COP30: indústria defende mudança na Moratória da Soja, pacto contra desmatamento da Amazônia

Firmada por ambientalistas e empresas, moratória é apontada como um dos principais fatores para a redução do desmatamento em municípios com plantio de grãos na Amazônia
Por Daniel Camargos

DE BELÉM (PA) – Presidente-executivo da Abiove (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais), entidade representativa das maiores processadoras de grãos do país, André Nassar afirma que as empresas não querem “romper com a moratória da soja”, mas defendem “algum tipo de aprimoramento” no acordo que proíbe a compra da produção de áreas desmatadas depois de julho de 2008 na Amazônia.

A declaração foi dada à Repórter Brasil após o executivo participar de um painel no sábado (15) durante a COP30, em Belém (PA). O evento debateu a produção de biocombustíveis no país – hoje, a cada dez litros de diesel fabricado a partir de matéria-prima agrícola, sete vêm da soja. 

Organizações ambientalistas afirmam que mudanças no acordo podem enfraquecer o combate ao desmatamento, e defendem a manutenção das regras atuais. Até o momento, nenhuma proposta concreta de alteração foi apresentada.

Firmado por empresas privadas, ONGs e autoridades públicas, a moratória é considerada um dos principais instrumentos de preservação do bioma amazônico, contribuindo com a redução de 69% na derrubada de mata nativa até 2022, segundo estimativas do Grupo de Trabalho da Soja (GTS), composto por entidades ambientalistas, governo federal, empresas e associações como a própria Abiove.

Produtores rurais críticos ao acordo querem plantar soja em áreas desmatadas depois de 2008 e impedidas de vender grãos às empresas signatárias, segundo as regras do acordo.

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Atualmente, o pacto empresarial está em avaliação no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e no STF (Supremo Tribunal Federal).

O ministro do STF Flávio Dino determinou a suspensão de todas as ações judiciais e administrativas que discutem a validade da moratória e sua compatibilidade com as regras concorrenciais. A decisão cautelar busca evitar decisões conflitantes e estabelecer um “marco jurídico seguro” para as empresas do agronegócio, num cenário de disputas bilionárias.

O presidente da Abiove afirma que o setor está há quase 20 anos comprometido com o pacto. Segundo Nassar, associações de produtores rurais vêm pressionando as empresas até pelo pagamento de indenizações pelas áreas que deixaram de ser cultivadas em função da moratória, movimento que ele classifica como “absurdo”. 

Questionado se o aumento da produção de soja para atender à demanda maior por biocombustíveis poderia aumentar a pressão sobre a floresta, ele discordou. “Eu não concordo com o argumento de que mais biodiesel gera mais área de soja. Quem puxa a expansão da soja é muito mais a exportação de soja em grão. É a demanda por alimento, não é a demanda por energia”, argumentou.

Ofensiva pelos biocombustíveis passa por “produzir” ciência, diz executivo

Em sua exposição no painel da COP30, Nassar afirmou que a indústria de óleo precisa “produzir ciência para trabalhar toda a parte de comunicação”. Dirigida a um auditório dominado por representantes da indústria, a frase foi usada para defender os biocombustíveis agrícolas num momento em que o setor é pressionado por críticas.

Nassar afirmou que, depois da conferência do clima da ONU, “todo o mundo vai fazer zoom no Brasil” para discutir biocombustíveis agrícolas e questionar dois pontos: a competição com a produção de alimentos e o desmatamento associado às cadeias. “Estamos prontos para isso”, disse. 

As falas otimistas contrastam com o cenário que organizações sociais e pesquisadores vêm documentando em campo. Longe do ambiente controlado da zona de negociações da COP30, as cadeias que sustentam o etanol, o biodiesel e o SAF (combustível sustentável de aviação, na sigla em inglês) têm sido associadas a conflitos territoriais, desmatamento e violações trabalhistas.

Edificação apontada pela seta branca na Fazenda Adonai, em Marcelândia (MT) (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Produção de grãos para biocombustíveis têm sido associada a conflitos territoriais, desmatamento e violações trabalhistas (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

O debate sobre biocombustíveis na cúpula do clima ocorre em um momento em que o governo tenta transformar o país em líder global da pauta. Em Brasília, o presidente Lula apresentou o Compromisso Belém 4X — declaração internacional patrocinada por Brasil, Itália e Japão que propõe quadruplicar até 2035 o uso global de combustíveis sustentáveis em relação a 2024.

O documento inclui biocombustíveis, biogases, hidrogênio e e-fuels, e fala em transição energética, neutralidade de carbono e expansão acelerada dessas fontes em setores como transporte, aviação e indústria.

Debate sobre uso da terra para comida ou biocombustível não foi superado

Segundo o presidente da Abiove, dois terços da produção de soja brasileira são exportados em grão e apenas um terço é industrializado. A meta é elevar a industrialização – a conversão da soja em biocombustível é parte central desse processo. De acordo com Nassar, a industrialização aumentaria em 50% o valor pago ao produtor e agregaria quatro vezes mais valor à cadeia da soja.

Apesar do entusiasmo com a vitrine da COP, o presidente da Abiove reconheceu que o debate “food vs fuel”, a disputa entre comida e combustível no uso da terra, ainda não foi superado, especialmente na Europa. Disse que há vários documentos e estudos que, na visão do setor, demonstrariam ausência de efeitos adversos relevantes, mas que “as outras partes penduram no argumento food x fuel com premissas e não com evidências”.

Na avaliação dele, o entrave principal é melhorar a comunicação. Ele defendeu a necessidade de “difundir dados e informações positivas” sobre os biocombustíveis para influenciar os fóruns de decisão e a opinião pública. 

O presidente da Abiove reconhece que o debate “food vs fuel”, a disputa entre comida e combustível no uso da terra, ainda não foi superado, especialmente na Europa (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Lembrou que a COP30 reúne “vários painéis sobre o assunto” e que é preciso “manter o assunto vivo para não gerar resistência”. Perguntado sobre o legado da conferência, respondeu que é “o reconhecimento dos biocombustíveis como transição energética de descarbonização” e declarou estar “super feliz com isso”. Nassar estava à vontade ao falar entre pares da indústria e do agronegócio.

O painel, promovido pela Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), foi mediado por Davi Bontempo, superintendente de Meio Ambiente e Sustentabilidade da CNI (Confederação Nacional da Indústria), e teve participação do deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), de João Irineu Medeiros, vice-presidente de Assuntos Regulatórios da Stellantis na América do Sul, e de Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura e enviado especial do agronegócio na COP30.

Rodrigues afirmou que está na conferência para defender a agricultura. Disse que não há paz onde houver “fome, falta de energia e desemprego”, e apontou interesses do setor de petróleo tentando atrapalhar a promoção de combustíveis de origem agrícola.

Indústria da cana-de-açúcar vê novo boom de casos de trabalho escravo

Enquanto o governo exibe a agenda como vitrine climática, o relatório A Conta dos Biocombustíveis, da Repórter Brasil, mostra que as cadeias de etanol, biodiesel e SAF estão associadas a desmatamento, conflitos fundiários e trabalho escravo. 

O estudo detalha como a produção de cana-de-açúcar, soja, dendê e sebo bovino, apontadas como bases da transição “limpa”, repete velhas práticas de exploração de terra e de pessoas.

No caso da soja, usada majoritariamente na produção de biodiesel no Brasil, o relatório destaca a pressão sobre o Cerrado, bioma conhecido como “caixa d’água” do país, que já perdeu quase metade de sua vegetação nativa, com 74% dessa perda ligada à agropecuária. 

A expansão da soja para atender à demanda de biocombustíveis, somada à exportação de grãos, empurra a fronteira agrícola sobre áreas de vegetação nativa. Estudos internacionais citados no relatório indicam que, quando se consideram as emissões de Mudança Indireta de Uso da Terra (ILUC, na sigla em inglês), os biocombustíveis globais emitem, na média, mais CO₂ que os combustíveis fósseis que pretendem substituir.

Na cana-de-açúcar, base do etanol, há um “novo boom” de casos de trabalho em condições análogas à escravidão. Em 2023, 258 trabalhadores foram resgatados em lavouras de cana em fazendas fornecedoras de grandes usinas. Em várias delas, não havia condições mínimas de saúde e segurança: falta de água potável, ausência de banheiros e jornadas exaustivas. Mesmo assim, usinas ligadas a esses flagrantes seguem certificadas por programas nacionais e internacionais de “sustentabilidade”.

O cultivo de cana-de-açúcar é a atividade econômica com o maior número de trabalhadores do Maranhão resgatados do trabalho análogo à escravidão entre 2014 e 2023 (Foto: Sérgio Carvalho)
Em 2023, 258 trabalhadores foram resgatados em lavouras de cana em fazendas fornecedoras de grandes usinas.(Foto: Sérgio Carvalho)

No Vale do Acará, no nordeste do Pará, a produção de dendê para biodiesel ilustra o choque entre o plano Belém 4X e a realidade dos territórios. Indígenas Tembé, quilombolas e ribeirinhos afirmam que áreas ligadas à BBF (Brasil BioFuels), empresa que produz biocombustíveis a partir do dendê, estariam associadas a destruição de roças, cercamentos e episódios de violência contra comunidades locais.

Além de produzir biodiesel para abastecer usinas termelétricas, a BBF tinha planos para fabricar combustível de avião e abastecer as principais companhias aéreas nacionais. A companhia teve um pedido de recuperação judicial aceito pela Justiça do Pará recentemente.

Questionada sobre o conflito com povos tradicionais, para uma matéria da Repórter Brasil de agosto de 2022, a empresa afirmou que exercia a posse da área em disputa de forma “pacífica” e “justa”. A empresa também negou que tenham ocorrido episódios de espancamento, ameaças ou queima de casas por agentes de segurança. A companhia disse, ainda, que existe uma “inversão da narrativa que busca transformar a empresa em a grande vilã”.

Em depoimento à Repórter Brasil durante a COP30, a cacica Yuna Miriam Tembé, do território I’xing, em Tomé-Açu (PA), resume a contradição no recado que gostaria de dar ao presidente Lula, se pudesse encontrá-lo pessoalmente: “Antes de quadruplicar o biocombustível, demarque os nossos territórios”. Para ela, a produção não é limpa. Pode até ser “bio”, mas é “bio porque tem sangue indígena, sangue negro, sangue de ribeirinho, extrativista e agricultor familiar”.

Enquanto lideranças como Yuna Miriam circulam por Belém, sem credencial para a área de negociações oficiais, a frente empresarial dos biocombustíveis ocupa espaço nas mesas da zona azul.

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Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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