Humilhações, fome e cansaço eram parte da rotina de uma imigrante das Filipinas que trabalhava como empregada doméstica e babá em casa de alta renda em São Paulo. As condições foram consideradas como análogas às de escravo pelo Ministério do Trabalho, que está fiscalizando 130 empregadores de imigrantes em serviços domésticos. (Leia mais)
Em entrevista à Repórter Brasil, a imigrante detalha como chegou ao país e lidou com os dois meses no emprego antes de fugir. Para evitar represálias e garantir a segurança da trabalhadora, as identidades da filipina e do empregador não serão reveladas.
***
“Minha vida nas Filipinas era normal. Sou separada e decidi trabalhar longe da minha família para ganhar mais e bancar os estudos dos meus filhos. Eu tenho três, o mais velho tem 19 anos, e o mais novo, 13. Daqui a pouco eles vão estar na universidade, e sou eu que os sustento.
Eu trabalhava com cuidados médicos e ouvi no rádio e em folhetos sobre a promessa de melhores oportunidades no Brasil, então eu me inscrevi para isso. Quando fui ao escritório da agência [ainda nas Filipinas], me falaram qual era o salário [R$ 1.800] e me prometeram que, após dois anos, poderia ficar aqui permanentemente.
Já trabalhei como doméstica em três outros países, Hong Kong era o mais legal. Mas lá eu trabalharia mais e teria que sair do país e renovar o visto a cada dois anos, o que é muito complicado. Eu escolhi o Brasil pelo visto.
Rotina
Quando cheguei ao Brasil, fui direto do aeroporto para a casa do patrão. A agência explica na frente do empregador qual é o meu trabalho, o que pode e o que não pode. Explicaram que eu tinha que descansar por dois dias antes de começar o trabalho. Mas meus patrões já me acordaram na primeira manhã e me forçaram a trabalhar. De qualquer forma, era ok. Eu estava aqui para trabalhar, não para fazer turismo.
Eu começava a trabalhar às 6h, porque as crianças acordavam para ir à escola. Mas eu levantava antes porque precisava tomar banho e ficar apresentável. Eu fazia o café da manhã para eles e os vestia. Então tinha que limpar a cozinha enquanto também cuidava de um bebê até a chegada de uma babá, às 9h.
Eu tinha a agenda fechada. Eram 15 minutos para passear com o cachorro, mas às vezes ele demorava 30 minutos para dar a volta. Quando retornava, a patroa estava brava, reclamando. O que eu deveria fazer, mandar o cachorro fazer cocô mais rápido?
A casa era grande, tinha muito vidro. Se a patroa não gostasse ou achasse uma mancha, eu tinha que fazer tudo de novo. Ela deitava no chão para buscar manchas ou outra coisa que não estava perfeita. Eu não tinha descanso.
Humilhações
Ela gritava comigo, me chamava de estúpida. Isso quando eu ainda estava me ajustando com a cultura daqui. Eu não sou perfeita, mas estava tentando ser. Ela me dizia todo dia que não gostava de mim. Eu perguntava por que ela tinha me contratado. Dizia: “Se você não gosta de mim, por que não me demite e me manda embora para as Filipinas?”
No meu dia de folga eu perguntei: “Onde é o banco? Onde estão as lojas? Onde eu consigo comprar um cartão para o celular?” Eles não me ajudaram. Disseram para eu sair andando. Então eu fui para fora, mas as pessoas não entendiam inglês e eu comecei a chorar.
Foram duas horas de caminhada para a estação mais próxima. Uma senhora com um cachorro me explicou como chegar lá. Eu queria trocar uns dólares para comprar um biscoito, um pão. Mas, quando eu cheguei, ninguém me entendia.
Fome
A minha comida era diferente da comida deles.
A patroa comprava quatro pedaços de filé de frango para mim, para durar uma semana. Eu trabalhava pesado e era acostumada com comida pesada das Filipinas. Mas, se eu pedisse dois pacotes de pão de forma, ela trazia só um. Às vezes eu pedia um ovo, e ela dizia não. Uma vez eu “roubei” uma banana da cozinha para comer.
Ela comprava mais comida para o cachorro do que para mim. Eu cozinhava [carne] para ele [cão]. Às vezes, fazia comida a mais para o cachorro e guardava metade para mim. Talvez por isso eu tenha sido hospitalizada.
Um dia, senti que ia desabar. Perguntei ao meu patrão, que era uma pessoa bem melhor que a minha patroa, se eu podia descansar. Eu não conseguia mais caminhar, fui deitar. Mesmo deitada, eu sentia que o mundo estava girando, só saí da cama para vomitar e ir ao banheiro.
No dia de folga, fui ao hospital e voltei com receitas médicas. Pedi um adiantamento para comprar os remédios, e eles disseram que não tinham dinheiro. Pedi de novo, a patroa ficou brava e me deu R$ 30. Eles perguntaram onde estava o meu salário, eu respondi que mandei tudo para as Filipinas. Porque, se alguma coisa acontecesse comigo, eu já teria pagado o que peguei emprestado do banco [dívida feita para pagar a viagem].
Fuga
Um dia nós brigamos por causa de um copo sujo. A patroa me disse que essa seria nossa última discussão. Quando ela foi embora, a porta estava trancada. Eu fiquei assustada. Qual seria a próxima coisa que ela iria fazer?
Na outra tarde me pagaram o salário. De noite, achei que seria hospitalizada de novo, por causa da comida. Fiquei pensando se deveria ir ou não. Às 5h, fui embora.
Eu achei que não ia sobreviver. Esse foi o motivo que me fez ir embora. Procurei ajuda de outras filipinas e hoje trabalho como doméstica em outro lugar de São Paulo.”
Leia também a reportagem: Domésticas das Filipinas são escravizadas em São Paulo