Roteiro referente ao programa Trabalheira #5: Vamos viver para ver a Renda Básica Universal?.
Carlos Juliano Barros
Ana, você curte Simpsons?
Ana Aranha
Cara, você sempre abre nossos programas com as perguntas mais aleatórias e non-sense. Mas, sim, eu adoro os Simpsons, Caju. Por quê?
Carlos Juliano Barros
É que tinha uma época da minha vida em que eu era viciado em Simpsons. Assistia sempre. E um dos episódios que eu mais curto é aquele em que a família faz uma viagem de férias pro Alasca. Lembra?
Ana Aranha
Putz, acho que não…
Carlos Juliano Barros
Resumindo: os Simpsons vão pro Alasca. Eles andam de carro por aquela paisagem maravilhosa de pinheiros e geleiras. Eis que eles param numa guarita. Daí, aparece um cara todo sorridente que diz pro Homer: “Bem-vindos ao Alasca! Toma aqui mil dólares” – e estica a mão com o dinheiro. O Homer fica surpreso, aceita a grana, é claro, e pergunta: “por que cê tá me dando esse dinheiro?” O cara responde: “Aqui, a gente paga mil dólares a cada cidadão pra deixar as indústrias de petróleo detonarem as nossas belezas naturais”.
Ana Aranha
Sensacional! E até que não foi nada aleatório, já entramos no assunto do nosso programa de hoje: a Renda Básica Universal. Quer dizer que a grana pra esse programa no Alasca, que bem ou mal é uma referência no mundo todo, vem do petróleo?
Carlos Juliano Barros
Exatamente. A gente abriu com os Simpsons recebendo dinheiro lá no Alasca, mas tem um exemplo muito mais próximo dos brasileiros: a cidade de Maricá, no Rio de Janeiro. Lá, os royalties do petróleo também bancam um programa de Renda Básica desde o ano passado.
Ana Aranha
E todo mundo recebe?
Carlos Juliano Barros
Então, é uma iniciativa que ainda não chega pra todos os moradores . No lançamento do programa, eram umas 50 mil pessoas beneficiadas, que recebiam em torno de R$ 130 reais. Mas o plano é expandir. E lá tem uma particularidade muito interessante: Maricá tem uma moeda local chamada “mumbuca” — o nome é uma homenagem ao rio que corta a cidade. Uma mumbuca vale um real. A Renda Básica oferecida à população precisa ser gasta nessa moeda, que só é aceita no comércio de Maricá, justamente pra movimentar a economia da cidade.
Ana Aranha
E pensar que o ex-prefeito do Rio, o Eduardo Paes, tirou a maior onda com Maricá naquela conversa grampeada com o Lula. Lembra?
Carlos Juliano Barros
Essa não dá pra esquecer, né? Eu até cogitei botar aquele áudio aqui no programa, mas em respeito aos cidadãos maricaenses não vou cutucar essa ferida.
Ana Aranha
É… melhor deixar pra lá! E vamos ao nosso quinto episódio: seja bem-vinda, seja bem-vindo ao Trabalheira, um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil. O assunto do nosso programa de hoje, como a gente já adiantou, é a Renda Básica Universal. Esse é um tema que ganhou ainda mais força com a pandemia do novo coronavírus. E nesse episódio a gente também vai falar do auxílio emergencial criado pra tentar diminuir o estrago dessa crise toda. Eu sou a Ana Aranha.
Carlos Juliano Barros
E eu sou o Carlos Juliano Barros, o Caju. Aqui no Trabalheira o que a gente discute é o futuro do trabalho. Toda quarta tem episódio novo, no feed da Rádio Batente, procura lá no seu tocador de podcasts preferido ou no YouTube, se preferir. E fica ligado nas redes sociais da Repórter Brasil, que sempre tem novidade.
Ana Aranha
Caju, se a gente fizer um top cinco das palavras da moda, com certeza “polarização” entra na lista, né? Hoje a gente fala o tempo todo de polarização na política — e nem precisa explicar, tenho certeza que todo mundo sabe do que eu tô falando. A gente também já falou, no primeiro episódio aqui do Trabalheira, sobre a ideia de “polarização” do mercado de trabalho – que é um conceito muito usado pelos economistas.
