bolsonaro queria a extinção dos indígenas” e que iria trabalhar junto com Lula. O cacique foi recebido por todos os presidentes brasileiros desde a redemocratização, com exceção de Jair Bolsonaro, e subiu a rampa do Planalto ao lado de Lula no dia da posse.
Além da pressão de Raoni, um grupo de 24 indígenas do povo Kayapó pressiona em Brasília por uma reunião com o presidente Lula, o ministro Padilha e as ministras Gleisi Hoffmann (Relações Institucionais) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas).
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Casimiro é irmão de Lázaro Marinho, que chefiou o mesmo DSEI entre 2017 e 2020 e foi exonerado após protestos indígenas. Ambos são parentes do senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), pastor evangélico, e uma das vozes da bancada ruralista.
Com apoio de Bolsonaro, o senador foi derrotado na disputa pelo governo do Pará em 2022. Ele tem histórico de atuação contrária aos direitos indígenas, como a defesa do garimpo e da mineração em áreas protegidas. Em dezembro, chegou a chamar a COP 30 da ONU, que será realizada em Belém, de “ecoterrorismo ambiental”.
Investigações da Polícia Federal apontaram ligações de Zequinha com políticos e policiais envolvidos no garimpo ilegal dentro da Terra Indígena Kayapó. Em 2020, ele foi citado por Pedro Lima dos Santos, acusado de chefiar o “esquentamento” de mais de três toneladas de ouro retiradas do território, como um político “solidário à causa dos garimpeiros”.
Procurado, o senador enviou nota afirmando que atua para “ampliar a cidadania e assegurar mais direitos aos povos indígenas”. Citou duas propostas de sua autoria: a PEC 10/2024, que permite aos indígenas explorar e comercializar sua própria produção, e o PL 2973/2023, que autoriza a outorga de lavra garimpeira em áreas já mineradas. Segundo ele, as medidas buscam fortalecer a autonomia econômica dos povos originários e garantir desenvolvimento sustentável.
A nomeação de um familiar de Zequinha para o DSEI foi vista pelos Kayapó como uma afronta à autonomia das comunidades. O cacique Kokokai Kayapó, filho do líder Kubey Kayapó, disse em vídeo que a decisão equivale a “colocar um invasor para guardar a maloca”.
Após as mobilizações, as lideranças Kayapó se reuniram e decidiram indicar Kokokai como novo coordenador do DSEI. Segundo nota publicada nas redes, a escolha foi feita de forma coletiva, conforme as regras internas das aldeias.
As comunidades afirmam que o nome de Kokokai representa “a vontade do povo” e que o governo deve respeitar o direito à autonomia e à autodefinição. “Decisões que afetam diretamente a saúde indígena devem partir das próprias comunidades, não de políticos externos”, diz a nota.
Casimiro Marinho não respondeu à Repórter Brasil sobre o vídeo de Raoni. Logo após ser nomeado, disse que pretende “trabalhar de forma técnica e dialogar com todas as comunidades”. Ele se apresentou como advogado do PT em Redenção, afirmou ter experiência em ações sociais e reconheceu o parentesco com o senador bolsonarista. “Cada um constrói sua história”, comentou.
A Fepipa (Federação Estadual dos Povos Indígenas do Pará) também publicou nota de repúdio afirmando que a nomeação foi feita sem diálogo. A entidade cita a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e a Constituição Federal, que obrigam o governo a consultar os povos indígenas antes de adotar medidas administrativas que os afetem diretamente. A federação defende que a escolha do coordenador obedeça a critérios técnicos e respeite as decisões das comunidades.
Outra manifestação veio da Associação Floresta Protegida, que representa 43 aldeias Mẽbêngôkre/Kayapó no sul do Pará. Em carta pública, a associação disse que o governo ignorou o protagonismo das comunidades e cobrou a revogação da portaria e a abertura de um processo de consulta “legítimo e transparente”. O texto também denunciou o desrespeito ao Protocolo de Consulta do povo Mẽbêngôkre (Kayapó), documento reconhecido pelo governo federal que estabelece as formas de decisão interna das aldeias.
Outra liderança do povo Kayapó, Ireo Kayapó, afirmou que a ocupação da sede do DSEI em Redenção continuará “até que o governo reconheça o nome escolhido pelas comunidades”. Segundo ele, “os próprios caciques da Terra Indígena Kayapó já definiram, de forma coletiva, um novo nome para a coordenação, respeitando as decisões internas das lideranças”.
Terra índigena Kayapó foi a mais invadida pelo garimpo
O protesto dos Kayapó contra o familiar de Zequinha ocorre em meio a um cenário de décadas de pressão sobre a TI Kayapó, território mais afetado por garimpos ilegais na Amazônia. Entre 2018 e 2022, a área perdeu 13,7 mil hectares de floresta para a mineração irregular.
A atividade é marcada por divisões internas: algumas aldeias resistem, outras permitem a entrada de garimpeiros, que subornam famílias locais. Estudos já apontaram contaminação por mercúrio nos rios e riscos neurológicos para os indígenas.
Policiais civis e militares chegaram a formar uma milícia para controlar garimpos dentro do território. Parte desse ouro abasteceu empresas internacionais, chegando às cadeias de gigantes como Apple, Google, Microsoft e Amazon.
Neste ano, o governo federal concluiu a primeira etapa da desintrusão da TI Kayapó. Foram destruídas 1.384 estruturas ilegais, com prejuízo estimado em R$ 97,3 milhões aos criminosos e redução de 95% no desmatamento. Ainda assim, em entrevista à Repórter Brasil, a coordenadora regional da Funai, O-é Kaiapó Paiakan, alertou que facções criminosas seguem atuando no território e cobrou políticas permanentes.
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