O cerco da força policial de Rondônia à Liga dos Camponeses Pobres (LCP) avançou nesta semana, quando policiais apreenderam computador, celular, documentos, pen-drives, cadernos, agendas e R$ 25 mil da advogada Lenir Correia Coelho, que é dirigente da Associação Brasileira de Advogados do Povo (Abrapo) e representa a LCP em diversas ações.
Além da casa da advogada, a ação ocorrida na terça-feira (23) realizou busca e apreensão na residência de outras 25 pessoas. Outras duas foram presas e quatro que tinham mandado de prisão preventiva não foram encontradas. Segundo a Polícia Civil, todos teriam relação com a LCP. A operação envolveu 120 policiais e foi comandada pela Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco).
A ação da polícia, segundo a Abrapo, foi uma ”grave violação às prerrogativas do advogado e de clara retaliação do latifúndio contra a defesa dos camponeses”. Em nota, a entidade afirmou ainda que um advogado ser tratado como criminoso por trabalhar na defesa dos camponeses é uma “negação do direito de defesa”.
A Comissão de Defesa de Prerrogativas da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Rondônia informou estar agindo para preservar as garantias da advogada: “[Estamos] acompanhando a operação com a finalidade de preservar as prerrogativas profissionais da advogada em sua inteireza, sem transigir ou permitir quaisquer ofensas em relação ao direito da advogada”. Coelho é mestra em direito agrário e referência na defesa dos povos do campo em Rondônia, já tendo atuado como assessora jurídica da Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A advogada é vítima de ameaças de morte por seu trabalho e já teve que sair de Rondônia, como destaca a carta de apoio publicada pela Rede Nacional de Advogados Populares (Renap). “A tentativa de intimidação e criminalização da advogada Lenir Correia não apenas atinge toda a classe profissional, como se insere em um contexto mais amplo de perseguição aberta aos direitos e às conquistas dos povos, aos movimentos sociais e a manifestações políticas de rechaço aos acentuados retrocessos operados nos últimos tempos”.
“Lamentamos profundamente a insistência na criminalização das ocupações de terras por parte do Poder Judiciário”, afirma a Renap, destacando que desde 1997 os tribunais superiores declaram que a ocupação de terra é uma maneira legítima de pressionar o Estado a realizar a reforma agrária.
A Polícia Civil informou que a operação tinha como alvo pessoas investigadas por lavagem de dinheiro, ligação à organização criminosa, entre outras suspeitas. A Repórter Brasil entrou em contato com a Polícia Civil, por e-mail e telefone, para que o órgão se posicionasse em relação a entidades a acusarem de perseguição aos que atuam ao lado de movimentos sociais. No entanto, a organização preferiu não se manifestar.
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Aliança entre ruralistas e policiais
Grupos ligados aos direitos dos defensores da terra denunciam que a advogada que representa a LCP é mais um alvo da perseguição feita por ruralistas e polícias – uma aliança que encontrou respaldo na gestão bolsonarista. “No governo Bolsonaro esses setores ligados ao latifúndio não estão contentes apenas com a paralisação da reforma agrária. Eles avançam para criminalizar todos aqueles que defendem essas bandeiras, como advogados e lideranças”, afirma José Batista Afonso, advogado da CPT em Marabá, no sul do Pará.
Há outros casos semelhantes ao de Coelho, como o de José Vargas Júnior, que defende os sobreviventes do massacre de Pau D’Arco, no sul do Pará, afirma estar sendo vítima de uma armação da Polícia Civil e do Ministério Público. Sua prisão vem sendo questionada por órgãos internacionais e nacionais, como OAB, que acusou a polícia de ter ocultado provas que o inocentaram.
O padre José Amaro Lopes também está entre os perseguidos. Membro da Comissão Pastoral da Terra, ele sucedeu a missionária norte-americana Dorothy Stang – assassinada em 2005 – na articulação com trabalhadores rurais em Anapu, no Pará. O padre chegou a ser preso e foi acusado de liderar uma organização criminosa. O religioso se considera vítima de uma cruzada promovida por bolsonaristas para impedir seu trabalho pela reforma agrária, como mostrou a Repórter Brasil.
Sem farda, com fuzil
O cerco à Liga dos Camponeses Pobres vem se intensificando desde outubro de 2020, após a morte de dois policiais militares, em uma área próxima ao acampamento Tiago dos Santos, no distrito rural de Nova Mutum Paraná, a 150 quilômetros da área urbana de Porto Velho.
Em março, a Repórter Brasil publicou uma matéria mostrando os sucessivos cercos policiais aos membros da LCP. A reportagem, inclusive, foi alvo de uma abordagem de policiais militares sem farda, que apontaram um fuzil .565 para o repórter e alertaram que ali seria uma área de guerrilha.