É aquela imagem de que numa ponta tem uma pequena minoria com ótimos empregos e, na outra ponta, uma massa de gente se digladiando por bicos e trabalhos precários. Mas a ideia de criar uma Renda Básica Universal parece ser um dos raros consensos com capacidade de driblar as polarizações – tanto a política quanto a econômica.
Carlos Juliano Barros
É, de fato, essa proposta agrada muita gente, da direita à esquerda. Entre os simpatizantes dessa ideia, tem de tudo: de empreendedores famosos do Vale do Silício, como o Mark Zuckerberg do Facebook, a figuras importantes mais à esquerda. Aqui no Brasil, o mais conhecido é com certeza o Eduardo Suplicy, ex-senador e vereador do PT de São Paulo.
O Suplicy é o autor da lei da chamada “Renda Básica da Cidadania”. Essa lei foi aprovada pelo Congresso Nacional em 2004, mas acabou que nunca foi regulamentada e, portanto, nunca entrou em vigor.
Ana Aranha
Pois é. A ideia de uma “Renda Básica” é defendida pelas mais variadas correntes ideológicas. Mas é aquela velha história: o diabo mora nos detalhes. O debate principal é sobre como implementar um programa desse tipo. Essa discussão vem fervendo no mundo inteiro por vários motivos. Tem a questão do aumento da concentração de renda e da desigualdade social. Tem também o receio de que a robotização e a inteligência artificial eliminem cada vez mais empregos – principalmente os “menos qualificados”, né, como a gente já discutiu no primeiro episódio. E, além disso, a Renda Básica também pode ser um instrumento de regulação do mercado de trabalho.
A gente falou sobre isso com o professor Vitor Filgueiras, do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia.
Vitor Filgueiras
Renda mínima universal, a despeito de muitas pessoas não perceberem, é uma forma de regulação do trabalho. Não pelo lado da demanda. Regulação pelo lado da demanda é colocar regra para o empregador. Regulação do trabalho pelo lado da oferta é dar renda para os trabalhadores para eles terem melhores condições de negociação no mercado de trabalho, porque eles são menos vulneráveis — agora eles têm uma renda mínima.
Ana Aranha
E claro que não tem como deixar de lado a questão da pandemia do novo coronavírus, que obrigou vários governos, inclusive o brasileiro, a tomar medidas que “flertam” com a ideia da renda básica. E quem sabe essa experiência não veio pra ficar?
Carlos Juliano Barros
Pode até ser, Ana, e aí tá uma pista de por que esse tema é tão importante pra a gente pensar no futuro do trabalho. Mas a verdade é que, no presente, essa experiência ainda encontra muita resistência. Todo mundo lembra que no mês de abril o Congresso aprovou o auxílio emergencial de R$ 600, que vem se estendendo desde então. Mas pouca gente sabe que essa lei só saiu desse jeito por causa de uma ampla mobilização, muito bem feita, por várias entidades da sociedade civil. Até porque o plano inicial do governo era bem mais tímido — um auxílio de R$ 200.
Essas entidades estão reunidas na Rede Brasileira da Renda Básica, que junta ativistas e pesquisadores do Brasil todo. A Tatiana Roque, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é a vice-presidente dessa Rede.
Tatiana Roque
A gente se juntou para fazer uma petição. Trouxemos várias organizações da sociedade civil, 500 mil assinaturas, intelectuais, figuras públicas. E a gente conseguiu uma negociação muito boa com o Congresso Nacional através de uma comissão que tinha sido formada pra isso. Ter uma proposta da sociedade civil foi bom porque criou um consenso em cima de uma proposta. Não foi exatamente o que a gente gostaria — porque a nossa proposta era mais longa e era para atingir mais gente. Então, a proposta aprovada foi essa. Foi razoável. A proposta em si foi razoável. O que foi muito ruim foi a implementação pelo governo. O governo enrolou muito, criou muitos obstáculos, até para boicotar o isolamento. Esse governo sempre deixou bem claro que era contra o isolamento e a chantagem que eles usavam era a necessidade de as pessoas tinham de trabalhar pra ter renda. Uma renda garantida ia atrapalhar esse plano.
Ana Aranha
Nossa… eu fico só pensando o que teria acontecido se esses R$ 600 não tivessem sido aprovados… A Tatiana tá coberta de razão: o governo demorou demais pra liberar o auxílio. E o curioso é que, mesmo com toda a demora e até relutância em liberar, essa medida é o que agora tá salvando a popularidade do governo, que tá atolado num monte de crise…
Carlos Juliano Barros
É nois, Queiroz!
Ana Aranha
Mas o foco aqui do Trabalheira não é política, apesar desse assunto ter virado mais viciante que qualquer série…
Carlos Juliano Barros
Isso! Vamos voltar à vaca fria. A gente já falou de auxílio emergencial, de Renda Mínima, de Renda Básica da Cidadania, de Renda Básica Universal… tá virando uma salada, vamos diferenciar as coisas.
Ana Aranha
Sim… Tem muita confusão sobre esse assunto. Por exemplo: qual é a diferença entre um programa de Renda Básica como o do Alaska ou de Maricá e os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família?
Carlos Juliano Barros
É, tem semelhanças óbvias, mas olhando bem, tem diferenças importantes. Por exemplo: quando a gente fala de Renda Básica Universal (e vamos ressaltar a palavra “Universal”), essa renda é um direito incondicional. Já em programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, as pessoas precisam se encaixar em alguns perfis e cumprir algumas condições. Por exemplo: além de serem comprovadamente pobres, elas precisam matricular os filhos na escola. Já a Renda Básica Universal é diferente. É um direito social fundamental, a que todas as pessoas sem exceção têm acesso, sem qualquer ressalva. Pra ficar mais claro ainda: pobre recebe, rico também recebe. Com filho na escola ou não.
Ana Aranha
Tá claro que o auxílio emergencial da pandemia não é uma Renda Básica Universal. Até porque, como o próprio nome diz, ele é de emergência, então, tem prazo de validade.
Mas vamos focar aqui na Renda Básica.
A primeira pessoa a propor um programa de Renda Básica, por assim dizer, foi o Thomas Paine.
Carlos Juliano Barros
O Thomas Paine era inglês ou americano, Ana?
Ana Aranha
Então, ele nasceu na Inglaterra, em 1737. Mas entrou pra História mesmo por ter participado do processo de independência dos Estados Unidos, quarenta anos depois. Ele era um pensador, um ativista. E, como todo revolucionário que se preze, o Thomas Paine escreveu vários manifestos ao longo da vida. Em um deles, chamado de “A Justiça Agrária”, ele faz uma proposta que é um embrião da Renda Básica Universal. Quem vai explicar pra a gente esse conceito é a Rozane Siqueira, professora do Departamento de Economia da Universidade Federal de Pernambuco.
Rozane Siqueira
Então, a ideia de Thomas Paine era que o indivíduo, ao atingir 21 anos, ele receberia um pagamento em dinheiro e esse pagamento era justificado como uma compensação pela perda da propriedade das terras. A terra era vista, os recursos naturais, no caso a terra, como uma propriedade comum, pertencente a toda comunidade. A partir do momento em que a terra se tornou propriedade privada, todos os indivíduos da sociedade teriam direito a receber um pagamento por isso, uma compensação.
Ana Aranha
No começo agora de 2020, a Rozane e o José Ricardo Nogueira, colega dela lá na Federal de Pernambuco, publicaram juntos um artigo no jornal Valor Econômico sobre uma simulação que eles fizeram pra bancar um programa de Renda Básica Universal. O resultado foi surpreendente. Mas segura aí que a gente já vai falar disso.
Nesse mesmo artigo, eles citam um dado do Banco Mundial que mostra bem como esse debate é super atual: só na última década, entre 2010 e 2020, foram publicados nada mais, nada menos que 91 livros sobre Renda Básica Universal.
Carlos Juliano Barros
Caramba! Fazendo as contas, é uma média de um livro a cada mês e meio. O assunto tá mais quente do que nunca mesmo. Mas… vamo voltar umas casas nesse tabuleiro, Ana? A Tatiana Roque diz que existem duas linhas principais de pensamento sobre o tema da Renda Básica. Uma, mais à direita, foi iniciada pelo economista americano Milton Friedman. E outra, mais à esquerda, é ligada ao pensador franco-austríaco André Gorz.
