Como um laticínio que pertencia à Nestlé ‘evitou’ a Lista Suja do trabalho escravo

Empresa que era controlada pela Nestlé e hoje pertence à Lactalis evitou entrada na Lista Suja do trabalho escravo questionando na Justiça fiscalização de 2018; operação do MTE resgatou 28 ambulantes responsáveis pela venda de produtos lácteos em Salto (SP)
Por Vinicius Konchinski | Edição Carlos Juliano Barros
 03/10/2025

EM SETEMBRO, a JBS Aves, braço da maior processadora de carne do mundo, deixou de ser inserida na chamada Lista Suja do trabalho escravo em função de uma polêmica medida tomada pelo ministro do Trabalho. Meses antes, o laticínio DPA (Dairy Partners Americas) — empresa que já foi da Nestlé e hoje pertence à Lactalis — já havia conseguido evitar judicialmente sua inclusão no cadastro do governo federal.

Para fontes ouvidas pela Repórter Brasil, ambos os casos trazem à tona as dificuldades enfrentadas pelo sistema de combate ao trabalho escravo no país para responsabilizar companhias de grande porte e colocá-las na Lista Suja. O cadastro oficial torna públicos por até dois anos os dados de pessoas físicas e jurídicas autuadas. Apesar de não impor bloqueio comercial ou financeiro aos citados, a relação tem sido usada por bancos e empresas para gerenciamento de risco, dentro e fora do Brasil. 

Desde março, a DPA vem tentando anular na Justiça do Trabalho uma inspeção feita por auditores fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) que ligou o laticínio a um episódio de trabalho escravo no município de Salto, em 2018. Em primeira instância, a DPA teve sucesso. O MTE, por meio da AGU (Advocacia-Geral da União), já recorreu.

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Fiscalização resgatou 28 ambulantes que vendiam produtos lácteos em Salto (SP)

Dona das marcas Parmalat, Batavo e Elegê, a Lactalis comprou em 2022 a DPA, laticínio criado pelas multinacionais Nestlé e Fonterra.

No negócio, a Lactalis também assumiu as pendências trabalhistas da DPA, incluindo o caso de trabalho análogo ao de escravo apontado por autoridades no interior paulista, em 2018.

Entre março e julho daquele ano, auditores-fiscais do MTE investigaram, junto com a Polícia Federal, a relação da DPA com ambulantes que vendiam produtos de porta em porta, nos bairros da periferia de Salto. Na época, o laticínio estava sob controle da Nestlé.

Ao término da operação, a DPA também foi responsabilizada por exposição de trabalhadores a jornadas de 14 horas, por alojamentos em condições degradantes e por pagamentos abaixo do acordado. Para o Ministério do Trabalho, a empresa teria adotado uma postura de “cegueira deliberada” ao deixar de fazer o monitoramento adequado de sua cadeia de distribuidores, a chamada “devida diligência”.

No total, 28 trabalhadores foram resgatados na fiscalização. A DPA teve de pagar mais de R$ 139 mil em verbas rescisórias. O caso se arrasta desde então.

Vara do Trabalho anula auto de infração; AGU recorre

Já sob a gestão da Lactalis, a DPA entrou em março de 2025 com um processo contra a autuação por trabalho escravo dos ambulantes. O caso foi remetido à 21ª Vara do Trabalho, onde atua a juíza substituta Ana Carolina Silva Monteiro.

Ainda em março, a magistrada atendeu a um pedido da DPA e concedeu uma liminar (decisão provisória) para que a empresa não fosse incluída na Lista Suja. A justificativa era a de que a companhia havia assinado um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o MPT (Ministério Público do Trabalho). 

“As empresas que celebraram TAC não estão sujeitas a figurar no famigerado rol”, diz a decisão da juíza, referindo-se ao cadastro de empregadores responsabilizados por trabalho escravo.

No início de julho, a juíza proferiu a sentença sobre o caso e anulou a autuação da companhia por não ver relação entre a DPA e os ambulantes que vendiam seus produtos. Segundo a decisão, a ideia de “devida diligência” se aplica mais à cadeia de fornecedores do laticínio do que à de distribuidores dos produtos.  

A sentença também aponta um motivo técnico para anular o auto de infração: o documento teria sido lavrado em São Paulo — e não em Salto. Isso bateria de frente com o artigo 629 da CLT. O texto da lei determina que o registro formal das irregularidades seja feito no local da fiscalização.