À época, militares vigiavam e faziam uma caçada aos integrantes da liga, acusados pela Polícia Civil de matarem os policiais, o que foi então negado pela advogada Lenir Correia Coelho, que defende o movimento neste caso.
Agora, a Polícia Civil aponta Coelho como uma das lideranças da LCP. “A advogada é investigada por integrar organização criminosa, destinada à invasão de terras em Rondônia. Também é suspeita de atuar como líder, junto com seu marido”, afirmou o governo de Rondônia, ao ser questionado pelo motivo da busca e apreensão.
O juiz Fábio Batista da Silva, de São Francisco do Guaporé (RO), autorizou a operação com o argumento usado pela Polícia Civil de que as 31 pessoas são investigadas por organização criminosa armada, lavagem de dinheiro, esbulho possessório (invasão de terra) e comércio ilegal de armas de fogo. No pedido de autorização para operação, a Polícia Civil descreve a LCP como um organização criminosa, que seria responsável por: “tomar de assalto, ameaçar e retirar o proprietário e funcionários de área invadida”.
A investida policial contra a LCP ganhou reforço federal em julho, quando o presidente Bolsonaro atendeu ao pedido dos ruralistas de Rondônia e autorizou o envio da Força Nacional para o estado. Há um alinhamento grande entre o presidente e o governador de Rondônia, o coronel da PM Marcos Rocha (PSL) em pautas conservadores e contrárias à reforma agrária. Rondônia foi o terceiro estado do país que mais garantiu votos a Bolsonaro. Ficou atrás somente do vizinho Acre e de Santa Catarina.
Cinco mortes em menos de três meses
Desde que a Repórter Brasil esteve no local, em dezembro, o conflito entre integrantes da liga e policiais recrudesceu. A polícia matou cinco camponeses nas proximidades do acampamento em um intervalo de menos de três meses. Amarildo Aparecido Rodrigues, Amaral José Stoco Rodrigues e Kevin Fernando Holanda de Souza foram mortos em 13 de agosto no acampamento Ademar Ferreira, vizinho ao acampamento Tiago dos Santos.
Em 29 de outubro, Gedeon José Duque e Rafael Gasparini Tedesco foram assassinados. Segundo a polícia, os dois integrantes da LCP eram suspeitos de terem matado os policiais em 2020. Em nota, a LCP afirma que os dois foram acusados sem provas das mortes dos policiais e “executados covardemente”.
Duque e Tedesco foram mortos no escopo de uma mega operação policial, chamada de Operação Nova Mutum, com participação de 400 policiais, que cumpriram reintegrações de posse em oito fazendas. A Defensoria Pública de Rondônia apontou diversas violações aos direitos humanos, com moradores, incluindo idosos e crianças, retirados de forma arbitrária, durante a noite e ficando 24h sem alimentação.
A LCP ocupa o posto de “inimiga pública” das autoridades de Rondônia há mais de década. Em 2008, a Câmara dos Deputados realizou uma audiência para pedir providências contra “o domínio” da organização no Estado. O então secretário-adjunto de Segurança Pública de Rondônia, Cezar Pizzano, acusou a liga de receber verbas e orientações de movimentos guerrilheiros latino-americanos, como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o Sendero Luminoso, do Peru. Ele afirma ter extraído as informações de um dossiê elaborado pela polícia entre 2004 e 2008.
O secretário atual é o coronel da Polícia Militar, José Hélio Cysneiros Pachá, o mesmo que comandou um batalhão da PM, em 1995, que participou do episódio conhecido como Massacre de Corumbiara, quando 300 homens, entre pistoleiros e policiais, atacaram um grupo que ocupava uma fazenda no Sul de Rondônia. Oito lavradores foram assassinados, 20 desapareceram e 350 se feriram. Dois policiais também morreram. Pachá foi inocentado pelo júri em 2000.
Foi justamente após o Massacre de Corumbiara que surgiu a Liga dos Camponeses Pobres, criada a partir da união de sindicatos urbanos com o Movimento Camponês Corumbiara, que aglutinou os sobreviventes. Fundada em 1999, a liga é hoje o principal movimento social de Rondônia em defesa da reforma agrária – ou “revolução agrária”, como costuma apregoar. Os trabalhadores rurais que a compõem pregam a “morte do latifúndio”. Hoje são aproximadamente 30 acampamentos mantidos pela liga em Rondônia, que recebem a denominação de “áreas revolucionárias”.
Após o final da operação realizada na terça (23), o secretário Pachá disse que o cerco à LCP vai continuar. “Se você está envolvido de alguma forma nessas organizações criminosas pode ter certeza que vamos chegar em você”, disse no encerramento da entrevista coletiva.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil