O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) notificou a FS Indústria de Biocombustíveis, uma das principais produtoras de etanol de milho do país, após ser informado pela Repórter Brasil que um sócio e fornecedor da empresa foi autuado pelo Ibama devido ao plantio irregular em 5,3 mil hectares na Terra Indígena Batelão, em Tabaporã, no Mato Grosso.
Entre 2023 e 2025, a FS recebeu pelo menos R$ 600 milhões em financiamentos do BNDES para investir em sua produção de biocombustíveis. O maior deles, no valor de R$ 500 milhões, foi obtido por meio do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, o chamado Fundo Clima.
Miguel Vaz Ribeiro, que é prefeito de Lucas do Rio Verde (MT), foi multado pelo Ibama em R$ 2,9 milhões em abril deste ano pelo plantio de milho e algodão geneticamente modificados na Fazenda São Jorge, sobreposta ao território indígena. Ribeiro é sócio da FS Indústria de Biocombustíveis e figura como fornecedor do grão para a companhia, segundo dados de contrato de fornecimento acessados pela Repórter Brasil.
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A legislação brasileira proíbe o cultivo de organismos geneticamente modificados em terras indígenas e unidades de conservação. O órgão ambiental também classificou a infração como biopirataria – exploração ilegal de recursos biológicos e conhecimentos tradicionais – e determinou a destruição das lavouras.
FS recebeu R$ 500 mi para investimentos em etanol de milho
Em setembro de 2024, o BNDES anunciou o financiamento de R$ 500 milhões para a FS construir uma nova planta de etanol de milho em Querência (MT), com capacidade de até 400 mil toneladas. O repasse do valor foi feito por meio do Fundo Clima.
Vinculado ao MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima), o fundo foi criado para apoiar empreendimentos que promovam a redução dos efeitos das mudanças climáticas e é rotulado pela pasta como “o principal instrumento financeiro para a transição ecológica no Brasil”. Durante a COP30, o MMA e o BNDES anunciaram a captação de R$ 8,84 bilhões para o Fundo Clima por meio da assinatura de cartas de intenções com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e três instituições financeiras europeias.

Em março de 2023, a FS já havia sido contemplada com R$ 100 milhões. Na ocasião, o financiamento se deu por meio do RenovaBio, programa vinculado ao MME (Ministério de Minas e Energia). O recurso foi destinado para a ampliação da eficiência energético-ambiental da empresa, conforme anunciou o próprio BNDES.
Questionado sobre a autuação do Ibama contra um dos sócios e fornecedores da FS, o BNDES informou que “notificou formalmente a empresa e aguarda o esclarecimento dos fatos narrados para definir suas ações em relação aos contratos celebrados”. O banco disse que todos os projetos de financiamento são submetidos à avaliação de riscos sociais e ambientais e que a FS “passou por minuciosa análise cadastral” e que “não foram encontrados processos transitados em julgado decorrentes de infrações ambientais e/ou trabalhistas que impedissem a concessão de financiamento a esta empresa pelo Banco”. Por fim, a autarquia destacou que, caso sejam identificadas irregularidades nos financiamentos em andamento, pode suspender a liberação dos recursos e, “em situações de maior gravidade”, realizar o vencimento antecipado do contrato.
O MMA reiterou a resposta enviada pelo BNDES, compartilhando com a reportagem a mesma manifestação enviada pelo banco. A nota pode ser lida na íntegra aqui.
O MME, responsável pelo RenovaBio, foi questionado, mas não respondeu até o fechamento deste texto. Procurada, a FS também não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
Funai diz que título da propriedade é nulo
Além de Miguel Vaz Ribeiro, a Fazenda São Jorge está registrada em nome de Marino José Franz e da Dankang Fiagril Administração de Bens, empresa que tem Franz como conselheiro de administração. Marino Franz e a Dankang Fiagril constam no quadro societário da Fiagril, produtora de insumos agrícolas e grãos com sede no Mato Grosso.
Franz é também sócio da FS Indústria de Biocombustíveis e com histórico de fornecimento para a produtora de biocombustíveis, conforme documentos obtidos pela reportagem.
Ribeiro, Franz e Dankang Fiagril recorrem juntos da multa em ação judicial contra o Ibama. Em maio deste ano, os produtores obtiveram uma decisão favorável na Justiça, que suspendeu a destruição das lavouras até posterior decisão judicial sobre a multa.
A TI Batelão, ocupada tradicionalmente pelo povo Kayabi, teve sua portaria declaratória publicada em 2007. Desde então, fazendeiros – entre eles Ribeiro e Franz – reivindicam áreas na Justiça, em ações que ainda estão em andamento. Em 2008, o Ministério da Justiça suspendeu a portaria do ano anterior, atendendo a uma determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 2016, a Justiça Federal confirmou que a TI é de ocupação tradicional dos indígenas. Atualmente, o território está registrado como “declarado” no site da Funai. As etapas seguintes são a demarcação física do território e sua homologação.
Em setembro de 2025, uma decisão do TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) determinou que a Funai retire informações restritivas ao uso de fazendas no território até a homologação da TI.
Questionados, Ribeiro e Franz responderam, por meio de sua advogada de defesa, que o Ibama afirmou haver uma sobreposição da Fazenda São Jorge com uma “ainda inexistente terra indígena”. Fazendo referência à decisão do TRF1, a defesa também apontou que restrições nas propriedades sobrepostas aos territórios “somente poderão surtir efeito após eventual homologação da TI Batelão”.
