Confira a íntegra do roteiro do episódio Trabalheira #13

Trabalheira é um programa da Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil, cujo objetivo é discutir o futuro do trabalho
 14/07/2021

Roteiro referente ao programa Trabalheira #13: “Você trabalha ou é só artista mesmo?”

Simbora, um, dois, três / Camisa verde claro, calça santropê / E combinando com o carango, todo mundo vê / Ninguém sabe o duro que dei / Pra ter fon fon, trabalhei, trabalhei / Pra ter fon fon, trabalhei, trabalhei

Carlos Juliano Barros

Oh…. Ana. cê conhece esse belíssimo som?

Ana Aranha

Como não, Caju? Esse é o grande Wilson Simonal, uma das maiores vozes do Brasil – . Na verdade , o Simonal foi mais que um cantor – nos anos 60, ele era um astro, um popstar mesmo.

Carlos Juliano Barros

Exato. E essa aí é “Carango”, a letra fala de um cara que anda por aí acelerando um carrão (o “fon fon”) e – nas palavras dele – “botando banca”…   

Ana Aranha

Essa letra manda um recado, né? 

Carlos Juliano Barros

Sim… Um aviso que ganha um significado a mais se a gente considerar que o Simonal era negro. Mas o que importa aqui é o que ele estava dizendo: ok, tem uma coisa que todo mundo vê, aquilo que eu conquistei, o bem material, o status. Mas tem outra coisa que ninguém vê – ou ignora -, sem querer querendo: eu precisei trabalhar, sim. E esse é o tema do nosso episódio de hoje. A gente vai falar da relação dos artistas com as suas atividades, digamos, laborais. Qual é o trabalho que está por trás de uma obra de arte? Como é o expediente, o batente do dia-a-dia de um artista? Afinal de contas, como diz o poeta, não adianta você ficar negando as aparências, disfarçando as evidências: todo artista já escutou, em algum momento da carreira, a pergunta fatídica:

– “Mas você também trabalha ou… é só artista mesmo?”

Ana Aranha

Que sacanagem….E, olha, pro episódio de hoje a gente falou com vários artistas – inclusive com um dos filhos do próprio Simonal – para entender como se dá, na prática, o trabalho deles. E também para entender que lugar essa galera ocupa nesse estágio atual do capitalismo em que arte e mercado estão totalmente juntos e misturados. É só pensar aqui na aura de obra de arte que qualquer produto de sucesso precisa ter – de sabonete a celular. E a gente ouviu músico, escritor, roteirista, artista plástico.

Júlia Ayerbe

É muito caro e é muito cruel, porque existe essa ideia muito triste do amor pela arte, né? De que, quando você trabalha com a arte, você faz isso por amor.

Letty

A arte está ligada a essa ideia de pessoas que têm tempo. Pessoas que têm tempo são ricas ou pessoas que têm tempo são vagabundas que não querem ir trabalhar. Sempre um dos opostos, né? Ou a pessoa é rica ou ela é vagabunda e não quer ir trabalhar.

Marçal Aquino

Honestamente, desde que me dou por gente, eu sempre pensei assim: escrever é sentar e trabalhar – é 1% de inspiração e 99% de transpiração.

Ana Aranha

E, ao longo das conversas com esse pessoal todo, uma das questões mais levantadas foi que é uma raridade alguém conseguir se sustentar só do trabalho com arte. É por isso que boa parte dos artistas tem um segundo turno pra pagar as contas. E aí o pessoal ganha a vida dando aula, fazendo publicidade. Varia muito… O que não varia é a necessidade dos dois empregos. 

Carlos Juliano Barros

Que nem o Julius, o pai do Chris daquela série que eu particularmente adoro – “Todo Mundo Odeia o Chris”. O Julius é, sem dúvida, um dos maiores ícones da dupla jornada. Se bobear, até quem não assiste a “Todo mundo odeia o Chris” sabe que o Julius tem dois empregos, como gosta de frisar o tempo inteiro a mulher dele, a Rochelle, naqueles rompantes de ostentação engraçadíssimos.