O Ministério do Trabalho contesta a juíza e sustenta que os autos foram de fato lavrados em Salto. Além disso, na avaliação da AGU (Advocacia-Geral da União), a sentença da juíza desconsidera uma portaria do próprio MTE que aponta como “local de inspeção” a sede de trabalho dos auditores —  neste caso, São Paulo.

“A AGU já apresentou recurso defendendo que o auto de infração possui fundamentação sólida que deve prevalecer”, sustenta o órgão em nota à Repórter Brasil. A visão é compartilhada pelo MPT, que também acompanha o caso.

“É ruim que empresas usem questões formais para tentar escapar de suas responsabilidades sobre ilegalidades”, afirma Luciano Aragão, procurador do MPT (Ministério Público do Trabalho) e coordenador da Conaete (Coordenação Nacional de Erradicação de Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas).

Aragão lembra que, antes de recorrer à Justiça, uma empresa autuada pelo Ministério do Trabalho pode questionar o ato em duas instâncias administrativas. A DPA fez isso. Em ambas as instâncias, no entanto, a autuação foi mantida.

Procurada, a juíza Ana Carolina Silva Monteiro respondeu por email que, “por ter proferido uma decisão pública e fundamentada, a qual está sujeita a recurso, só pode se manifestar dentro do processo”.

O que dizem as empresas

Em nota à Repórter Brasil, a Lactalis afirmou que “o caso em questão ocorreu em 2018, cinco anos antes da aquisição das operações da Dairy Partners Americas (DPA) da Nestlé, negociação efetivada tão somente no final de 2023”.

O posicionamento sustenta ainda que “a inclusão da DPA no auto de infração do presente episódio tratou-se de um equívoco, e que a magistrada do trabalho que acompanhou o caso já emitiu sentença favorável à Ação Anulatória, o que excluiu a Dairy Partners Americas do processo”. Por fim, o texto diz que a decisão será “objeto de reexame pelo TRT da 2a. Região/SP, sendo que a DPA mantém-se confiante na manutenção da decisão em seu favor”.

Também em nota, a Nestlé informou que não comenta decisões judiciais, não compactua com o trabalho forçado ou análogo ao escravo e que “jamais teve qualquer tipo de relação com os distribuidores em questão”.

Pesquisa mostra como 40 empresas saíram da Lista Suja em 5 anos 

Advogada e coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Lívia Miraglia afirma que a decisão favorável à DPA segue o padrão do Judiciário brasileiro. “Ele está sempre mais próximo das empresas do que dos trabalhadores”, avalia.

Ela é coautora de um artigo publicado em 2023 sobre a atuação da Justiça em processos pelos quais 40 empresas conseguiram, entre 2017 e 2022, tirar seus nomes da Lista Suja.

Segundo a pesquisa, em 43% das decisões em favor das empresas, os magistrados alegaram risco de prejuízo às companhias, como dificuldades para obtenção de crédito. Em 25% dos casos, a justificativa foi a existência de um TAC e, em 15%, o fato de as companhias não serem reincidentes e agirem de boa-fé. Já em 8% dos processos estudados por Lívia Miraglia, a empresa deixou de entrar na Lista Suja ou conseguiu sair do cadastro alegando nulidade do auto de infração — assim como fez a DPA.

Brasília (DF), 28/03/2025 - O Ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, apresenta os dados do Novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Novo Caged) referentes ao mês de fevereiro de 2025. Foto: José Cruz/Agência Brasil
O Ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, ‘avocou’ para si mesmo a decisão sobre a entrada da JBS na Lista Suja do trabalho escravo do governo federal (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

O frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional da CPT (Comissão Pastoral da Terra) contra o Trabalho Escravo, lembra que discussões sobre a divergência entre o local da autuação e o da lavratura do auto são muito comuns na Justiça. No entanto, ele afirma haver uma jurisprudência consolidada reforçando a validade de autos lavrados no local de trabalho dos auditores-fiscais.

Plassat ressalta que a JBS também pediu ao MTE que a autuação referente ao resgate de dez trabalhadores no Rio Grande do Sul fosse anulada por conta do local de autuação e por outros motivos. Contudo, administrativamente, esse argumento já teria sido rechaçado, avalia Plassat — o que poderia levar a empresa à Lista Suja, não fosse a atuação pessoal do ministro Marinho sobre o caso.

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