Pela segunda vez, Ministro do Trabalho adia entrada de empresa na Lista Suja

Titulares do pasta intervêm em decisão de área técnica sobre entrada de empresa na Lista Suja pela segunda vez em menos de um mês; Em novembro de 2023, um trabalhador da Agropecuária Santa Colomba denunciou ter sido torturado por seguranças da empresa, que foi fiscalizada e autuada por trabalho escravo
Por Daniela Penha | Edição Poliana Dallabrida
 08/10/2025

PELA SEGUNDA VEZ em menos de um mês, a chefia do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) assumiu para si (avocou, no termo técnico) a competência de decidir sobre a autuação de uma empresa por trabalho análogo à escravidão. A decisão, assinada no dia 2 de outubro por Francisco Macena da Silva, ministro do Trabalho substituto, atendeu a um pedido da Santa Colomba Agropecuária. A ação é vista como interferência política na área técnica e pode beneficiar a empresa.

Produtora de grãos, algodão, café, cacau e tabaco no oeste baiano, a empresa foi fiscalizada por auditores fiscais do Trabalho, integrantes do MPT (Ministério Público do Trabalho), da Defensoria Pública da União, acompanhados de agentes da Polícia Rodoviária Federal em novembro de 2023. A fiscalização aconteceu após um homem denunciar à polícia ter sido despido, algemado e agredido por seguranças da Fazenda Karitel, em Cocos (BA), pólo de produção da empresa. Após a inspeção no local e análise de documentos, como inquérito policial e laudo do exame de lesões corporais, a equipe técnica do MTE autuou a empresa pela submissão do trabalhador a condições degradantes, um dos elementos que caracterizam o trabalho escravo no Brasil. 

A legislação prevê que, após apurada a responsabilidade por trabalho escravo pela área técnica da Inspeção do Trabalho, seja garantido amplo contraditório e direito de defesa em duas instâncias administrativas, antes de a autuação ser confirmada e o empregador ter seus dados inseridos no cadastro de empregadores responsabilizados por exploração de mão de obra escrava, a chamada Lista Suja do trabalho escravo.

A Santa Colomba não teve êxito nas duas instâncias. O próximo passo, após conclusão do processo, seria a inclusão da empresa na Lista Suja, atualizada semestralmente. A última atualização ocorreu na segunda-feira (6), com inclusão de 159 novos nomes. 

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Após o ministro substituto Macena da Silva avocar para si a avaliação do caso, a entrada da Lista Suja da Santa Colomba foi barrada até o parecer ministerial. 

Em setembro, o titular da pasta Luiz Marinho utilizou o mesmo recurso no processo que apura a autuação da JBS Aves por condições análogas às de escravo, conforme revelado ao país pela Repórter Brasil

Até setembro, antes do caso da JBS Aves, uma interferência direta de um ministro do Trabalho em uma autuação por trabalho escravo nunca havia acontecido desde novembro de 2003, quando a Lista Suja foi criada (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Até setembro, antes do caso da JBS Aves, uma interferência direta de um ministro do Trabalho em uma autuação por trabalho escravo nunca havia acontecido desde novembro de 2003, quando a Lista Suja foi criada (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

“Está se criando algo que nunca houve: uma terceira instância, que fica a cargo de uma compreensão política. A decisão sai da área técnica e jurídica”, analisa Rodrigo de Carvalho, coordenador Nacional da Anafitra (Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho). “É inaceitável. Um ataque sem precedentes. Esse caso só veio agravar ainda mais a situação”, complementa. 

Em nota enviada à Repórter Brasil, o MTE informou que “o ministro avocou o processo a pedido da empresa”, em conformidade com a legislação trabalhista, e que “a empresa alega que não foram considerados os recursos apresentados e aponta inconsistências no auto de infração”. A pasta também afirmou que “a avocação é um instrumento previsto em lei, não possui caráter inédito ou exclusivo e tampouco se fundamenta no porte da empresa. Trata-se da análise, pela autoridade competente, de atos administrativos sob sua responsabilidade, com a prerrogativa legal de revê-los”. Leia a resposta completa do órgão aqui

Para o procurador do trabalho Luciano Aragão, que está à frente da Conaete, a coordenadoria nacional para o combate ao trabalho escravo do MPT, “o novo ato avocatório evidencia que foi instituído um verdadeiro subterfúgio para empresas escaparem da sanção administrativa pelo trabalho escravo praticado”.

“O poder econômico e político sobrepujaram o devido processo legal e subverteram a própria noção de Estado de Direito, no qual a lei vale para todos. A sensação é que se for grande, se for influente, consegue escapar da aplicação da lei”, avalia.

Consultor jurídico recomendou avocação 

Em despacho enviado para o MTE no dia 2 de outubro, o procurador federal Ricardo Augusto Panquestor Nogueira, consultor jurídico do MTE, afirma sobre a “existência de indícios robustos que apontam para a possibilidade de inclusão do peticionante (Santa Colomba) no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo” e alerta para a “premência de atualização de nova lista”, que foi publicada pelo MTE na última segunda-feira (6). 

Nogueira alerta ainda que a publicação do nome da empresa na lista traria “repercussão econômica e jurídica de ampla magnitude, com reflexos diretos na esfera patrimonial da empresa, em suas relações comerciais, na imagem perante o mercado e, em última análise, pode gerar significativo impacto”. Por fim, recomenda a avocação ministerial.