Mas, voltando ao tema desse episódio, a gente não pode nunca esquecer de um dado essencial: o mercado da arte é um dos que operam naquele esquema do “winner-take-all”, para usar uma das minhas habituais expressões em inglês. Traduzindo: o vencedor leva tudo. E esse pacote inclui prestígio, fama e algum – ou muito – dinheiro. 

Ana Aranha

E o meio da arte é um ambiente bem competitivo. E, também por causa disso, os artistas acabam acumulando a função de gestor da própria carreira. E não é pouco o tempo que essa galera investe inscrevendo projeto em edital e buscando patrocínio….

Carlos Juliano Barros

Pode crer, Ana… Mas antes de a gente entrar de vez nesse tema, tem que rodar a vinheta!

Ana Aranha
Seja bem-vinda, seja bem-vindo ao Trabalheira, um podcast da Rádio Batente. Eu sou a Ana Aranha.

Carlos Juliano Barros

E eu sou Carlos Juliano Barros, o Caju. A Rádio Batente é a central de podcasts da Repórter Brasil. A gente está nas principais plataformas de áudio. E fica aqui um convite pra você visitar o nosso site. Dá pra conferir lá os textos dos roteiros e as referências que a gente cita nos episódios. Então vai lá: reporterbrasil.org.br/radiobatente.

Simoninha

Então, quando passa aquela coisa do sucesso e vem o momento em que você não tem mais o sucesso, e isso pode demorar a acontecer, uma série de problemas acontece na vida do artista.

Ana Aranha

Pra quem não reconheceu a voz, esse aí é o Simoninha, filho do Wilson Simonal.

Simoninha

Então, eu olhava isso e via muitos artistas passando necessidade no final da vida, ou a própria história do meu pai. E falava: “Poxa, eu preciso encontrar uma via que não seja uma coisa tão oscilante, que não seja essa montanha-russa…”. Porque eu via o que isso causava nos artistas, nas pessoas, nas suas famílias. E, desde cedo, me interessei pela publicidade. Eu falei: “Poxa, aqui é um caminho que eu posso desenvolver a minha criatividade e posso me sustentar – e, ao mesmo tempo, investir na minha carreira”. Sem depender tanto se uma gravadora vai me querer ou não e tal…

Ana Aranha

Além de cantor, o Simoninha tem uma produtora que faz jingles, trilha pra cinema e otras cositas más. O sócio dele, aliás, é o Jair Oliveira, o Jairzinho – aquele mesmo, do Trem da Alegria – e filho do Jair Rodrigues. Além de tocarem os trabalhos autorais e artísticos, o Jairzinho e o Simoninha têm essa longa parceria no mercado publicitário.

Carlos Juliano Barros

O Simoninha falou agora há pouco sobre a carreira do pai dele e acho que vale dar uma recapitulada aqui na história do Simonal, até pra servir de exemplo mesmo. O cara era uma estrela do Brasil nos anos 60, tinha programa na TV e lotava estádio com o público cantando junto, sucesso atrás de sucesso. Era “Meu limão, meu limoeiro” pra cá, “Mamãe passou açúcar em mim” pra lá. Mas eis que, em 1971, tudo acabou. Isso porque o Simonal achou que tinha sido passado pra trás por um contador e pediu pra um amigo policial ir atrás do cara. Só que no fim quem pegou o contador foram agentes do Dops, órgão de repressão da ditadura. E o Dops, como a gente sabe, era o centro de tortura na ditadura. Nessa, o Simonal foi tido como colaborador do regime militar – o que ele sempre negou, aliás. Enfim… o Simonal caiu em desgraça – hoje, a gente falaria que ele foi cancelado. E assim foi até o fim da vida.

Ana Aranha

Uma história triste, né? Bom a gente abriu com esse verso da música do Simonal: “Ninguém sabe o duro que dei”. E isso me fez pensar numa coisa… Obviamente, é impossível calcular, na ponta do lápis, quanto de trabalho alguém precisa pra “estrumbar” nas paradas de sucesso. Mas tem um cara que já fez uma conta que dá uma pista do tamanho dessa encrenca. E a matemática prova que “só” talento não é suficiente pra fazer alguém bombar. Tô falando do Malcolm Gladwell, um escritor, jornalista e palestrante americano que escreveu o best-seller “Foras de série – Outliers”.