Tatiana Roque
Eu acho que a gente tem duas tradições do debate sobre Renda Básica. Uma que eu acho que a gente pode associar lá atrás ao Milton Friedman, que é essa tradição mais liberal, que começou com o Imposto de Renda Negativo. Mas esses detalhes de como vão ser a cobrança e a tributação, no caso da proposta do Milton Friedman, nem é o mais interessante. O que é mais importante nessa linha é que a proposta tem o objetivo de substituir as instituições do Estado de Bem Estar Social. E uma outra linhagem vem justamente da tradição do André Gorz, que é uma tradição – e não é só o André Gorz – e todo um debate que aconteceu a partir de maio de 68 sobre a categoria do trabalho. Ali já se notava uma certa modificação, um certo esgotamento daquele paradigma do trabalhador da fábrica, que realmente ali pelos anos 70 o modelo do pleno emprego, a partir da organização fabril, dessa ideia do operariado, que teve um auge nos 30 Gloriosos, do pós-guerra até os anos 70, começa realmente a sofrer algumas transformações.
Ana Aranha
Bom, seguindo no nosso sobrevoo aqui pela história da renda básica, vamos falar primeiro do Friedman e de um livro chamado “Capitalismo e Liberdade”, que ele publicou em 1962. O Milton Friedman é um personagem realmente importante do século XX. Mais que um economista vencedor de Prêmio Nobel e tal, ele foi o grande ideólogo do neoliberalismo. E o Friedman era inegavelmente uma pessoa carismática.
Carlos Juliano Barros
Ele tinha uma aura meio de rockstar, né? Fez turnê no mundo inteiro para “divulgar” o livre mercado.
Ana Aranha
É por aí mesmo… Aliás, uma curiosidade: quando o Friedman recebeu o Nobel em 76 em Estocolmo, rolaram vários protestos por causa de uma turnê que ele tinha feito um ano antes, passando pelo Chile. Justamente porque, lá em Santiago, ele foi recebido pelo ditador Augusto Pinochet. Os discípulos do Friedman se incomodam muito com essa história. Dizem que ele nunca endossou o regime autoritário no Chile, que nunca recebeu pagamento do Pinochet. E o próprio Friedman já rebateu essas críticas…
Carlos Juliano Barros
Mas vamos combinar que trocar uma ideia com o Pinochet não é muito coerente com quem sempre defendeu o princípio da liberdade acima de tudo…
Ana Aranha
Pois é… E justamente a equipe de economistas da ditadura mais sanguinária da América do Sul era composta pelos chamados “Chicago Boys”. Esse era o apelido deles porque eles tinham sido alunos do Friedman na Universidade de Chicago.
Carlos Juliano Barros
Assim como o nosso Posto Ipiranga, o Paulo Guedes.
Ana Aranha
Isso! E o Paulo Guedes também passou uma temporada no Chile. Pra quem se interessar por esse assunto, tem um documentário chileno muito bem feito chamado justamente “Chicago Boys”. Recomendo!
Carlos Juliano Barros
Boa dica! Mas vamos falar da proposta do Friedman sobre Renda Básica?
Ana Aranha
Vamo! Tem um capítulo desse livro do Friedman que eu citei, o “Capitalismo e Liberdade”, que chama “Como combater a pobreza”. E ele abre esse capítulo dizendo, abre aspas: “um dos recursos para acabar com a pobreza, e talvez o mais desejável deles, é a… rufem os tambores… CARIDADE”. E logo depois ele escreve que, abre aspas de novo, “um dos principais problemas do crescimento dos programas governamentais de Bem-Estar Social foi o declínio das iniciativas de caridade de pessoas privadas”.
Carlos Juliano Barros
É… eu tenho a leve impressão de que caridade não parece a solução mais eficaz para combater a pobreza. De qualquer maneira, como disse a Tatiana Roque, o Friedman tinha uma certa birra, vamo dizer assim, da ideia de Estado de Bem Estar Social, né?
Ana Aranha
Birra é bondade sua né Caju. O Friedman era totalmente contrário a qualquer programa de Bem Estar Social. Ele criticava absolutamente tudo: benefício pra idosos, lei de salário mínimo, auxílio pra agricultores familiares, legislação sindical…
Carlos Juliano Barros
Mas, em nome da tão maltratada honestidade intelectual, vamo deixar claro que ele não negava que os mais pobres precisassem de ajuda.
Ana Aranha
Sim. O ponto dele é que o governo precisa resolver a vida dos pobres – e que não é inteligente “segmentar” a pobreza, dividir em grupos diferentes, de acordo com cor, gênero, idade, profissão. O argumento central do Friedman é que a forma mais simples e barata de combater a pobreza é dar dinheiro na mão das pessoas pobres pra que elas gastem como elas acharem melhor — ou seja, gastando em serviços privados, claro.
E aí, ainda nesse capítulo sobre “Como combater a pobreza”, o Friedman lança a ideia do Imposto de Renda Negativo. Que é o seguinte: abaixo de um certo nível de rendimento, as pessoas não pagariam imposto, elas receberiam recursos do governo.
Carlos Juliano Barros
Mas alguém ia ter que pagar por isso…
Ana Aranha
Sim, e o Friedman reconhece que esse programa tem implicações políticas complicadíssimas. Ele próprio se pergunta: como convencer as pessoas a pagarem mais imposto pra que o Estado transfira renda aos mais pobres?
Carlos Juliano Barros
Esse é um conflito difícil de resolver, né? Primeiro porque os mais ricos em geral resistem à ideia de subsidiar os mais pobres e segundo porque, bom, ninguém gosta de pagar imposto… Até porque, seguindo a lógica neoliberal, desigualdade social não é necessariamente um problema, né?
Ana Aranha
Esse é um ponto central nessa discussão. Nesse mesmo livro, o Friedman faz questão de frisar as diferenças entre “liberais” e “igualitaristas”. Ele diz que sociedades liberais tendem a ser mais igualitárias, mas que esse não é o objetivo perseguido. O foco é garantir a liberdade… de mercado. E como você bem disse, Caju, a desigualdade social não é considerada um problema pelo pensamento liberal. A pobreza sim é vista como um problema. A desigualdade, não.
Carlos Juliano Barros
Na campanha pra presidente em 2018, o candidato pelo Partido Novo — o João Amoêdo — bateu muito nessa tecla.
Ana Aranha
E tem uma piadinha que os críticos do Friedman adoram fazer: “no liberalismo, você é livre até pra morrer de fome”.
Carlos Juliano Barros
Muito bom! Haja caridade… Beleza, acho que o conceito de renda básica do Friedman tá claro. Vamos passar pro André Gorz, que é outro papa dessa discussão?
Ana Aranha
Bora!
Carlos Juliano Barros
Então, o André Gorz foi um pensador muito influente daquela geração de Maio de 68 — que reivindicava liberdade, autonomia e justiça social, mas de um jeito bem diferente do que os liberais defendem. Só um parênteses: o Gorz também escreveu um livro muito bonito chamado “Carta a D”. É uma declaração de amor à mulher dele, que sofria de uma doença degenerativa grave, e com quem ele viveu por mais de 60 anos. Os dois se suicidaram juntos.
Ana Aranha
Nossa… que história! Não sei se bonita ou triste.
Carlos Juliano Barros
Acho que as duas coisas, né? E o livro vale muito. Mas vamos voltar ao nosso tema. Uma ideia importante pro André Gorz, que ele discute no livro “Metamorfoses do Trabalho”, é o princípio de, abre aspas, “trabalhar menos pra que todos trabalhem”. O ponto do André Gorz é que as pessoas precisam de TEMPO! Tempo pra cuidar de casa, da família, do bairro.
Vamos ouvir o André Gorz falando em francês ao fundo… que chique!
Ana Aranha
Caju, pensando aqui… isso também não deixa de ser uma alternativa ao Estado do Bem Estar Social, né?
Carlos Juliano Barros
Exato. Em vez de sobrecarregar os serviços públicos e as instituições de assistência do Estado, a ideia é que as próprias pessoas cuidem, como eu disse, da casa, da família e do bairro. Mas sem contratar serviços privados pra isso, né? Em vez de pagar uma babá, eu cuido das crianças. Em vez de pagar uma faxineira, eu limpo a minha privada. Mas pra tudo isso é preciso ter tempo. E pra ter tempo tem que trabalhar menos. Como o progresso tecnológico permite produzir mais com menos trabalho, esse tempo aparentemente “livre” vai ser ocupado por uma série de tarefas do dia-a-dia, e pode sim ser estendido às pessoas. Mas desde que uma renda básica seja garantida a todos.
Ana Aranha
Entendi. É uma lógica bem diferente mesmo do Friedman e dos seus discípulos.
