DE BARCARENA (PA) — “Foi como um filme de terror. A gente nunca tinha visto algo parecido, nem mesmo no cinema ou na televisão”.
Henrique Nery, 68 anos, ainda se lembra dos corpos dos quase 5 mil bois que tomaram conta da praia de Vila do Conde, na manhã do dia 6 de outubro de 2015. O mar começou a devolver os animais que se afogaram com o naufrágio do navio Haidar, no Porto de Vila do Conde, em Barcarena (PA). Uma parte das 700 toneladas de óleo da embarcação afundada chegou até Belém, a 60 quilômetros de distância.
Dez anos depois, o navio continua submerso no mesmo lugar da tragédia — e o desastre segue como ferida aberta na vida das comunidades locais.
Com mais de 126 mil habitantes e 112 povoados ribeirinhos, Barcarena convive há décadas com impactos sobre seu ecossistema. Segundo levantamento da organização Mercy For Animals, em 20 anos foram 24 desastres socioambientais.
A contaminação da água e do solo afeta a saúde e a subsistência de centenas de pessoas. “Cadê o peixe?”, questiona a ribeirinha Ereny Barbosa, da Ilha das Onças. “Tanto se fala em preservar, mas na prática a gente sente que está se acabando”.
Ela relata sintomas que se tornaram comuns na comunidade. “Eu tenho uma criança de 2 anos, ele toma banho com água do rio e vive marcada com micose, alergia”, conta Barbosa. Segundo a vice-prefeita de Barcarena, Cristina Vilaça, 80 litros de água potável são distribuídos toda semana para cada família.
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‘Metade da comunidade foi embora’
Presidente da Associação dos Barraqueiros da Praia e Comerciantes de Vila do Conde, Nery diz que a praia, antes sinônimo de lazer, nunca mais foi a mesma depois do naufrágio do navio Haidar, uma década atrás. “Um lugar que era só de diversão, de repente se transformou numa cena macabra que a gente nunca vai esquecer”.
Cinco dias após o naufrágio, a barreira de contenção se rompeu e os corpos se espalharam pela praia e pelo igarapé da comunidade. Muitos bois morreram presos no navio; outros tentaram nadar até a costa. O cheiro da decomposição tomou conta do ar por semanas, obrigando moradores a abandonar suas casas. “Metade da comunidade foi embora, principalmente crianças e idosos. Muita gente foi para Belém e Abaetetuba para esperar as coisas melhorarem”, conta Nery.

Por mais de um mês, a praia ficou interditada. O turismo, principal fonte de renda local, colapsou. Dos 30 quiosques que existiam antes, apenas metade sobreviveu. Comerciantes reclamam do valor da indenização paga pelas empresas envolvidas. “Não cobre o prejuízo de ninguém”, lamenta Nery.
A operação de contenção do óleo e retirada das carcaças teve início após o MPF (Ministério Público Federal) acionar as responsáveis — a CDP (Companhia Docas do Pará) e o grupo de alimentos Minerva, além da Norte Trading e da Tâmara Shipping. Os restos mortais dos animais foram enterrados em uma vala próxima ao porto.
Barcarena lidera exportação de bois vivos
O Pará é o maior exportador de gado vivo do Brasil. Em 2024, o país ultrapassou a Austrália e assumiu a liderança mundial, com 960 mil animais embarcados. Só nos primeiros meses de 2025, já foram quase 300 mil bois.
Até o primeiro trimestre de 2008, o Pará exportava bois vivos pelo porto de Belém. Depois disso, os embarques passaram a ser feitos exclusivamente por Vila do Conde. Atualmente, o terminal localizado em Barcarena responde por dois terços das embarcações
O Haidar foi construído em 1994 e posteriormente adaptado para o transporte de animais, uma mudança considerada arriscada. “Esses navios têm o dobro de chances de naufragar porque são muito antigos e foram convertidos de outras funções”, explica Paula Cardoso, responsável pelo departamento jurídico da Mercy for Animals na América Latina. “Os animais literalmente cozinham vivos dentro desses navios, sob sol escaldante e ventilação precária”, acrescenta.