Carlos Juliano Barros

É nesse livro que ele fala do “número mágico para a verdadeira excelência”, né?

Ana Aranha

Exato. E esse número é… 10 mil horas. O que ele quer dizer com isso? Que, pra você começar a ser bom em alguma coisa, você precisa se dedicar a essa coisa por pelo menos 10 mil horas. Na verdade, o Malcolm Gladwell fala que esse número mágico serve para qualquer atividade – e não só para a arte. Inclusive, ele entrevista um neurologista que diz que essa tal cifra das 10 mil horas se repete em inúmeros estudos, feitos com gente de vários campos. Vale para compositor, jogador de basquete, escritor, esquiador, pianista, jogador de xadrez.

Carlos Juliano Barros

Mas pode parcelar essas 10 mil horas em suaves prestações?

Ana Aranha

Sim…. Se você dividir isso aí em dez anos, você terá que praticar mais ou menos umas 3 horas por dia – umas 20 horas por semana. Durante dez anos. Mas o Malcolm Gladwell faz uma ressalva importante: para que um cidadão comum chegue ao nível daquele povo que é realmente fora de série, tem que rolar uma “combinação totalmente arbitrária de capacidade, oportunidade e vantagem”.

Carlos Juliano Barros

Quer dizer, então, que não adianta “só” trabalhar, trabalhar e trabalhar. Tem outros fatores. Porém, o ponto central aqui é que não existe nenhum caso em que essa excelência toda tenha se cumprido num prazo menor.

Ana Aranha

Isso! Só talento não basta, e ele cita nomes pra provar: Mozart, Beatles. Esse povo aí ralou pesado. O Gladwell define assim: “A prática não é aquilo que uma pessoa faz quando se torna boa em algo, mas aquilo que ela faz para se tornar boa em algo”.

Marçal Aquino

Eu sempre digo que contrariamente à escrita aparecem todos os obstáculos que você quiser.

Carlos Juliano Barros

Esse é o Marçal Aquino.

Marçal Aquino

Ah, se o dia está cinza, o cara está melancólico. Não, não. Escrever é um trabalho como outro qualquer. Gente, eu acredito nos poetas, acredito em gente que fica olhando pela janela, em gente que precisa estar sofrendo para escrever, ou estar alegre para escrever. Honestamente, desde que me dou por gente, eu sempre pensei assim: escrever é sentar e trabalhar – é 1% de inspiração e 99% de transpiração.
B

Carlos Juliano Barros

O Marçal é um dos principais escritores brasileiros da atualidade. E a fala dele é, de alguma forma, bem parecida com a fórmula mágica do Malcolm Gladwell. 

Marçal Aquino

Isso vale para a literatura, para roteiro, isso vale para qualquer tipo de atividade e de criação na área de escrita, na minha opinião. Não posso ficar sentado, esperando baixar o santo.

Escrever pode ser que você às 3 horas da manhã acorde para ir no banheiro e pense numa coisa genial. Você tem dois caminhos: esquecer aquilo e dormir, porque no dia seguinte você vai estar esquecido mesmo – você não lembra –, ou anotar. Eu já tive gravadorzinho do lado do criado-mudo, já tive caderninho… Eu acho que não tem nada disso. Você tem que levantar e resolver, porque senão você nem dorme, você começa a entrar na história, e a história começa a se contar pra você. Tem esse processo. 

Carlos Juliano Barros

O Marçal Aquino é bastante conhecido pelo livro “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, que saiu em 2005 e também virou filme. Mas ele só voltou a publicar literatura agora, em 2021, com o livro “Baixo Esplendor”. E olha que curioso: o Marçal diz que nunca escreveu tanto quanto nesses 16 anos de intervalo entre essas duas obras. Ele chegou inclusive a rascunhar três outros livros nesse período. Mas acabou desistindo de cada um deles em estágios diferentes, e por razões diferentes também.