Para os fazendeiros, “quem age de forma ilegal é a Funai quando divulga aos demais órgãos públicos informações inverídicas de terra indígena sobreposta com propriedades privadas, cujo procedimento demarcatório não foi concluído”. A defesa da dupla afirmou ainda que “não há qualquer plantio irregular por parte de Miguel, Marino e a Dankang Fiagril” já que “inexiste terra indígena demarcada se sobrepondo com a propriedade”.
Miguel Ribeiro e Mariano Franz, que também já foi prefeito e vice-prefeito de Lucas do Rio Verde, afirmaram que a FS possui conhecimento sobre a autuação na propriedade e que a companhia “segue observando as normas e procedimentos ambientais vigentes”, uma vez que a TI ainda não está homologada e o plantio “encontra-se regular e autorizado” pela secretaria do meio ambiente estadual. O posicionamento dos fazendeiros pode ser lido na íntegra aqui.
Em comunicado enviado à reportagem, a Funai reforçou que a TI Batelão encontra-se regularmente delimitada, que a Justiça reconheceu a tradicionalidade da ocupação indígena e a nulidade de títulos de propriedades incidentes na área “como, por exemplo, os imóveis rurais denominados ‘Fazenda São Jorge’”. A autarquia também disse que desde outubro atua para reverter a decisão liminar que determinou a retirada de informações dos registros da Fazenda São Jorge “dadas as provas cartográficas inequívocas da sobreposição”.
Procuradas, a Dankang Fiagril Administração de Bens e a Fiagril não comentaram o caso até o fechamento deste texto. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
Contratos com a FS
Miguel Vaz Ribeiro e Marino José Franz forneceram milho para a FS em contratos que vigoraram entre 2022 e 2024, conforme documentos do mercado de capitais acessados pela Repórter Brasil.
O contrato de Ribeiro para fornecimento de milho com a FS, que teve vigência entre agosto e dezembro de 2023, somava R$12,7 mil.
O contrato de milho de Franz com a FS somou R$ 1,3 milhões, entre junho de 2022 e abril de 2024. O produtor também firmou contrato de R$ 2,2 milhões com a FS para fornecimento, entre setembro de 2023 e julho de 2024, de DDG (Dried Distillers Grains ou, “grãos secos por destilação” em português), um subproduto do milho usado para a produção de ração animal, um dos principais produtos da empresa.
Discurso de sustentabilidade
Na COP30, o Brasil protagonizou as discussões sobre biocombustíveis. Representantes de governos, empresas e instituições não-governamentais fomentaram o compromisso “Belém 4X”, com o objetivo de quadruplicar o uso de combustíveis sustentáveis até 2035.
O relatório “A conta dos biocombustíveis”, lançado pela Repórter Brasil em outubro de 2025, revelou que as cadeias produtivas de etanol, biodiesel e SAF (sigla para Combustível Sustentável de Aviação) estão ligadas a casos de desmatamento, conflitos fundiários e trabalho escravo.

Com unidades de produção no Mato Grosso, a FS se coloca como “a primeira produtora de etanol do Brasil 100% a partir do milho” e afirma estar contribuindo “para o esforço global de combate às mudanças climáticas”, com uma produção sustentável. Ao menos quatro representantes da FS estavam credenciados para participar da COP30 – três deles a convite do governo brasileiro.
A empresa divulga políticas socioambientais, com exigências de conformidade com fornecedores, como “não realizar atividades agropecuárias, silviculturais, comercializações e explorações em territórios que apresentem sobreposição às Terras Indígenas”.
Biopirataria em TI
A lei nº 11.460/2007, mencionada pelo Ibama na infração, proíbe “a pesquisa e o cultivo de organismos geneticamente modificados nas terras indígenas e nas áreas de unidades de conservação”.
No auto de infração de Ribeiro, o Ibama menciona que “o emprego de culturas geneticamente modificadas põe em risco variedades locais, como raças crioulas, as quais são fruto da seleção, ao longo dos séculos, por agricultores tradicionais e povos indígenas”. E complementa: “Afora o mencionado acima, ainda há a possibilidade de efeitos danosos à saúde das comunidades tradicionais e povos indígenas decorrente do uso de agrotóxicos e herbicidas cada vez mais potentes”.
“Quando você traz esses alimentos para dentro das aldeias, traz também agrotóxicos”, ressalta Alberto Terena, um dos coordenadores executivos da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). “É uma mudança na vida desse povo, que impacta também a sua saúde”.
Batalha jurídica
A maior parte dos habitantes originários da TI Batelão foram expulsos e deslocados para o Parque Indígena do Xingu nos anos 1960, duas décadas depois do início da colonização da área, de acordo com informações sistematizadas pela organização não-governamental Instituto Socioambiental.
Enquanto o processo demarcatório da TI Batelão se arrasta na Justiça, a área enfrenta conflitos e é palco para exploração madeireira, desmatamento e ações do agronegócio, conforme aponta estudo publicado pelas organizações Opan (Operação Amazônia Nativa) e ICV (Instituto Centro de Vida).
A pesquisa mapeou requerimentos de imóveis rurais em uma área de aproximadamente 88 mil hectares sobreposta à TI Batelão, o que corresponde a pouco mais de 75% da área total da Terra Indígena.
“Os instrumentos jurídicos que os invasores usam para protelar a decisão judicial são uma estratégia que, infelizmente, tem sucesso. Enquanto a questão jurídica não é resolvida, os invasores estão deteriorando o patrimônio do povo kayabi”, analisa Ricardo da Costa Carvalho, indigenista da Opan.
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