Até setembro, antes do caso da JBS Aves, uma avocação por um ministro do Trabalho nunca havia acontecido desde novembro de 2003, quando a Lista Suja foi criada. O período inclui os governos 1 e 2 de Lula, 1 e 2 de Dilma Rousseff, além das gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

Trabalhador denunciou agressões 

De acordo com o relatório de fiscalização, obtido pela reportagem, o empregado da Santa Colomba Agropecuária alega ter sido torturado: ele foi algemado, trancado em um quarto escuro e agredido por vigilantes que faziam a guarda da empresa. O caso ocorreu em outubro de 2023. O laudo do exame pericial, anexado ao relatório, aponta escoriações. 

À polícia civil de Côcos, a Santa Colomba alegou que o trabalhador se apresentava em “aparente estado de embriaguez” e queria entrar na propriedade portando bebida alcoólica, o que é proibido pelas regras da companhia. Ao ser contrariado, segundo a Santa Colomba, foi agressivo com os funcionárias da vigilância armada, que o contiveram e o levaram para um alojamento. Algemado, o trabalhador arrombou a porta do alojamento. Para a Santa Colomba, “outra não poderia ter sido a atitude dos vigilantes”, pois o trabalhador “se demonstrava cada vez mais agressivo e, por várias vezes ameaçou os seguranças, que estavam apenas no exato e racional exercício das suas funções, qual seja, preservar vidas”. 

O relatório final do inquérito policial esclarece que “na segurança privada não é permitido o uso de algemas”. Os vigilantes envolvidos no caso foram indiciados pelos crimes de lesão corporal e maus tratos. 

Dias após a denúncia, auditores fiscais do Trabalho estiveram no local e realizaram a autuação da empresa pela submissão do trabalhador à condições análogas à de escravo. “Em razão das peculiaridades do caso, a plena convicção e configuração do trabalho escravo ocorreu apenas após a efetuação das diligências necessárias para elucidação das circunstâncias do fato, tais como análise documental, inclusive o inquérito policial, e oitiva do próprio trabalhador”, informaram os auditores no relatório de fiscalização.

De acordo com o documento, a empresa não ofereceu atendimento médico ao trabalhador, mesmo tendo sido solicitado por ele, e deu 10 dias de folga após o caso. O relatório aponta também que a Santa Colomba demitiu o funcionário por justa causa dias após o ocorrido e antes da fiscalização ocorrer, com o argumento de que o trabalhador “cometeu falta grave”, por ter recebido o salário de outubro e não ter retornado ao trabalho.

Procurada, a empresa afirmou acompanha o processo administrativo no MTE e destaca que “decisões sobre o mesmo episódio tomadas pelo Ministério Público do Trabalho e pela Justiça do Trabalho, bem como as conclusões das investigações da Polícia Civil, comprovam que o caso não diz respeito a práticas de trabalho análogo à escravidão”. 

A empresa reafirmou seu “compromisso absoluto com direitos humanos, sustentabilidade e responsabilidade social” e disse que o caso foi uma “ocorrência pontual envolvendo um funcionário terceirizado e um trabalhador”. A resposta completa da Santa Colomba pode ser lida aqui

Contra decisão, auditores renunciam cargos 

No dia 25 de setembro, após o ministro Marinho avocar para si o caso da JBS Aves, dezenove auditores fiscais do trabalho deixaram cargos de coordenação regional de combate ao trabalho escravo em todo o país como protesto à decisão ministerial. 

Trabalhador da MRJ em granja: caso em empresa terceirizada levou JBS Aves a ser autuada por trabalho escravo (Foto: MTE)
Trabalhador da MRJ em granja: caso em empresa terceirizada levou JBS Aves a ser autuada por trabalho escravo (Foto: MTE)

O artigo 638 da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) da década de 1940 permite que o chefe do Ministério do Trabalho tenha a palavra final, mas isso bate de frente com tratados internacionais que o Brasil ratificou, segundo especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.

A Anafitra, por sua vez, entrou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF (Supremo Tribunal Federal) buscando declarar a inconstitucionalidade do artigo. 

“A ADPF é o caso concreto. O Supremo pode definir todo o futuro do combate ao trabalho escravo no Brasil”, avalia Rodrigo de Carvalho. 

Fazenda era ‘cemitério’ de animais

Em outubro de 2023, uma espécie de “cemitério de animais” silvestres foi identificado na Fazenda Karitel. A propriedade foi notificada por órgãos ambientais por não proteger adequadamente seus canais de irrigação e colocar em risco a fauna do Parque Grande Sertão Veredas, berçário de espécies do Cerrado, localizado no entorno da propriedade. 

Servidores do Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos) da Bahia encontraram ossadas e carcaças em decomposição nas margens dos canais da propriedade, que somam cerca de 40 km de extensão.

Com sede, lobos-guará, antas, tatus e outros bichos que rodeiam as propriedades vizinhas ao parque entram nesses “rios artificiais” em busca de água. Por serem revestidos com uma lona escorregadia, os reservatórios se transformam em armadilhas para os animais, que ficam presos e acabam morrendo afogados.

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Decisão que pode beneficiar empresa autuada por trabalho escravo foi tomada pelo ministro do Trabalho substituto Francisco Macena da Silva, na foto ao lado do ministro titular da pasta, Luiz Marinho (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
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