Ana Aranha

E ele tem também um trabalho importante como roteirista de TV e de cinema, né? Ele é roteirista do  “O invasor” – que tem o Paulo Miklos, do Titãs, como protagonista.Eu adoro esse filme…

Carlos Juliano Barros

E tem também o finado e saudoso Sabotage, rapper, numa atuação muito boa

Ana Aranha

Além do “Invasor”, o Marçal Aquino fez o roteiro de outro sucesso: “O cheiro do ralo”, que é um filmaço. E também escreveu muitas séries de TV, como a “Carcereiros”. Aliás, é com os roteiros pra TV  que ele paga as contas. O Marçal é funcionário da Globo há 13 anos e batalha na frente do computador todo santo dia. Sempre em parceria com o Fernando Bonassi. 

Marçal Aquino

Às 9 horas da manhã, a gente toma um café e começa a conversar. E a gente começa a escavar. Há dificuldade? Há dificuldade. Por ser um campo artístico, às vezes você esbarra em obstáculo. Eu lembro de uma vez, por conta de uma cena num episódio de uma série, nós ficamos 23 dias discutindo. Sem escrever, só conversando e tentando contornar aquele problema. Era um problema que ameaçava o episódio inteiro. E nós conseguimos resolver. E, às vezes, a solução vem num estalo.

Ana Aranha

Uau! 23 dias discutindo uma única cena! Haja paciência! Mas e a literatura? Sobra tempo pra isso?

Carlos Juliano Barros

A literatura fica pra de noite – pelo menos no caso do Marçal. 

Marçal Aquino

Lá atrás, lá no começo, quando eu decidi que queria ser escritor. Bem moleque, eu entendi que escritor não é uma profissão. Eu ia só me angustiar se eu tentasse viver de literatura num país como o Brasil. Isso eu entendi rapidamente. Entendi que teria que desenvolver outra atividade, que pagasse as contas, para eu poder, na hora do sonho, fazer literatura. E assim foi a minha vida, desde o começo. Se você pegar livro por livro, eles foram escritos nesse sistema. Procurei trabalhar em coisas que tenham a ver com o que eu gosto de fazer, que é escrever. Eu sou jornalista de formação, trabalhei na imprensa, depois eu me tornei roteirista. Para que não tenha angústia, exatamente.

Eu falei assim: “Não, eu tenho que trabalhar com os roteiros, tudo bem”. Quando você está embalado num livro, tem um momento do dia que você reserva para escrever. Reserva suas horinhas, se embalar, vai em frente. Normalmente, deixo para noite. Para o caso de: se você precisar de, em vez de duas horas, seis horas, você tem essas seis horas na sua frente. Você vai dormir menos, mas é assim. Na verdade é a velha questão, né? O feijão e o sonho.

Ana Aranha

O Marçal, assim como vários outros artistas, já trabalhou também com publicidade. E essa é a deixa pra gente discutir essa relação nem sempre muito bem resolvida entre arte e mercado. Pra isso, a gente consultou uma referência no assunto, que é o livro “A estetização do mundo – Viver na era do capitalismo artista”. Agora o desafio é pronunciar o nome dos autores… Gilles Lipovetsky e do Jean Serroy. Eles  fazem um resumão da história da arte e descrevem quatro grandes momentos. E aí a gente pensou em fazer uma espécie de jogral aqui… pra descrever essas quatro fases. Vc começa, Caju?

Carlos Juliano Barros

Bora! Então, o primeiro momento foi o da arte ritual: a arte feita pelas sociedades que a gente chama de “primitivas”. E era arte ritual porque era disso mesmo que se tratava: um evento, uma passagem para uma outra dimensão. Um objeto de arte tinha uma finalidade religiosa – não tinha um valor de mercado. Sendo bem grosseiro aqui, pensa num homem das cavernas adorando um totem. Uma coisa meio “2001: Uma Odisseia no Espaço”

Ana Aranha

O segundo modelo é o da arte aristocrática. Lembra das aulas de história? Então, é a arte do Renascimento, da Idade Média. Antes dessa fase, o artesão era artista e o artista era artesão. Mas aí a grana começa a entrar: os aristocratas, os monarcas, enfim, o povo da corte passa a bancar os artistas. 

Carlos Juliano Barros

Isso… É nessa época que surge a figura do “mecenas”, o benfeitor das artes, uma expressão que ainda hoje é muito usada. Mas vamos pular pro terceiro modelo, o período de “a arte da era moderna do ocidente”. Ela surge depois da Revolução Industrial e com a criação de um circuito artístico propriamente dito, né? Eu tô falando do surgimento dos museus, das galerias, dos teatros – e também dos críticos de arte que definem o que é e o que não é arte com “a” maiúsculo. É nessa época também que, em oposição a isso, aparece o espírito da arte revolucionária – a arte que despreza o dinheiro, que torce o nariz para a chamada “indústria cultural” e que quer, em última instância, mudar o mundo.  

Ana Aranha  

Bom… finalmente, chegando no que nos interessa aqui…. o quarto modelo é o da arte para o mercado – que é o momento atual. Os autores do livro chamam esse estágio de “capitalismo artista ou capitalismo criativo”. Quer dizer, não dá mais pra separar a necessidade de consumir um produto da necessidade de usar esse mesmo produto pra se expressar esteticamente. Sabe aquela expressão “gourmetização”? É mais ou menos isso… 

O cabeleireiro vira “hair designer”. O cozinheiro vira “chef criador de sabores”. Hoje em dia, qualquer serviço, qualquer produto precisa ter um componente de sedução, aquela coisa do “você não vai apenas jantar uma comida gostosa, você vai viver toda uma experiência”. O iPhone, por exemplo. O iPhone não pode ser “apenas” um telefone com um micro computador . Ele se vende como uma ferramenta de criatividade, de inovação, de status e até de identidade. E aí, com um iPhone na mão, qualquer pessoa vira um fotógrafo, um artista – taí o Instagram pra provar

Carlos Juliano Barros

Esse casamento entre arte e mercado traz consequências muito práticas pro trabalho dos artistas. Inclusive, tem gente que defende a tese de que o artista precisa atuar como – presta atenção na palavra – empreendedor. É o caso da Jane Aparecida Marques, professora da USP que atua na área de comunicação e marketing e coordena um mestrado profissional em empreendedorismo. 

Jane Aparecida Marques

Eu tive a oportunidade, numa aula recente, para gestores culturais, e aí eu tratar… Comecei a falar da questão de mercado, alguns se assustaram. E, veja, estou falando de gestores culturais muito jovens, na faixa de 20, 30 anos. Eu falei: “Gente, vocês fazem parte desse mercado. Isso é mercado também”. E, assim, é inacreditável como algumas pessoas ainda se assustam com os termos.

Nessa perspectiva, a gente também tem que entender que artistas também considerados e denominados muito como criativos, que esses criativos, ou artistas, também têm muita necessidade de se sentirem parte desse ambiente. O artista ou o criativo hoje não pode estar à margem também das questões da própria circulação do que ele está produzindo. Ninguém está fazendo ou produzindo arte e espera viver disso de forma, sabe?, como um diletantismo. As pessoas criativas ou artistas também precisam sobreviver. E sobreviver, neste ambiente capitalista, significa comercializar, significa disseminar seu trabalho e ser remunerado por isso.

Ana Aranha

Só que essa necessidade de o artista virar empreendedor esbarra em uma série de dificuldades – principalmente, pro artista independente. A Letty, que é uma cantora e compositora de São Paulo, publicou em março um artigo bem provocativo sobre isso. O título era: “Uberização da música: O que é e como superá-la”. Ela fala sobre as plataformas de streaming de música e questiona a propaganda dessa suposta autonomia que as plataformas vendem pros artistas.

Letty

Então, quando eu usei o termo “uberização”, eu pensei muito nisso. Essa ideia de que: “Olha, que ótimo, eu posso ser o meu próprio patrão dentro da música, eu posso gerar dinheiro e ninguém vai me impedir. É simplesmente eu subir minhas músicas nas plataformas, e está tudo certo”. E aí, quando você vê, você está ganhando menos de 1 centavo de dólar que está chegando para você, porque boa parte está ficando com alguém. E, aí, você descobre que existe um sistema que, além de moer o artista, pega o seu dinheiro. Quando digo “uberização”, é justamente nesse sentido de precarização, nesse sentido de vender esse sonho de ser o seu próprio patrão na música.

