Sem salário fixo, ajuda de custo ou registro profissional: o drama dos ‘consultores de venda’ da Direcional Engenharia

Com promessa de ganho certo, empresa coloca ‘consultores’ trabalhando como corretores de imóveis, mas sem registro profissional, o que não é permitido por lei; ex-funcionários denunciam abusos trabalhistas e contam como estão respondendo a processo administrativo por exercício ilegal da profissão
Por Tania Pescarini
 07/10/2021

O título do email era “recrutamento”, e a mensagem convocava para um “processo seletivo” de uma vaga de emprego de uma das maiores construtoras do Brasil, a Direcional Engenharia, que constrói moradias para o antigo Minha Casa Minha Vida – hoje batizado de Casa Verde e Amarela. Em plena pandemia, as vendas da construtora aumentaram 70% no 1º trimestre deste ano. 

O “processo seletivo” foi marcado para uma tarde nublada em uma sala comercial na avenida Paulista, no Centro de São Paulo, em 2019, antes da pandemia do coronavírus. Cerca de 30 pessoas tomavam seus lugares no que parecia uma sala de treinamento. Quando a exposição começa, ficamos sabendo que se trata de uma oportunidade para atuar como “consultores de venda”, vendendo apartamentos do então Minha Casa Minha Vida. Na prática, seriam todos corretores de imóveis. A comissão prometida é 1,7% do valor do imóvel. Sem pagamento mínimo, sem vale transporte ou vale alimentação. 

A empresa tenta seduzir os pretendentes ao afirmar que o valor total esperado das comissões em sua carteira pode chegar a R$ 6 milhões. Mas mais da metade vai embora após conhecer as condições ofertadas. A outra metade continua num treinamento de mais dois dias para “virar corretor”. Fui uma das que continuou no treinamento, e, no terceiro dia, cheguei a ir a um stand de vendas. Não recebi qualquer ajuda de custo e não vendi nenhum imóvel. Trabalhei de graça.  

Ex-funcionários denunciam abusos trabalhistas por parte da Direcional e relatam que estão respondendo a processos administrativos por exercício ilegal da profissão (Ilustração: Rubem Filho)

Uma colega de 18 anos diz que está ali no treinamento porque precisa trabalhar para pagar sua faculdade, cuja mensalidade custa R$1.700 reais. “Se não conseguir ganhar pelo menos isso por mês, não consigo estudar”, diz. No entanto, pessoas que seguiram no recrutamento da Direcional Engenharia e começaram a atuar relatam situações como: falta de pagamento mínimo, exigência de trabalhar 6 horas por dia (o que  poderia vir a configurar vínculo trabalhista, exigindo carteira assinada) e até a obrigação de fazer panfletagem de graça para a empresa. 

O pior: por terem trabalhado nestas condições e sem registro profissional do Conselho Regional de Corretores de Imóveis de São Paulo (Creci-SP), exigido por lei, estes profissionais se expuseram ao risco de serem multados ou até mesmo presos. Quem trabalha como corretor sem o registro profissional pode ter que pagar  multa de até R$ 3.260 ou ser detido de 15 dias a três meses, de acordo com a Lei 6.530/1978. Para conseguir o registro, é preciso fazer um curso que pode custar entre R$ 800 e R$ 2 mil.

A Repórter Brasil apurou que pelo menos três pessoas que fizeram cursos semelhantes na Direcional e começaram a atuar como corretores de imóveis estão hoje respondendo a um processo administrativo junto ao Creci – justamente por terem trabalhado como corretores sem o devido registro.

Fiscalização acompanhada por policiais

“Trabalhei na empresa por três anos, cheguei até o cargo de gerente. Tudo isso sem ter o Creci [registro obrigatório]. Quando fomos autuados, a empresa falou que daria todo o suporte, porém, fomos julgados sem nenhuma ajuda. Estou aguardando o veredicto para ver quanto terei que pagar”, afirma um ex-funcionário da Direcional, que pediu anonimato com medo de retaliações. 

Ele conta que trabalhou na empresa entre 2017 e 2020 e saiu antes da pandemia. Nestes anos, “cerca de 80% das pessoas não tinham Creci”, afirma. No dia da fiscalização na sede da empresa, segundo fontes, representantes do conselho apareceram acompanhados de policiais, quando pelo menos seis trabalhadores da Direcional teriam sido autuados.

Agora eles enfrentam, sozinhos, processos gerados por uma situação na qual, segundo os denunciantes, estavam apenas seguindo as orientações da própria Direcional. Pela legislação, o conselho também poderia autuar a Direcional e denunciá-la ao Ministério Público por facilitação ao exercício ilegal da profissão. 

O Creci, no entanto, não respondeu à Repórter Brasil se também autuou a empresa, alegando que “para acesso a informações de processos disciplinares, por tramitar os autos em sigilo, é necessário procuração das partes.”

Um dos focos da Direcional, cujas vendas aumentaram 70% no primeiro trimestre de 2021, é a construção de moradias para o projeto do governo Casa Verde e Amarela (Foto: Alexandre Carvalho / A2img)

“O Creci tem muitos processos contra empresas por incentivo ao exercício ilegal da profissão. É uma atitude lamentável, uma transgressão moral e ética que pode acabar com o sonho de uma família”, argumenta José Augusto Viana Neto, presidente do conselho de corretores de São Paulo.  

Porém, documentos do órgão revelam que a maioria dos processos por incentivo ao exercício ilegal da profissão se dá contra pessoas físicas: há casos em que o gerente, e não a empresa, é autuado. Ou seja, na prática, o trabalhador está mais exposto do que a empresa. 

Katia* trabalhou como vendedora da Direcional em 2019. “Todos nós iniciávamos como consultores de vendas, e nos prometiam o registro profissional após o treinamento, só que isso não era verdade. E quando o Creci fazia fiscalizações, a empresa trancava os ‘corretores’ na sala alegando ser uma equipe de telemarketing”, conta. 

Além dos problemas relacionados à prática indevida da profissão, outra questão apontada por especialistas é a comissão de 1,7% oferecida pela empresa. Segundo o Creci, “é prática comum no mercado a comissão de 6% sobre o valor do negócio. Mas isso deve ser acertado entre o corretor e seu cliente”.  

Sem contar que, da forma como atuam os corretores da Direcional, há indícios de relação de subordinação, o que pela lei deveria ser um trabalho com carteira assinada, salário fixo e pagamento de direitos trabalhistas como férias e 13º. Uma empresa pode vender seus imóveis diretamente para o cliente, mas se quiser vender por comissão, usando terceiros, estes devem estar devidamente registrados, afirma o advogado e professor de Processo Penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Carlos Kauffmann. Vender imóveis mediante comissão sem inscrição no Creci é uma contravenção penal e o responsável, dentro da empresa envolvida no esquema, pode responder judicialmente, conclui o especialista. 

A advogada e sócia da LBS Advogados, Sarah Raulino, afirma que esses trabalhadores podem requerer, na Justiça, que a empresa reconheça o vínculo trabalhista. Além disso, aqueles que sofrem processos administrativos do Creci podem pedir tanto danos materiais como morais.

Ajuda de custo de R$ 230 em 45 dias

Kátia foi uma das “recrutadas” que se sentiu ludibriada quando atuou como vendedora para a Direcional Engenharia, sem o registro do Creci. “Me ofereceram uma ajuda de custo de R$ 230 por 45 dias de trabalho, mas exigiam que comparecesse todos os dias no stand de vendas e que cumprisse 6 horas de trabalho diário”, afirma. Ela conta que foi obrigada a fazer telemarketing e propaganda para a empresa. “Nos obrigavam a fazer panfletagem. Me incomodou porque acho que não era minha obrigação abordar as pessoas na rua. Minha experiência foi péssima”.  

Funcionária contou que quando havia visitas de fiscalização do Creci no local onde estavam sendo erguidos os prédios, a empresa negava que os consultores atuavam como corretores, alegando que eles integravam a equipe de telemarketing (Foto: Divulgação)

Assim como Kátia, todas as pessoas com quem a reportagem conversou durante o treinamento tinham sido convocadas para a reunião inicial na construtora por meio do site de empregos www.vagas.com.br. Todo o grupo já estava há algum tempo desempregado, e ninguém se lembrava de ter se inscrito na vaga.

Apesar de o “recrutamento” ter acontecido em 2019, antes da pandemia, a Direcional Engenharia continua convocando pessoas desempregadas em meio à maior crise sanitária e econômica do país. Agora a convocação parte de uma subsidiária da empresa, chamada Riva Vendas. 

Enquanto há indícios de que alguns trabalhadores da Direcional teriam sido induzidos a atuarem em desconformidade com a lei (sem registro profissional) e sem as mínimas garantias trabalhistas, a empresa vem ampliando seus resultados nos últimos anos, e suas ações na bolsa de valores seguem em alta mesmo durante a pandemia. 

Somente no 4º trimestre do ano passado, a empresa teve lucro de R$ 44 milhões, aumento de 55% ante igual período de um ano antes. Já o seu presidente e fundador, Ricardo Valadares Gontijo, foi recebido pelo presidente Jair Bolsonaro em 2019 – em encontro fora da agenda oficial – para defender a não liberação do saque do FGTS para a população por conta do impacto que haveria nas construtoras.

Autônomos?

O corretor de imóveis, quando autônomo e devidamente registrado no Creci, pode trabalhar em regime 100% comissionado. Ou seja, não há ilegalidade em contratar corretores pagando somente a comissão, desde que tenham liberdade para fazer seus horários.  Segundo especialistas ouvidos, não é bem isso que acontece na Direcional. 

“As mensagens [trocadas no grupo de Whatsapp e obtidas pela Repórter Brasil] demonstram que existe uma coordenação das atividades pela gerente, uma vez que estabelecem metas, horários, roupas que devem ser utilizadas: são indícios da existência de um poder de comando exercido sobre as atividades dos trabalhadores”, afirma Otavio Pinto e Silva, advogado do Siqueira Castro Advogados e professor de Direito na USP. 

Na legislação trabalhista, o vínculo empregatício é caracterizado pela presença de subordinação, ou seja, tem metas e horários estabelecidos pelo chefe. “Já o autônomo trabalha na hora que quer, entrega o serviço e pronto”, afirma a professora Yone Frediani, magistrada aposentada do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região e professora da Faap. 

“Corretor obrigado a participar de reuniões de trabalho e plantões, a prestar contas, a cumprir horário e ainda a correr atrás de metas não é um simples prestador de serviços para imobiliária, mas empregado”, afirma a decisão de um juiz de outubro de 2017, em um processo que tramita no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª região. 

Procurada pela reportagem, a Direcional afirmou que a empresa “atua com responsabilidade, em cumprimento à legislação” e que não tolera irregularidades. Informou ainda que “a profissão de corretor de imóveis é autônoma e prevista expressamente em lei” e que respeita a “a autonomia que esses profissionais possuem para gerir suas atividades e escolher as empresas com que atuam”. 

A companhia disse também que a remuneração segue os acordos com os profissionais e as regulações do setor e que “sempre credencia profissionais”. “Pela natureza da atividade, a profissão de corretor recebe com frequência candidatos de outras áreas para iniciar a carreira. Na empresa, candidatos com esse perfil passam por treinamento em que desenvolvem atividades preparatórias para a corretagem. Durante o período, também são orientados e recebem apoio, por vezes financeiro, para buscar a qualificação e os registros exigidos em lei, caso queiram de fato se tornar corretores profissionais”. 

Já o Creci-SP informou que não tem a mesma função dos sindicatos, de negociar honorários e formas de contratação, destacando que o conselho existe “para fiscalizar e disciplinar o exercício profissional”.  

Procurada, a empresa Vagas.com afirmou que “fará a verificação das práticas relatadas” e “estando em desconformidade com o que estabelece a legislação trabalhista, adotará as medidas contratuais cabíveis.” A companhia disse ainda que pede documentação para as empresas-clientes para validar sua idoneidade e garantir que as vagas anunciadas sejam reais. Leia as respostas na íntegra. 

Falsas promessas

Apesar de a reportagem ter ouvido queixas de ex-funcionários, há casos de pessoas que foram recrutadas pela Direcional e acabaram tendo experiências positivas na empresa. Uma delas é Ruth*, que contou que havia conseguido vender seu primeiro imóvel e que tirou o registro do Creci, pago pela construtora. Histórias como estas são inclusive usadas como chamariz na hora do recrutamento. 

Patricia*, 29 anos, foi ao recrutamento porque estava há muito tempo desempregada. Após meses trabalhando de graça, se sentiu ludibriada. “Ouvindo eles falarem, parece fácil vender um imóvel. Mas claro que não é como vender roupas ou sapatos”, relata. “Me senti enganada. Falam que você só não vende se não trabalhar, mas eu trabalhei pra caramba e não deu em nada”.  

Carina*, 57 anos, diz que sentiu desânimo nos 3 meses que passou como vendedora na Direcional. “É complicado trabalhar sem um ganho mínimo. Parece que damos murro em ponta de faca. Você tenta, tenta e não há retorno”. Ela tenta se organizar financeiramente após meses de prejuízo trabalhando sem receber. “Bate um desespero, é muita pressão psicológica. Para mim é falta de amor ao ser humano”, conclui, referindo-se à atitude da Direcional. 


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