Um relatório da Marinha do Brasil de 2023 afirma que a frota de navios operando em Vila do Conde é composta por embarcações velhas, com manutenção precária e classificações duvidosas.
Mesmo após o naufrágio, o Brasil manteve regras consideradas “frouxas” por especialistas. O Ministério da Agricultura e Pecuária publicou uma instrução normativa estabelecendo medidas básicas para evitar novos acidentes, como a instalação de bebedouros e a delimitação de uma área mínima por animal.
A fiscalização, no entanto, é falha, dizem fontes ouvidas pela Repórter Brasil. “O próprio Ministério da Agricultura já admitiu publicamente que as regras que regem o transporte marítimo são insuficientes e a fiscalização é inadequada”, afirma George Sturaro, diretor de relações governamentais e políticas públicas do Mercy for Animals.
O Haidar continua submerso, e as promessas de retirada da embarcação nunca se concretizaram. A remoção do navio ficou sob responsabilidade do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). Em 2019, o órgão contratou a empresa Superpesa para realizar o serviço, a um custo de R$ 44,6 milhões. Do total, R$ 19,1 milhões já foram repassados à empresa.
O DNIT informou à Repórter Brasil que, devido a irregularidades na execução contratual, a Superpesa foi penalizada com multa e suspensão temporária de dois meses em novas licitações. Leia a íntegra do posicionamento.
Comunidades vizinhas ao porto reclamam de impactos
“Tudo começa quando o governo federal olha para Barcarena e não vê pessoas, vê somente uma zona industrial”, afirma Márcio Maués, promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará.
Hoje, o trânsito constante de carretas carregadas de bois corta as comunidades do município em direção ao porto. “Essas carretas passam o dia todo, deixam fezes, urina, aquele cheiro horrível. E já tiraram a vida de muita gente”, critica Rozemiro Brito, líder comunitário da Vila do Conde.
A vice-prefeita de Barcarena afirma que a prefeitura vem trabalhando em conjunto com o governo do Pará na melhoria das estradas. “A gente está ampliando a rodovia através da sua duplicação, mas não é uma coisa que a gente consegue fazer num passe de mágica”, afirma.
Dez anos depois do naufrágio, pouco mudou. “Quando venta forte, os cabos que seguram os navios arrebentam e o medo volta. A gente pensa: será que vão esperar acontecer de novo?”, diz o líder comunitário Brito.
Em 2018, após três anos de disputas judiciais, foi firmado um acordo de R$ 13,7 milhões entre as empresas envolvidas e os órgãos públicos para o pagamento de indenizações às famílias atingidas — valor muito abaixo dos R$ 71 milhões propostos na ação inicial pelo Ministério Público Federal. Nem todas as famílias foram indenizadas, segundo relatos da comunidade.
O desastre também jogou luz no elo entre a exportação de gado e o desmatamento. Análise feita pelo Mapbiomas mostra que mais de 90% do desmatamento da Amazônia está ligado à abertura de pastagens. Entre 2015 e 2017, quase todos os bois exportados por Vila do Conde vinham de fazendas localizadas em municípios que estão entre os maiores desmatadores do bioma, segundo levantamento feito pela Mercy for Animals.

Para o promotor Maués, a falta de licenciamento ambiental para exportação de gado vivo é um dos problemas que gera impactos ao meio ambiente. Outro desafio é garantir que os animais não venham de áreas com problemas socioambientais, localização que até então são desconhecidas.
O Ministério Público do Pará está dialogando com a Secretaria de Meio Ambiente do estado para exigir licenciamento e incluir o transporte de animais no TAC da Carne, que impede frigoríficos de comprar bois criados em áreas desmatadas. “Hoje, não sabemos nada sobre esses animais além da guia de trânsito. Pode haver desmatamento, grilagem, até trabalho escravo por trás dessa cadeia”, alerta.
A responsabilidade pelo naufrágio do Haidar, segundo Paula Cardoso, ainda é um uma questão sem respostas. “Aprender com o erro pressupõe admitir o erro. Mas quem quer assumir? A culpa é do Mapa, da Marinha, da CDP, do Ministério de Portos [e Aeroportos]”.
A Repórter Brasil enviou questionamentos à CDP, à Adepará, ao Mapa e ao Ministério de Portos sobre as medidas adotadas após o naufrágio, os impactos no porto e as mudanças nas práticas e regulamentações do transporte de animais vivos desde o acidente, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. O texto será atualizado caso haja retorno dos órgãos.
Enquanto isso, Barcarena segue convivendo com a lembrança e a incerteza. “O que a gente entende é que valem mais as empresas com suas arrecadações de impostos do que a população”, finaliza Nery.
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