Ana Aranha

Menos de 1 centavo por reprodução… Já pensou no que isso significa pra um artista em início de carreira? E a Letty cita uma pesquisa divulgada pela “Rolling Stone” americana no ano passado. Essa pesquisa apontou que mais de 90% das músicas tocadas nas plataformas de streaming são feitas por apenas 1% dos artistas. É uma concentração muito impressionante. Então…. será que as plataformas são mesmo uma vitrine pros novos artistas?

Carlos Juliano Barros

Olha, eu acho que elas até podem ser uma alternativa àquele esquema antigo da rádio e da gravadora, que é muito cheio de problemas…

Ana Aranha

Sim. Mas a verdade é que é difícil demais pra artistas em começo de carreira que suas músicas sejam realmente ouvidas pelo público.

Carlos Juliano Barros

O músico e compositor Felipe Bemol levanta uma outra questão bem importante: o mito de que artista trabalha por prazer – e como esse discurso fantasioso acaba desvalorizando o trabalho do artista.

Bemol

…a ideia de que se trabalha com aquilo de que gosta. E que, logo, não é trabalho. Isso, para mim, demonstra um imaginário que paira na sociedade, na ideia de que o trabalho, ele é algo que tem que ser penoso, doído. E, por passar por essa penúria, você terá recompensas. E a ideia de ligação da ideia do trabalho com o sofrimento, obviamente, faz sentido para muitas pessoas, porque ele o é, mas traz para o campo da música, ou da arte de uma maneira geral, uma certa ideia de que não tem mesmo até sofrimento ou dor ou penúria. Porque é trabalhoso você conseguir tocar um instrumento, enfim, estar inserido dentro desse campo da arte numa sociedade que às vezes só vê ela como algo de prazer. E ela é, não estou dizendo que ela não seja. Mas é que o fato de já enxergar isso como já sendo o bônus nessa ideia de trabalho acaba… Socialmente, a gente acaba tendo uma desvalorização do nosso ofício. Não todos, né? Mas, enfim, uma grande parte acaba passando por isso. Uma ideia de que você não precisa de recompensa, porque a sua recompensa já é o próprio ofício de fazer arte, que você é feliz fazendo isso.

Ana Aranha

Curioso que essa fala do Felipe Bemol, que é da área da música, é muito, mas muito parecida mesmo com a análise da Júlia Ayerbe, que é das artes plásticas. A Júlia é curadora de exposições e já trabalhou na Pinacoteca do Estado de São Paulo, um museu bem importante da capital.

Júlia Ayerbe

É possível que um artista vivo não receba pra participar de uma exposição, porque existe essa ideia de que o capital simbólico da exposição já é um tipo de remuneração, que é uma estrutura bastante cruel do mundo da arte. Pensando que, uma vez esse artista tenha obras expostas nessa exposição, a obra dele vai valorizar, principalmente se é uma instituição de renome. E, [com] essas obras se valorizando, ele vai vender mais obra etc.

Carlos Juliano Barros

Nossa! A Júlia está definindo o Hope Labor – o trabalho por esperança – que a gente discutiu no segundo episódio dessa temporada. É aquela ideia de trabalhar de graça, ou quase de graça, na esperança de abrir portas no futuro.

Ana Aranha

Exatamente, Caju! Pelo o que a Júlia falou, o Hope Labor também é muito comum no meio das artes plásticas. Assim como a sub-remuneração….

Júlia Ayerbe

Quando as exposições são remuneradas, é comum esse que é chamado o fee do artista, que aí é uma coisa que instituição define, né?, que parte da instituição. Isso é uma coisa um pouco complicada, porque a maioria das instituições de renome são instituições públicas. Então, são preços meio que standards, eu diria. Por exemplo, no Sesc, uma exposição coletiva. Também acontece de o artista ter um fee de participação, mas é baixo. Não sei, eu já vi exposições coletivas, por exemplo, em que o fee do artista é R$ 1 mil, entende? Ele vai ter uma obra ali, ok, é R$ 1 mil. Você pode pensar: “Bom, que trabalho ele fez?”.