Carlos Juliano Barros
Completamente! No “Metamorfoses do Trabalho”, o André Gorz critica muito a lógica neoliberal da Renda Básica. Ele diz que a proposta de Renda Básica neoliberal, abre aspas, “deve ser igual ou inferior ao mínimo da subsistência”. Na prática, as pessoas continuariam sujeitas a trabalhos precários pra complementar o orçamento, de acordo com o que o mercado pedir. No fim das contas, isso não impediria a divisão da sociedade entre, abre aspas de novo, “uma classe de trabalhadores ativos em tempo integral e uma massa marginalizada de semidesempregados e de desempregados”.
Ana Aranha
E olhaí o conceito de polarização de novo!
Carlos Juliano Barros
Pois é! Bom… A gente já falou do Thomas Paine, do Milton Friedman e do André Gorz. Então, a gente pode passar pra um novo tópico: como implementar de fato um programa de Renda Básica Universal? E, principalmente, como bancar uma iniciativa como essa?
A Mônica De Bôlle, aquela economista famosa que é professora da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, fez um vídeo no canal de Youtube dela — que é bem bacana, por sinal! — falando sobre esse assunto. Peguei um trechinho aqui pra ajudar a gente a entender.
Mônica de Bolle
A renda básica universal é uma ideia muito simples. É você prover uma renda mínima pra todas as pessoas, do mais pobre ao mais rico, e ao mesmo tempo instituir um Imposto de Renda progressivo para que os mais ricos sejam 100% tributados naquela renda adicional que receberam do governo e portanto devolvam aquela renda aos cofres públicos.O que a gente precisa fazer no futuro, inclusive para custear a Renda Básica Universal, é aquilo que eu tenho falado milhões de vezes: a gente precisa tributar mais renda e patrimônio e tributar menos consumo e produção. Precisa fazer a tal inversão da pirâmide tributária. Eu falo disso todo dia. Isso implicaria ter alíquotas de Imposto de Renda para pessoas que têm rendas muito mais elevadas, fortunas, seria ter uma alíquota sobre renda e patrimônio para essas pessoas muito mais elevada que os 27,5%.
Ana Aranha
Não dá pra falar de Renda Básica Universal sem debater um novo modelo de cobrança de impostos. Ao mesmo tempo, a discussão sobre reforma tributária é uma das coisas mais complexas que existem, né? A proposta da Mônica de Bôlle contém um princípio muito caro à esquerda: a progressividade. Quer dizer: quem ganha mais deve pagar mais imposto. Como os pobres acabam gastando tudo o que eles ganham, um sistema que tributa principalmente o consumo – como é o brasileiro –, tende a sobrecarregar justamente os mais pobres. Então, nessa linha de pensamento, a gente precisaria aumentar os tributos sobre renda e patrimônio, pra tirar dos mais ricos. E, assim, custear a renda básica pros mais pobres. A Tatiana Roque segue a mesma linha da Mônica de Bolle.
Tatiana Roque
Um programa de renda básica na verdade é um programa de redistribuição daquela renda que não deriva do emprego. Portanto, ela deve ser financiada com um taxação severa em relação à riqueza e ao patrimônio. É uma política de distribuição de riqueza. Ou seja, a gente pode achar estranho que a gente defenda o direito de que as pessoas recebam uma renda sem trabalhar. Mas se a gente pensar bem na nossa sociedade tem muita gente que recebe renda sem trabalhar. Toda a renda derivada da propriedade, da herança, do patrimônio, do sistema financeiro, são rendas que os mais ricos acessam sem ser derivadas do seu trabalho.
Carlos Juliano Barros
A Rozane Siqueira, professora da Universidade Federal de Pernambuco, também concorda com esse diagnóstico de que o nosso sistema tributário é regressivo e desigual — ou seja, pesa mais sobre os pobres.
Só que o projeto de Renda Básica que ela propõe vai numa linha bem diferente do que a Mônica de Bolle e a Tatiana Roque defendem. Na simulação que ela e o colega fizeram, que a gente comentou no começo do programa, eles estipularam uma alíquota única de tributação, por volta de 35,7%. Pra ficar claro: todo mundo pagaria o mesmo imposto de 35,7%. E isso garantiria uma Renda Básica Universal de R$ 406 por mês pra todos os cidadãos brasileiros.
