Um novo plano de comunicação foi elaborado pelo governo federal na tentativa de unir os brasileiros contra a Covid e incentivar a vacinação. A estratégia contava com o presidente Jair Bolsonaro tomando a primeira dose da vacina, com ampla cobertura da imprensa, e até um evento com a primeira-dama Michelle Bolsonaro e o Zé Gotinha, símbolo das campanhas de vacinação no Brasil. Mas nada disso saiu do papel, por causa do próprio presidente.
A Repórter Brasil teve acesso ao novo plano de comunicação do governo federal, elaborado em março pela Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), em parceria com o Ministério da Saúde, para “ampliar as ações de comunicação” na pandemia, em meio à “grave expansão da Covid-19”. Apesar do recorde de internações e mortes nos últimos dois meses, nenhuma das ações envolvendo o presidente foi executada até agora.
Além da imunização de Bolsonaro em evento público, estava prevista a participação do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, na live do presidente em 1º de abril, quando seriam anunciados um mutirão de vacinação no feriado de Páscoa e novas medidas da Saúde. Até hoje, porém, Queiroga não participou de nenhuma transmissão. Na live daquele dia, Bolsonaro insinuou que não precisaria se vacinar por já ter contraído o vírus e supostamente estar protegido – informação errônea que ele já repetiu diversas vezes.
Aos 66 anos, Bolsonaro poderia ter se vacinado desde 3 de abril, segundo o cronograma do Distrito Federal. Uma estrutura chegou a ser montada no Ministério da Saúde para aplicar a dose naquele dia, segundo o jornal Valor Econômico, mas o ato não aconteceu por recusa do presidente.
A vacinação de Bolsonaro seria um “exemplo fundamental” e daria “confiança e segurança” à campanha, principalmente àqueles que ainda hesitam em se vacinar, afirma Inesita Araújo, coordenadora do grupo de Comunicação e Saúde da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). “Não é por acaso que os presidentes se vacinam logo e com grande visibilidade, como estímulo a ‘seguir o exemplo do líder máximo da nação’.”
Sem o exemplo presidencial, o que se vê são casos como o do ministro Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), que revelou ter se vacinado “escondido” em Brasília, seguindo ordens superiores. “Tomei escondido, né, porque a orientação era para todo mundo ir para casa, mas vazou. Não tenho vergonha, não”, disse Ramos em reunião ministerial – sem saber que o encontro era gravado e transmitido em tempo real. O ministro afirmou que tenta convencer o presidente a se vacinar.
O plano de comunicação obtido pela reportagem é assinado pelo almirante Flávio Rocha, que comandou a Secom de 11 de março a 14 de abril. A ideia era aproveitar a transição de poder no Ministério da Saúde – do general Eduardo Pazuello para o médico Queiroga – e apresentar uma nova estratégia de comunicação no enfrentamento à pandemia. Desde que foi anunciado no cargo, o novo ministro destaca a necessidade de unir o Brasil contra o coronavírus. Um dos obstáculos, contudo, é o presidente.
A participação do Zé Gotinha estava prevista também para o dia 3 de abril, em uma ação conjunta com o programa Pátria Voluntária, liderado por Michelle Bolsonaro. Não há detalhes sobre como seria a atuação do personagem símbolo do SUS com o programa de doações empresariais da primeira-dama.
Mutirão cancelado
“Sejamos uma pátria de vacinas, uma pátria de máscaras” era um dos lemas da ação, que incluía também um mutirão de vacinação na Semana Santa. O governo queria aproveitar a entrega de 9 milhões de doses naquele feriado, a maior até então desde o início da campanha, e usar a vacinação de Bolsonaro para colocar o plano em marcha.
Sem o engajamento do presidente, no entanto, apenas ações de menor impacto foram executadas, como a mudança nos avatares dos ministérios nas redes sociais, destacando a campanha “Brasil Imunizado” e a realização de coletivas de imprensa semanais com o novo ministro – o que não ocorria na gestão Pazuello. Propagandas sobre a vacinação também são veiculadas atualmente em rádio e TV (confira o plano na íntegra)
Para a pesquisadora da Abrasco, a associação do Zé Gotinha ao universo das armas, como fez o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), gerou uma onda de protesto nas redes sociais e na imprensa. “O inocente Zé Gotinha foi primeiro armado, depois desqualificado, desfigurado em seu sentido de incentivo à vacinação. Creio que é por isto que sua presença foi diminuída ou quase apagada”, afirma.
Procurada pela Repórter Brasil, a Secom informou que mantém o plano de vacinar o presidente em ato público, mas não informou em qual data. Também não respondeu sobre o evento com a primeira-dama e o Zé Gotinha. “A estratégia de comunicação não pode passar por cima da liberdade dos cidadãos em seu direito de decidir se se vacinarão ou não. Impende informar que a ação ainda não ocorreu, mas é parte do planejamento”, diz a nota.
Sobre o cancelamento do mutirão, a Secom disse que alguns municípios decidiram interromper a vacinação em alguns dias do feriado, o que descaracterizaria o perfil de mutirão. “Contudo, comemoramos um total de 3,9 milhões de doses aplicadas de 29/03 a 02/04, segundo dados do DataSUS, com pico de 1.070.564 doses em 30/03”. Veja as respostas da Secom na íntegra.
O Ministério da Saúde e a Casa Civil foram procuradas, mas não se manifestaram.
CPI da Covid
As campanhas de comunicação do governo federal sobre a pandemia são alvo de investigação do Tribunal de Contas da União e do Ministério Público Federal e também estão no radar da CPI da Covid no Senado.
“A participação do presidente da República numa campanha como essa, especialmente sendo vacinado e isso publicamente divulgado a toda a população brasileira, teria um papel importantíssimo, como uma forma de reforçar a credibilidade da vacina e a necessidade de vacinação”, diz o senador Humberto Costa (PT-PE), que é ex-ministro da Saúde (2003-2005) e membro da CPI.
‘A recusa do presidente em participar de um evento como esse é uma demonstração clara do pouco caso que ele faz ao enfrentamento à pandemia’, afirma.
Em dezembro, a Repórter Brasil publicou reportagem mostrando que as propagandas da Saúde na gestão de Pazuello deixaram as medidas de prevenção em segundo plano e focaram na reabertura do comércio e até na exaltação do agronegócio.
O plano atual da Secom foi enviado pela União à Justiça Federal no Rio Grande do Sul, onde corre uma ação contra o governo federal pela adoção de um plano de comunicação efetivo contra a Covid. O pedido foi feito por 38 procuradores da República em 24 estados e no Distrito Federal. A União argumentou que o pedido não deveria ser aceito pois já existiria um plano de comunicação implementado.
Mas a magistrada Paula Beck Bohn rejeitou o argumento e, em decisão liminar, determinou que a União apresente um novo plano para enfrentar a pandemia. Para a juíza, o plano do governo não pode deixar de lado as medidas de prevenção. “A vacinação de fato vem ocorrendo, entretanto, isoladamente, não tem o poder de arrefecer o avanço da pandemia, considerando o gravíssimo momento da crise sanitária nacional.”
Bohn ressaltou a importância de envolver autoridades na orientação da população, tendo em vista o potencial midiático dessa participação, e disse, por exemplo, que o uso “reiterado e contínuo” de máscaras por autoridades federais seria um “ato simples e de amplo efeito”.
Sem citar Bolsonaro, a magistrada afirmou que “diversas pessoas vinculadas à administração” continuam fazendo aparições públicas sem máscara e sem respeitar distanciamento social, e que essa postura transmite à população a mensagem de que esses hábitos não evitam a transmissão do vírus. Ela criticou ainda a priorização de mídias digitais nas ações de comunicação, ressaltando que campanhas em rádio e TV seriam mais efetivas.
Em outro desdobramento envolvendo a comunicação do governo na pandemia, a Justiça Federal em São Paulo proibiu a União de fazer propaganda sobre o “tratamento precoce”, em razão de uma campanha da Secom que usou influenciadores para espalhar mensagem em prol do “atendimento precoce”, em caso revelado pela Agência Pública. Segundo a decisão, apesar de usar a palavra “atendimento”, a referência das campanhas é aos medicamentos do chamado “kit covid” e ao suposto “tratamento precoce”. Ainda de acordo com a decisão, as propagandas do governo deveriam ser “claras e transparentes”, mas a campanha em questão no mínimo induz a população ao erro.
Mesmo após o Brasil superar a marca de 400 mil mortes, a comunicação do governo ainda não conseguiu escalar em suas campanhas dois garotos-propaganda capazes de engajar a população contra a Covid: o presidente da República e o Zé Gotinha.