Obviamente, não é que as instituições são más, mas eu acho que tem uma questão de que realmente é um meio muito precarizado, não existe muito dinheiro e é uma… É muito caro e é muito cruel, porque existe essa ideia muito triste do amor pela arte, né? De que, quando você trabalha com a arte, você faz isso por amor. E que só de você… E aí eu não estou falando como artista, mas coisas que eu percebo, trabalhando no meio, que é a ideia de que só de o artista poder ter esse espaço para mostrar a obra dele já é o suficiente. O que, de fato, é suficiente, quando o artista já está inserido no mercado. Quando ele tem boas galerias, quando ele vende. Agora, um artista de médio [porte], um artista que está começando…

Ana Aranha

Bom… a gente tá caminhando para a reta final do nosso papo. Mas, antes de terminar, eu queria puxar um último assunto, com base numa fala do Felipe Bemol.

Felipe Bemol

Eu participei de um projeto que tocava músicas em hospitais públicos que foi de financiamento público. E acredito que tocar nas UTIs para crianças às vezes que estão todas desesperançosas fazia uma diferença brutal na vida. E a arte, ela é fundamental. A gente jamais estaria aqui se não houvesse a arte. Enfim, acho que tem coisas anteriores para a gente discutir do que se o valor irrisório de que a gente investe em cultura e em arte no Brasil, de fato, precisa ou não. A Coreia é um exemplo de que investiu boa parte do PIB… Claro que uma boa parte foi de entretenimento. Mas o que acontece na Coreia, por exemplo, é que o investimento massivo na cultura – e aí não quero colocar nenhum valor de julgamento estético com relação ao que produziram ou não, mas o fato é que voltou para a sociedade. Ou seja, colocar dinheiro na arte ou na cultura não é gasto, é investimento. A Coreia é um exemplo disso.

Ana Aranha

E o principal exemplo disso que o Bemol citou é o k-pop – a música pop e jovem da Coreia do Sul, que virou uma indústria bilionária. Tem investimento privado? Lógico. Mas o K-pop também é resultado de uma política pública, de um investimento de duas décadas do governo. Essa história começou em 1998, pra ajudar a tirar o país da lama, depois de uma crise econômica pesada. E o que o governo da Coreia do Sul fez exatamente? Apostou na indústria criativa, encorpando o Ministério da Cultura, que ganhou até um departamento de k-pop pra chamar de seu.

Carlos Juliano Barros

E, além de ser um sucesso comercial, o k-pop virou até ferramenta de diplomacia na relação não muito amigável com a vizinha Coreia do Norte. Isso porque uns anos atrás rolou um show de k-Pop lá em Pyongyang, a capital da Coreia do Norte. E sabe quem foi lá curtir o show? Sim, ele próprio: o Kim Jon-Un, o ditador da Coreia do Norte. Pra quem não acredita, tem vídeo disso na internet!

Ana Aranha

É por essas e por outras que a BTS, uma das principais bandas de K-pop, já ganhou vários prêmios bem importantes da música.

Carlos Juliano Barros

Que coisa! Bom… e a gente vai parando por aqui. O programa começou com Simonal e está terminando com BTS. Curtiu, Ana?

Ana Aranha

Demais, Caju! Bem eclético, eu diria.

Carlos Juliano Barros

O Trabalheira é uma produção da Rádio Novelo pra Rádio Batente, a central de podcasts da Repórter Brasil. A coordenação geral é da Paula Scarpin.

O roteiro original desse episódio é do Cauê Barbosa, com a colaboração da Ana Aranha e do Carlos Juliano Barros, o Caju. O tratamento de roteiro é do Renan Sukevicius.

A edição e a montagem são da Julia Matos. A nossa música tema é composta pela Mari Romano e também pelo João Jabace. O Jabace é da Pipoca Sound e também faz a finalização e a mixagem do programa.

A coordenação digital é da Juliana Jaeger.

Nesse episódio, a gente ouviu “Carango” do Wilson Simonal e “Dynamite” do BTS, além de áudios da série “Todo mundo odeia o Cris” e dos filmes “O Invasor” e “2001: Uma odisseia no Espaço”.

Ana Aranha

Até a próxima!

Carlos Juliano Barros

Valeu e até!




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