Setor de joias na Itália culpa Brasil por entrada de ouro ilegal no país

Confederação que reúne joalherias italianas diz que cabe às autoridades brasileiras impor controles para evitar a exportação de ouro extraído ilegalmente na Amazônia; Para Greenpeace, setor “se esconde atrás da burocracia”; Deputado afirma que a Itália “protege a indústria e abandona a floresta”
Por Janaina Cesar, de Veneza (Itália) | Edição Poliana Dallabrida
 05/09/2025

UM DOS MAIORES centros mundiais de design e fabricação de jóias, a Itália é palco a partir desta sexta-feira (5) da principal feira de ouro da Europa, a Vicenzaoro. Nos corredores do evento, que reúne integrantes das indústrias de joalheria, relojoaria e ourivesaria Made in Italy, parte do ouro dos produtos expostos tem origem no Brasil. Países da Europa foram o destino de 42% das exportações do minério brasileiro em 2024, segundo dados oficiais de comércio exterior.

Do outro lado do Atlântico, autoridades apontam que o ouro extraído ilegalmente em garimpos na Amazônia cruza o oceano e desembarca na Itália, o principal exportador europeu de jóias. Ao menos três grandes refinarias do país – Italpreziosi, Safimet e Chimet – foram mencionadas em investigações da polícia e da alfândega brasileiras nos últimos três anos (mais detalhes abaixo). 

Para representantes da indústria italiana, no entanto, é do Brasil a responsabilidade por eventuais falhas na rastreabilidade do minério – posição contestada por ambientalistas na própria Itália.

A Confindustria Federorafi (Federação Nacional de Ourives, Joalheiros e Fabricantes, na tradução para português), que representa o setor na Itália, afirma que “se há uma falha nos sistemas de controle e rastreabilidade, essa falha depende da falta de mecanismos confiáveis por parte das autoridades internas brasileiras”, disse a entidade por email à Repórter Brasil

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A confederação afirma que as empresas italianas “seguem a legislação vigente” e que não tem conhecimento de refinarias no país que tenham comprado ouro ilegal do Brasil. “Até onde sabemos, todas as empresas compram ouro acompanhado de documentação regular que certifica a origem legal do metal”.

A feira Vicenzaoro reúne anualmente na Itália os principais nomes dos setores de ouro e jóias. A Europa foi o destino de 42% do ouro exportado pelo Brasil em 2024 (Foto: Divulgação/Vicenzaoro)
A feira Vicenzaoro reúne anualmente na Itália os principais nomes dos setores de ouro e jóias. A Europa foi o destino de 42% do ouro exportado pelo Brasil em 2024 (Foto: Divulgação/Vicenzaoro)

Para Martina Borghi, representante da organização Greenpeace na Itália, o problema está justamente na origem dos documentos que acompanham o ouro. “Se forem falsificados ou baseados em fraudes, como ocorre com frequência no Brasil, todo o sistema europeu acaba sendo cúmplice ao aceitá-los sem checagem real”, diz a italiana. “A indústria italiana lucra diretamente com o ouro da Amazônia. Mas, quando se fala em transparência, se esconde atrás da burocracia”, complementa.

Histórico de irregularidades

Investigações recentes da Repórter Brasil revelaram como refinarias europeias, especialmente na Itália, foram abastecidas com ouro com indícios de ilegalidade.

Em junho, uma reportagem mostrou que a refinaria italiana Italpreziosi adquiriu o minério de uma importadora investigada em um esquema de extração ilegal de ouro em Itaituba, no Sudoeste do Pará. De acordo com as investigações policiais, o esquema criminoso era formado por empresas brasileiras que criavam notas fiscais falsas, inclusive em nome de pessoas já falecidas, para mascarar a real origem do minério. A investigação aponta que parte do produto foi extraída de garimpos ilegais na Terra Indígena Munduruku.

Em maio do ano passado, a Repórter Brasil também mostrou que uma carga de 5kg de ouro em pó misturada a 15 toneladas de carvão havia sido comprada por outra refinaria italiana, a Safimet, especializada no refino de metais preciosos. Após identificarem o ouro não declarado na carga, a Receita Federal no Porto de Santos barrou a exportação para a Itália. Apesar de responder por apenas 0,03% do volume total da carga, a quantidade de ouro poderia render R$ 1,9 milhão, quase três vezes mais que o valor do carvão declarado na nota fiscal do produto.

Dois anos antes, a refinaria Chimet, também italiana, foi apontada em investigações policiais como compradora de ouro extraído ilegalmente da Terra Indígena Kayapó, no Sul do Pará. A Repórter Brasil mostrou que a Chimet figurava na rede de fornecedores de empresas como Apple, Google e Microsoft.

Terra Indígena Kayapó é a mais invadida pelo garimpo ilgal de ouro no país, com mais de 13 mil hectares ocupados (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace)
Terra Indígena Kayapó é a mais invadida pelo garimpo ilgal de ouro no país, com mais de 13 mil hectares ocupados (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace)

As três empresas foram ouvidas pela reportagem à época da publicação das reportagens. A Italpreziosi afirmou que não identificou nenhuma suspeita de ilegalidade no ouro adquirido da empresa importadora investigada pelas autoridades. A Safimet, por sua vez, disse que fez uma única compra junto à empresa brasileira alvo da fiscalização no Porto de Santos e que desfez o negócio após a apreensão do material pela Receita Federal. Já a Chimet sustentou que suas compras de ouro são acompanhadas de documentação que atesta a procedência lícita do metal, mas reconheceu “o risco de que efeitos negativos possam ser associados ao comércio e exportação de minerais de áreas de alto risco”.

