É feriado e dia de reunir a família em torno do fogão à lenha, mas o clima é de apreensão na casa de Dona Fezinha, como é conhecida a aposentada Maria da Fé Silva, 78. “A gente fica com medo”, diz um dos genros, sem conseguir disfarçar os olhos marejados. Fezinha e outras 461 famílias do acampamento Quilombo Campo Grande, do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), podem ser despejados a qualquer momento por conta de uma decisão judicial do último 7 de novembro.
Há duas décadas, eles vivem na antiga área da Usina Ariadnópolis, em Campo do Meio, sul de Minas Gerais, que faliu em 1996 sem pagar os direitos trabalhistas de seus funcionários. Sem trabalho, sem dinheiro e sem ter para onde ir, ocuparam as terras da usina como forma de receberem as dívidas trabalhistas – e de ganharem a vida com o cultivo da terra.
O prazo para que Fezinha e as quase 2 mil pessoas que moram na área saíssem voluntariamente da terra acabou no dia 14, um dia antes do almoço familiar da agricultora. Desde o dia 15, representantes das comunidades estão sendo multados em R$ 5 mil diários pelo descumprimento da ordem.
Se para os vizinhos a decisão do juiz Walter Zwicker Esbaille Junior, da Vara Agrária de Minas Gerais, parece amarga, para Fezinha é uma segunda injustiça. Ela trabalhou 30 anos na usina sem carteira assinada e foi demitida sem receber qualquer centavo.
“Na época, muita gente falou: ‘eles não vão pagar, porque estão falidos’. Então pensamos: ‘a única solução é vir pra terra’”, lembra a agricultora.
Do apogeu à falência
Criada em 1908 pelo português Manoel Alves de Azevedo, a usina Ariadnópolis teve seu auge na década de 1970, impulsionada pelo Proálcool (Programa Nacional do Álcool), do governo militar.
Nessa época, Rubens Batista, 55 anos, começava acompanhar a família no trabalho pesado da fazenda. Aos oito anos, ele já capinava, cortava e plantava cana nas terras da usina. Como era menor de idade, afirma que recebia metade de um salário mínimo. Segundo Batista, até a década de 1990 não havia carteira assinada e os trabalhadores não tinham direito a férias nem 13º salário.
“Você era obrigado a fazer mais do que a sua capacidade e tinha uma jornada de 10 a 12 horas por dia. Tinha dia que a gente chegava desmaiar no serviço de tanta fraqueza. Eu classifico essa situação como trabalho escravo”.
‘Tinha gente que chegava a desmaiar de tanta fraqueza. Classifico essa situação como trabalho escravo’, diz Rubens Batista sobre as jornadas na Usina Ariadnópolis
Com a falência, muitos ex-trabalhadores da companhia não chegaram a acionar a Justiça, porque não acreditavam que ganhariam os valores devidos ou porque não tinham dinheiro para entrar com o processo. Na época, dizem, era preciso ter R$ 50 para falar com o advogado.
O advogado da companhia, Diego Cruvinel, diz que a empresa não tem mais dívidas com os antigos funcionários. “Essas questões já foram discutidas na Justiça do Trabalho, foram analisadas e julgadas. O importante é que, o que a empresa foi obrigada, ele já pagou”, diz. A questão é que os direitos foram pagos apenas para aqueles que tiveram recursos para entrar na Justiça.
A falência teve um efeito cascata na cidade, levando várias empresas a fecharem em Campo do Meio. “Depois que a usina faliu aqui virou uma cidade-fantasma. Eles [sem-terra] chegaram e trouxeram renda, movimentaram a cidade, ajudaram o comércio”, diz Nilson Puras, 42, dono de um açougue na cidade, que recolheu cerca de 70 assinaturas de lojistas contrários ao despejo das famílias do Quilombo Campo Grande.
Desde que ocuparam a fazenda, em 1998, os trabalhadores rurais do MST sofreram vários despejos. O primeiro aconteceu, poucos meses depois, na véspera do Natal de 1998. As moradias de lona e as pequenas lavouras foram rapidamente destruídas pela polícia. No ano seguinte, porém, os agricultores voltaram em maior número e ocuparam uma área mais extensa da antiga fazenda.
“Estamos há 20 anos nessa luta, sofremos vários despejos, mas a gente vem resistindo. Ocupamos em 1998 sabendo que o agronegócio não ia dar mais emprego, porque eles mecanizaram as fazendas”, diz Batista.
‘Depois que a usina faliu, aqui virou uma cidade-fantasma. Eles [sem-terra] chegaram e trouxeram renda, movimentaram a cidade, ajudaram o comércio’, diz um comerciante da cidade
De lá para cá, o grupo cresceu. Hoje cada família tem em média oito de hectares terra, boa parte não usa agrotóxicos nem sementes transgênicas. Dessa transição agroecológica, surgiu o café orgânico Guaií, um dos principais produtos da cooperativa de agricultura familiar. Somando as versões orgânica e comum, a comunidade produz mais de 8 mil sacas por ano. Além das feiras do MST, que representam 40% das vendas, o café Guaií é comercializado no Sul de Minas, em São Paulo e no Rio Grande do Sul.
A família Souza Moreira
Quem pede o despejo das famílias é o empresário Jovane de Souza Moreira, que tenta reativar a usina falida em um acordo comercial com um dos maiores produtores de café do país. “Faça sol e faça chuva, ele está sempre de terno, bem arrumado. Gosta bastante de uma gravata vermelha”, conta um dos acampados sobre o “adversário” que mora ali ao lado.
Volta e meia a presença do empresário é notada pelo carro com vidros escuros (“cada dia ele vem com veículo diferente”), que corta rapidamente a estrada que liga a cidade à antiga usina – hoje um amontoado de ruínas que pode ser visto de longe. A estrada é palco de conflitos constantes entre a família Souza Moreira e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Há relatos, por exemplo, de episódios em que Jovane teria jogado o carro sobre assentados ou sobre crianças que usavam o transporte escolar.
Em outro momento, ele teria descido do carro para ameaçar um funcionário da Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais) que instalava energia elétrica nas casas do assentamento, dizendo que as terras eram suas. Apesar da tentativa de intimidação, cerca de 329 casas receberam a instalação.
O advogado do empresário nega as acusações e diz que a convivência com os assentados é pacífica. “Eu andei na área um dia antes da vistoria do juiz, não senti animosidade, passamos e as pessoas o cumprimentaram”, afirma Cruvinel.
Reservado, um dos poucos lugares que o empresário frequenta quando está em Campo do Meio é a Igreja Congregação Cristã no Brasil. “O Jovane é um sujeito religioso, dá uma cesta-básica para algumas pessoas, faz trabalho voluntário em Alfenas. Ele não tem essa natureza de ir para o embate”, diz o advogado.
‘O Jovane não tem nem arma na casa dele. Aliás, se tivesse esse perfil, certamente essas pessoas já teriam sido alvejadas’, disse o advogado da família
Menos discreto é seu filho, o empresário Jovane de Souza Moreira Junior, conhecido por andar de moto ou de carro na estrada que leva à sede da fazenda. Ele foi um dos coordenadores da campanha do deputado federal Marcelo Álvaro Antônio (PSL), o mais votado nas eleições deste ano em Minas Gerais.
Eu seu perfil no Facebook, o empresário tem várias postagens em apoio ao presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) e contrárias ao PT. “Precisamos que a PM cumpra a ordem judicial que diz que os invasores do MST tem (sic) até dia 14/11/18 para a saída pacífica, e a partir do dia 15/11/18 será usada a força policial para o cumprimento fiel da lei e da ordem”, publicou em sua página na semana passada.
Em 2011, o então vereador Camilo de Lelis Fernandes (PCdoB) disse ter sido ameaçado por Jovane Junior e dois de seus comparsas. Armado, ele teria entrado na frente do carro do vereador e dito: “você vai morrer agora porque o seu povo invadiu a usina do meu pai”. À época, um grupo do MST havia ocupado a sede da fazenda para pressionar por uma resolução da disputa pela área.
“O Jovane não tem nem arma na casa dele. Aliás, se tivesse esse perfil, certamente essas pessoas já teriam sido alvejadas. Ao contrário, ele sempre buscou o caminho certo, da Justiça”, contesta o advogado.
Avanço do agronegócio
O principal argumento da família de Jovane para o pedido de urgência de despejo das famílias da área é um contrato firmado há dois anos com a empresa Jodil Agropecuária e Participações Ltda., cujo proprietário é João Faria da Silva, que já foi chamado de “maior produtor e exportador individual de café do país” por publicações especializadas. Entre os principais compradores dos produtos do empresário estão a Nestlé e a holandesa Jacobs Douwe Egberts (JDE), dona das marcas Pilão, Café do Ponto, Cacique, Café Pelé e Damasco. A JDE afirma que “não está comprando” café da marca Terra Forte, de João Faria. Leia aqui nota na íntegra.
‘Tenho medo, porque a gente que é pobre não pode perder isso daqui’, diz Francisco Luiz Meireles, 67, sobre as terras em que vive há 20 anos
A ofensiva do grupo começou em 2015, um ano antes, quando o Governo de Minas publicou um decreto de desapropriação da área da antiga usina para que ela fosse destinada à reforma agrária. Apesar de o acordo ter sido fechado com o síndico da massa falida, Jovane Moreira questionou na Justiça a validade do documento. O decreto acabou suspenso e aguarda julgamento de recurso pelo Tribunal de Justiça.
Jovane começou então uma corrida para pedir a recuperação judicial da companhia. O acordo com João Faria permitiu que ele quitasse em 2017 as dívidas com os trabalhadores que haviam entrado na Justiça. O empresário também quitou os débitos municipais e estaduais. Há, porém, uma dívida de quase R$ 400 milhões com a União, referentes à contribuições previdenciárias, FGTS e impostos federais, que foi negociada e parcelada por meio do Refis, programa do governo que facilita o refinanciamento de dívidas.
O documento firmado prevê o arrendamento de parte dos 4 mil hectares da terra para o plantio de café, enquanto outra parcela seria destinada ao cultivo da cana-de-açúcar. A empresa diz que o acordo vai gerar de 300 a 400 empregos diretos na propriedade. O argumento funcionou e, na decisão do último dia 7, o juiz justifica a retirada das famílias por conta do “rentável contrato de arrendamento rural”.
Distantes da sala do magistrado, as famílias aguardam com esperança uma suspensão da ordem de despejo. “Tenho medo, porque a gente que é pobre não pode perder isso daqui”, diz Francisco Luiz Meireles, 67, que trabalhou desde os 8 anos de idade em fazendas da região.
“Se eu for para a cidade eu morro logo, a minha natureza é trabalhar na terra. Quem é nascido e criado na roça não serve para a cidade não”, diz o agricultor, que não tem filhos e mora com a esposa em um dos lotes prometidos a João Faria.
Nota da redação: a matéria foi alterada no dia 30 de novembro para inclusão do posicionamento enviado pela JDE
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2017 2606 6/DGB 0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil