Mineradores em Gana, pescadores de Bangladesh e trabalhadores que derrubam árvores na Amazônia brasileira têm duas coisas em comum: são submetidos a condições semelhantes ao trabalho escravo enquanto destroem florestas e rios. Outro elemento em comum é trabalharem para produzir materiais que, provavelmente, serão vendidos nas grandes cidades de seus países, da Europa ou dos Estados Unidos.
A conexão entre violações trabalhistas e destruição ambiental em diversos países foi o foco da pesquisa do livro “Blood and Earth”, de Kevin Bales, cofundador da organização Free the Slaves e professor de Escravidão contemporânea da Universidade de Nottingham. Para a pesquisa, Bales viajou para mais de cinco países, entre eles o Brasil.
“A questão central é como alguns grupos estão operando ilegalmente. As pessoas são submetidas a um controle violento em florestas que supostamente estão protegidas”, ele afirma, usando o caso da exploração de madeira na Amazônia brasileira como exemplo do mesmo sistema que ele viu em funcionamento na África e na Ásia. Escondidos na ilegalidade, os fabricantes estão cometendo crimes para extrair recursos com os menores custos possíveis. Os produtos são vendidos a uma empresa intermediária, onde são enviados para longe sem deixar qualquer rastro de sua origem ilegal. Segundo Bales, os operadores locais assumem os riscos, mas suas práticas ilegais também beneficiam empresas grandes.
Nesta entrevista, ele fala sobre a fragilidade das leis que ainda não conseguem barrar o fluxo de dinheiro entre o consumidor e a rede de exploração do trabalho escravo e destruição ambiental. E tenta responder à pergunta mais difícil: como cortar esse ciclo.
Repórter Brasil — Como a escravidão e a destruição ambiental estão conectadas?
Kevin — A destruição ambiental cria uma vulnerabilidade enorme, principalmente quando pensamos em pessoas que vivem em harmonia com o meio ambiente, aquelas que trabalham na agricultura, moram no litoral e vivem em lugares onde as mudanças climáticas e a destruição ambiental literalmente arrancam a terra debaixo dos seus pés. A terra desaparece literalmente, sob o aumento do nível do mar, ou por causa de erosão e desmatamento. Há os projetos de construção de hidrelétricas, e os pobres que moram na região são forçados a sair. Isso tudo gera muita vulnerabilidade. Eles são pobres, não têm onde morar, alguns são refugiados. Cria-se um contexto em que as pessoas podem ser escravizadas.
Por outro lado, as pessoas submetidas à escravidão estão sendo usadas, sendo forçadas a cortar árvores de florestas protegidas em todo o mundo. A escravidão está na raiz de uma parte significativa da destruição ambiental, principalmente em termos de emissões de CO2. Com base nos índices de desmatamento e calculando de forma muito conservadora, chegamos à conclusão de que, se a escravidão fosse um país, seria o terceiro maior emissor de CO2, atrás da China e dos Estados Unidos.
Repórter Brasil — O que conecta a escravidão no setor madeireiro no Brasil com realidades como a mineração de coltan no Congo ou as fazendas de camarão na Índia?
Kevin — Uma das coisas que aconteceram em todos esses lugares é que as proteções ambientais contidas em leis e tratados são boas, mas nenhuma delas tem realmente força de proteção. Elas afirmam: “Esta é uma floresta protegida”, mas ninguém é contratado para protegê-la. Quando contratam, são casos como na África, em que dois homens com uma bicicleta têm de dar conta de milhares de quilômetros de floresta. Enquanto os criminosos têm helicópteros, caminhões, aviões e tudo de que precisam.
Quando se observa a extração ilegal de madeira no Brasil, vê-se que ela está acontecendo em lugares onde a floresta supostamente está protegida. Eu sei que essa questão é polêmica, alguns dirão que “precisamos abrir esses lugares ao desenvolvimento”. Mas a questão central é que pessoas estão trabalhando sob um controle violento em florestas que supostamente estão protegidas.
Repórter Brasil — Você diz que podemos mudar esse sistema adotando pequenos inconvenientes, como prestar atenção ao que compramos. Mas nós temos informação suficiente para fazer essa escolha?
Kevin — Em muitos casos, não. Todos os dias alguém me pergunta: “Como eu posso saber? Onde está a lista?”. Há algumas listas disponíveis e pesquisas em andamento, mas não o necessário para que possamos de fato fazer essas escolhas.
É uma área muito difícil para policiar e para pesquisar. Muitas vezes, os criminosos se escondem atrás de “laranjas”. Mesmo as pessoas que estão inspecionando cadeias de abastecimento que vão ter dificuldades de penetrar até o nível inferior. E quando os criminosos são expostos, eles passam para uma cadeia de abastecimento diferente. Então é uma questão de vigilância constante.
Mas eu me sinto otimista por ver que tantas pessoas querem saber mais, querem descobrir. E porque mais e mais organizações estão trabalhando para tornar isso possível.
Repórter Brasil — Esta entrevista está sendo publicada como parte de uma investigação mais ampla, na qual descobrimos que as serrarias responsabilizadas por trabalho escravo no Brasil estavam ligadas à cadeia de fornecedores de grandes marcas nos Estados Unidos. As empresas alegam que o produto específico não é o mesmo extraído pelo trabalho escravo, mas não abrem as informações de rastreamento. Essa informação não deveria ser pública?
Kevin — É claro que deveria ser informação pública. Quanto a isso, não há dúvidas. Se elas alegam que é assim, deveriam provar.
Repórter Brasil — Também há os grupos de certificação que monitoram as cadeias de fornecedores. Mas, nesses casos, eles falharam. Quem audita as empresas de auditoria?
Kevin — Não existe muita auditoria das auditorias. Há poucos grupos que estão tentando promover investimentos éticos e que irão investigar isso. Estamos no início de um trabalho que pode levar de 20 a 30 anos, enquanto formulamos precisamente como manter essas coisas transparentes e sob controle.
Repórter Brasil — Qual é a legislação mais eficaz para proibir os produtos ligados ao trabalho escravo?
Kevin — A “Lista Suja” do trabalho escravo no Brasil, se fosse feita corretamente [lista de empresas responsabilizadas pelo trabalho escravo, cuja publicação está atualmente suspensa pelo governo brasileiro]. Eu gostaria de ver mais países usando esse sistema, ele é muito poderoso.
Além disso, o sistema que foi implementado no estado da Califórnia, e agora no Reino Unido, onde se exige uma certa transparência de grandes empresas. A lei se aplica a empresas que estejam acima de um determinado tamanho. Elas têm que informar, todos os anos, o que estão fazendo para investigar e para eliminar o trabalho escravo e o tráfico de sua cadeia de fornecedores.
É um bom ponto de partida. Mas elas só precisam fazer isso: informar. Se encontrarem escravidão em sua cadeia de fornecedores, eles não são punidos. Talvez isso soe fraco, mas só conseguimos aprovar essa lei na Califórnia porque os grupos empresariais estavam dispostos a apoiar uma lei que não incluía sanções.
Se conseguissem falar livremente sobre seus problemas em vez de mantê-los em segredo, elas teriam a oportunidade de abrir o jogo, com todos no mesmo nível. Isso criaria um contexto onde se poderia começar a abrir a coisa toda para o debate e fazer com que as pessoas começassem a agir sem se sentir ameaçadas.
A ideia era criar uma situação em que elas não se sentissem como se estivessem apenas apontando uma arma contra suas próprias cabeças. Na verdade, elas tiveram a oportunidade de serem transparentes e começarem a avançar na direção do próximo passo.
Repórter Brasil — Você vê uma perspectiva real de quando esse será dado esse próximo passo?
Kevin — Não. Em muitos países, as pessoas estão debatendo a escravidão nas cadeias de fornecedores. Algum país vai dizer: os relatórios não são bons o suficiente, vamos tornar a lei um pouco mais forte”. Eu acho que essas leis implesmente continuarão ficando mais fortes com o tempo, mas eu gostaria que fosse mais rápido.
Eu tenho acompanhado um projeto de lei que visa colocar 250 milhões de dólares no trabalho de combate à escravidão: a Lei Corker, [End Modern Slavery Initiative Act, proposta pelo senador Bob Corker, do Tennessee]. É um projeto de lei recente no congresso dos Estados Unidos, que supostamente faz esse tipo de investimento no combate à escravidão. [O governo dos EUA] vai alocar 250 milhões ao longo do tempo e espera que outras organizações e países também contribuam. Eu sei que eles já conversaram com o governo do Reino Unido.
Já existem outras legislações internacionais mais eficazes na proibição de produtos ligados à escravidão?
Kevin — Eu não sei se eu poderia apontar algum lugar que esteja fazendo um trabalho muito bom. É interessante que, nos Estados Unidos, eles têm uma série de leis aprovadas, e algumas datam da década de 1930, que são muito fortes, mas parece que não são necessariamente aplicadas. Na maioria dos países, há questões relacionadas a jurisdição, então eles dizem: “Nós não queremos que nada importado que contenha escravidão”, mas sua jurisdição não chega a outros países, pois eles não podem ir a outros países para inspecionar. Então eles têm que confiar em empresas que paguem auditores. Lamento dizer, mas sinto que ainda estamos engatinhando.
Essa entrevista faz parte do especial: Profissão Madeireiro