Importações de ‘alto risco’

Um estudo publicado em agosto do ano passado pelo Instituto Escolhas, organização que realiza estudos em áreas como mineração, energia e sistemas alimentares, apontou que 94% do ouro brasileiro importado por países da União Europeia vinham de áreas de “alto risco” de ilegalidade. 

Importações de “alto risco”, segundo o instituto, são aquelas que tiveram origem nos estados do Pará, Amazonas e São Paulo. Isso porque no Pará e no Amazonas predomina a produção de ouro a partir de lavras garimpeiras. Já São Paulo, que não produz o minério, escoa a produção com origem em áreas de garimpo. 

“Nessas regiões, há graves indícios de ilegalidade na extração e no comércio de ouro e é difícil atestar a origem lícita do metal”, afirma o instituto

Suíça: a ‘lavandeira’ de ouro

Apesar das denúncias, a indústria na Europa continua operando como se nada tivesse acontecido, apontam especialistas ouvidos pela Repórter Brasil

A legislação italiana e europeia, até agora, tem funcionado mais como cortina de fumaça do que como barreira real, avalia Martina Borghi, do Greenpeace na Itália. “A cadeia do ouro é opaca. É muito fácil para o ouro ilegal se misturar ao legal e atravessar as fronteiras com documentação aparentemente em ordem”, afirma. 

No último ano, a Itália foi a oitava maior compradora do ouro brasileiro. Grande parte das remessas que chegam na Itália e em outros países do continente, no entanto, passam primeiro pela Suíça, que não faz parte da União Europeia, mas serve de entreposto. Em 2024, o país foi o segundo principal destino das exportações brasileiras, atrás do Canadá.

Comprador com grama de ouro em estado natural em loja em Itaituba, no Pará (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

É na Suíça que, segundo especialistas, o ouro é refinado, reclassificado e, muitas vezes, “lavado”. “A Suíça funciona como lavanderia do ouro extraído em áreas de conflito ou de proteção ambiental”, denuncia Borghi. “Ele sai do Brasil sujo e chega à Europa com novo rosto”, completa.

Oportunidade perdida

Uma promessa de mudança estaria na nova lei europeia antidesmatamento (EUDR, o Regulamento da União Europeia sobre Produtos Livres de Desmatamento), que começará a ser aplicado em dezembro de 2025. 

A legislação exige que importadores de commodities como madeira, cacau, café, soja, óleo de palma, borracha e gado comprovem que esses produtos não estão associados ao desmatamento. O ouro, apesar de também ser extraído de áreas onde a floresta vem sendo devastada, ficou de fora da lista.

Ambientalistas avaliam que a exclusão do metal é uma oportunidade perdida e uma brecha preocupante em um dos poucos instrumentos concretos criados pela União Europeia para conter a destruição da floresta em países fornecedores.

Para o deputado italiano Angelo Bonelli, da coalizão Alleanza Verdi e Sinistra (Aliança Verdes e Esquerda), essa ausência enfraquece qualquer tentativa real de frear o avanço do ouro ilegal. “A Itália deveria liderar o combate ao ouro do desmatamento. Mas faz o contrário: protege a indústria e abandona a floresta”, afirma.

Normas existem, mas a aplicação é frágil

O Greenpeace também defende o fortalecimento do regulamento europeu 2017/821, conhecido como Regulamento de Minerais de Conflito. Em vigor desde 2021, ele estabelece diretrizes para rastreamento da cadeia de ouro, estanho, tântalo e tungstênio de áreas de risco ou conflito.

Segundo Borghi, um dos pontos mais frágeis é a lista de países de risco da norma. A Suíça, por exemplo, não consta nela. “A Suíça, evidentemente, não é um país em conflito, mas é uma área de alto risco. Queremos obrigar as empresas, inclusive as italianas que compram ouro vindo de lá, a adotar uma due diligence mais rígida, a exigir com mais firmeza que o país trace a origem do ouro”, disse a representante do Greenpeace.

Quanto às sanções na legislação nacional, o arcabouço legal italiano é apontado como frágil. Apenas em 2022 o artigo 518 do Código Penal do país passou a prever penalidades específicas para o comércio ilícito de metais preciosos. Ainda assim, nenhuma dessas regras menciona diretamente territórios protegidos.

“As normas existem, mas a aplicação é frágil”, explica Borghi. “E não há mobilização política suficiente para mudar isso. Pelo contrário: o que vemos é um movimento coordenado de enfraquecimento das legislações ambientais na Europa. É como se as promessas ambiciosas do Green Deal europeu estivessem sendo revertidas em silêncio”.

“O sistema foi desenhado para não funcionar”, resume o deputado italiano Bonelli. “Enquanto a Europa, Italia em primis [em primeiro lugar], não reconhecer sua parcela de responsabilidade nesse ciclo, o ouro ilegal continuará cruzando o oceano e a Amazônia continuará sangrando”.

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