Ana Aranha
Peraí… uma alíquota igual pra todo mundo? Mas isso não deixaria o sistema tributário ainda mais regressivo do que é hoje? Ou seja, não prejudicaria ainda mais os pobres?
Carlos Juliano Barros
Pois é… eu fiz a mesmíssima pergunta. Mas ela disse que não.
Rozane Siqueira
Quando você estiver analisando um programa de renda básica universal ou qualquer reforma no sistema de benefícios sociais ou reforma tributária, é importante olhar os dois lados do orçamento conjuntamente. É a combinação do gasto das transferências e dos impostos que vai tornar o sistema progressivo. Esse sistema proposto é muito mais progressivo do que o que a gente tem atualmente.
Ana Aranha
Mas ainda não ficou claro pra mim por que não seria possível cobrar de forma progressiva – quem tem mais, pagando mais.
Carlos Juliano Barros
Então, a Rozane argumenta que até poderiam ser criadas duas faixas de alíquotas, por exemplo. Mas o ponto dela é que, com um sistema simples de entender, quer dizer, todo mundo pagando a mesma coisa, é mais fácil controlar, impedir sonegação, evasão e etc.
Ana Aranha
Entendi. Do ponto de vista técnico e político, é uma proposta sem dúvida mais fácil de encaminhar, né?
Carlos Juliano Barros
Seguindo essa tese, ninguém vai poder reclamar que está subsidiando outra pessoa. Por outro lado, o pagamento da Renda Básica Universal garantiria um aumento de renda bem considerável pros mais pobres, segundo os cálculos da pesquisa.
Rozane Siqueira
Na simulação que a gente fez, 64% dos indivíduos teriam aumento de renda com esse esquema. Para os 10% mais pobres, a renda mais que triplicaria. A alíquota que a gente chama efetiva, ou alíquota real, ela é muito mais baixa ou ela é negativa. Por isso que chamam de Imposto de Renda Negativo para quem está lá embaixo.
Ana Aranha
Tô acompanhando. Mas desculpa o disco riscado: eu ainda não me conformei que um sistema tributário baseado em alíquota única não fica mais pesado pra quem ganha menos.
Carlos Juliano Barros
Na opinião da Rozane, o principal problema do nosso sistema tributário não é o fato de que o imposto poderia ser maior pra quem ganha mais. Pra ela, a questão é que hoje tem muita gente na mesma faixa de renda pagando alíquotas de imposto muito diferentes.
Rozane Siqueira
Pessoas da mesma renda que estão pagando montantes muito diferentes de imposto. Tem gente que não paga nada, tem que paga 5% e outros pagam 30% ou mais.Essa questão da equidade horizontal é mais fundamental que a vertical. Se você pensa no jogo: as regras têm que ser as mesmas para todo mundo. E você tem que conhecer as regras. No sistema em que a gente está atual, é impossível conhecer, a complexidade é tão grande, o custo é altíssimo e a gente não sabe como funciona. E quanto mais você tornar o sistema complicado, em termos de criar mais alíquotas, mais essa inequidade horizontal isso tende a aumentar, a se exacerbar. Tem que corrigir isso. E para isso você precisa de um sistema mais simples e mais abrangente. E aí tem que eliminar isenções, deduções. E aí no caso do Imposto de Renda você pode tornar mais progressivo eliminando isenções, deduções, todas as oportunidades que os indivíduos de renda mais alta têm para reduzir os impostos que ele paga.
Ana Aranha
Acho que entendi agora. Hoje em dia tem muita gente, principalmente os mais ricos, que pagam muito menos imposto do que deveriam. A cobrança de um mesmo percentual pra todo mundo parece regressiva, mas, como ela vai pegar todo mundo e arrecadar o suficiente pra bancar uma Renda Básica Universal – que faz muita diferença na vida dos mais pobres – o sistema acaba ficando mais progressivo e justo.
Carlos Juliano Barros
Resumiu bem a opinião da professora Rozane, Ana. Mas aí a gente entra na seguinte questão: qual é a possibilidade de uma proposta de Renda Básica Universal vingar no Brasil? Parece que também tem um consenso entre os estudiosos de que o caminho é começar devagar. Ou seja, em vez de logo de cara garantir esse direito pra todo mundo, sem exceções, o ideal seria propor algo mais restrito. A Tatiana Roque falou sobre isso.
Tatiana Roque
Das propostas que estão na mesa hoje, eu gosto mais da proposta do pessoal do IPEA, que é dar uma renda básica universal para as crianças. Porque daí você está focando num critério que necessariamente vai favorecer os mais pobres, porque os mais pobres têm mais filhos, mas ao mesmo tempo você não está focalizando nem a pobreza e nem as condições de trabalho.
Ana Aranha
Putz, pior que essa fala da Tatiana me fez lembrar aquelas críticas super preconceituosas ao Bolsa Família. Aquela ideia de que, como só recebe quem tem criança na escola, isso estimularia as pessoas a terem mais filhos, só pra receber o benefício.
Carlos Juliano Barros
Infelizmente, esse discurso ainda existe, claro. Mas parece que tá cada vez mais minoritário.
Ana Aranha
Será, Caju?
Carlos Juliano Barros
Parece que sim, mas tá difícil mesmo prever a opinião das pessoas hoje em dia… Mas o fato é que ,como diz a Tatiana Roque, o Bolsa Família é um “case” de sucesso internacional, referência no mundo todo como política de redução da pobreza. Não é à toa que até o governo do Bolsonaro, que sempre fez críticas muito pesadas e preconceituosas ao Bolsa Família, quer ampliar e rebatizar o programa como Renda Brasil. Até porque uma pesquisa do DataFolha de agosto mostrou que a popularidade do presidente Bolsonaro cresceu bastante com o auxílio emergencial na pandemia. Apesar de, vamos deixar bem claro, mais uma vez, o governo ter inicialmente resistido e MUITO à ideia do auxílio emergencial!
Ana Aranha
Só voltando rapidinho ao Bolsa Família, Caju: hoje os benefícios pagos variam, mas em média cada família recebe R$ 191. Isso dá a dimensão da pobreza no Brasil: a vida de milhões de famílias muda profundamente pra melhor com uma renda que é muito, muito baixa. Tem gente que gasta esse mesmo valor num jantar, numa calça jeans, numa garrafa de vinho… Vamo ouvir de novo a Tatiana Roque sobre essa ideia de vincular a Renda Básica às crianças.
Tatiana Roque
Essa proposta tem isso de interessante: ela é muito justa porque os mais pobres vão receber mais, porque os mais pobres têm mais filhos normalmente. E está mais do que provado de que as pessoas à medida que vão subindo de faixa de renda vão automaticamente tendo menos filhos. Então isso de modo algum cairia naquela visão senso comum de que isso vai incentivar as pessoas a terem mais filhos. Mentira! Isso já está desmentido pelas pesquisas, inclusive pelo próprio Bolsa Família, que foi alvo desse tipo de acusação. E os mais ricos também receberiam. Mas tem uma coisa interessante: eles receberiam em troca da atual dedução de dependentes do Imposto de Renda com dependentes. Na verdade, os mais ricos receberiam, mas deixariam de deduzir do Imposto de Renda os dependentes. Portanto, seria uma forma de aumentar a arrecadação.
Ana Aranha
Taí um debate que não vai se esgotar tão cedo! Mas o nosso tempo aqui já era, Caju!
Carlos Juliano Barros
Verdade! Então vamo nessa, que semana que vem tem mais. No próximo episódio a gente vai responder a seguinte pergunta: qual é o futuro dos sindicatos?
Ana Aranha
Será que ele existe?
Carlos Juliano Barros
O Trabalheira é uma produção da Rádio Novelo pra Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil. A coordenação geral é da Paula Scarpin.
O roteiro original é de minha autoria, Carlos Juliano Barros, com a colaboração da Ana Aranha. O tratamento de roteiro é do Vitor Hugo Brandalise.
A edição e a montagem são da Juliana Santana, da Clara Rellstab e da Mari Romano. A música do programa é composta pela Mari Romano e pelo João Jabace, que também faz a finalização e a mixagem do programa. A coordenação digital é da Juliana Jaeger, e a distribuição é da Bia Ribeiro.
Siga as redes da Repórter Brasil. E vale a pena ouvir os outros episódios que já rolaram na Rádio Batente – não só do Trabalheira, mas também do nosso outro podcast, o Jornadas, que também tá no nosso feed.
Valeu, Ana. Obrigado pelo papo, e até a próxima.
Ana Aranha
Valeu, Caju! Até quarta que vem!
FIM